Quarta-feira, 30 de Abril de 2014

 

idílios e pequenos delitos, Azul, XXXIII

 

Conheço um tipo que apanhou três anos de pena suspensa por ser demasiado organizado. O caso é o seguinte: ele organizava as suas epifanias janadas em pequenos sacos plásticos – um para cada dia – do Modelo; andava sempre, na sua mochila do Indiana Jones, com quatro doses de erva, alguns comprimidos variegados e um frasco de champô de hotel cheio de Bushmills. Parece que isto é considerado posse com intenção de distribuição, segundo o estrambótico jargão penal. Diz-se que Wallace Stevens andava sempre com poemas na sua segura mala profissional, mas nunca foi condenado por isso. É assim o mundo.

 

(Duas horas após a sentença, P. estava em casa a procurar um vídeo de snowboard que tinha visto numa dessas noites estremunhadas que tanto acontecem às pessoas de persuasão janada, e explicou-me significado último do broche no filme do Vincent Gallo.)

 

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despesadiaria às 15:11
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Terça-feira, 29 de Abril de 2014

 

Um gajo, saído da casa de banho, passa por mim com uma faúlha de cocaína a endurecer o bigode. Vou beber um copo e mai'nada. Pronto. Do lado de fora, vejo que a minha gabardina não envelheceu bem. Avisto mais: a igreja do outro lado da rua não tinha qualquer necessidade da ogiva. Nem mesmo era preciso chanfrar as janelas. Enfio os botões que faltam nas casas da gabardina. Desvio das bicicletas escoradas ao gradil. Toda a vida humana me roça e pinica. Nos degraus que se afundam a cada passo para dentro da igreja, a maralha contundia-se à saída. A porta foi ladeada por colunas, numa tentativa de comprimir e dar airosidade ao corpo. Mas não. Parece uma sereia gorda de espartilho. A cruz, lá em cima, como a ponta de um florete. É isso. Os enredos arquitectónicos nesta alameda por vezes são erros, enrijados e felpudos, que não acabam de se desfazer. Apenas um janelão liso na lateral, tenta dissimular a panascaria. Claro, não se podem negar certos atractivos. Todos os motivos ao mesmo tempo, apresentados em pé ou deitados. Bosquetes, canteiros, relvados, pomares, corcovas dispostas em renque. Os arquitectos descaroçaram os domicílios. Foram pedir ícones emprestados. E já não se conseguem destrinchar dessas confusões paralelas. Enfim. Paro às costas de uma figueira. Parece até que tenho vergonha. Vigio de longe um carro da polícia estacionado na esquina. Direita ou esquerda. É a escolher. A polícia desce, eu subo. Eis uma contradança a que estamos habituados. O detalhe picante: o Tejo murmura, mas já não afoga ninguém.

 

Peor

despesadiaria às 02:53
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Segunda-feira, 28 de Abril de 2014

 

Ignora a chuva, espera um pouco, deixa-me acabar. Ao chegar à rua dos plátanos orientais, ramos polimorfos geram vagas de prazer, e pensamos: está aqui finalmente um local onde não temos de procurar a graça em pingos de sombra, ela ergue-se triunfante perante nós... Mas com o tempo nasce uma sugestão de futilidade no curto inebriamento das sensações. A sensibilidade empanturrada… como se tivéssemos pupilas gustativas! Na biblioteca, um novo olhar… E o que fazer com ele? A criatividade falha, a emoção da descoberta esgota-se em fútil devaneio. A originalidade? Um barco de recreio em águas profundas… Malabarismos, piruetas. Há algum tempo que te queria dizer isto: perdi-me em bailados de sofisticação, habilidades enfadonhas… O que era radioso é hoje luz parda, francamente embaraçosa quando tem de ser exibida. Esboços, esboços, esboços… esboços de quadro nenhum! Dei por mim numa porta giratória, numa elegante e confortável porta giratória… passava o tempo nela, girei até ficar enjoado, girei até não ser mais possível saber de onde vim e para onde queria ir… E agora que parei de girar, não foi devido a uma opção, compreendes, é isso que me perturba, não defini nada, sinto que houve apenas uma súbita quebra de energia… Diabos, chove a pique! Maldita chuva, vamos para dentro antes que fiquemos encharcados. 

 

pmramires

despesadiaria às 13:25
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Domingo, 27 de Abril de 2014

 

idílios e pequenos delitos, Verde, X

 

Rythm of the Night a tocar e eu um amigo a brincar ao Saber Rider com armas de pinho rematadas com pregos oxidados. Brincávamos à socapa, com aquela vergonha típica de garotos que não querem ser vistos a ser garotos. “Essa cassete não presta. Já saiu a Dancemania 95, putos”, disse-nos um primo mais velho que já saía à noite com os seus sapatinhos de ir ao pito. Comecei a sair de casa tarde, mas nunca tive sapatos de ir ao pito. A minha primeira noitada foi patrocinada por um amigo recém-chegado de um Erasmus na Lituânia; notava-se que estava demasiado alegre e ainda mal aclimatado aos paulatinos hábitos da cona indígena. Embriagados com whisky protestante abordamos o femeaço local com uma certa prosápia: eu gastei os tropos de uma literatice mal industriada, que usa mais porquanto do que porque; ele usou os movimentos de dança que tinha aprendido nas discotecas lituanas e com as irmãs mais velhas. Houve troca de saliva seguida de vómito, se bem me lembro. Só sei que acabei a noite a gritar “voglio vederti danzare, puta”.

 

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despesadiaria às 23:52
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Sábado, 26 de Abril de 2014

 

O cigano é uma espécie rara de homem comum. Da Califórnia até a Pérsia. Um exército de cauda cortada. Fátuo como todos os declives. Comer, beber, roncar, e mais nada. Enfim. Vou meter no braço uma tatuagem deste acampamento. Deve ter uns 3 km. Estou para o pernoite. Palha não falta. Mas fui avisado. A polícia vai dar uma batida. Entre o meio-dia e a meia-noite. Tudo bem. Nenhum problema. Estou familiarizado com a polícia, de todos os países. O cigano mais moço continua a enfiar a carne num espeto de pau. As crianças dançam debaixo de um varal de roupas coloridas. Tenho nos bolsos tantos produtos farmacêuticos para lhes vender. Mas com a polícia. Eu achava melhor afogá-los em algum buraco. Mesmo sem chuva as crateras num acampamento estão sempre a transbordar. Inundadas por um lodo, às vezes violáceo, às vezes esmerealdeado. Depois daquela caravana de poças marinadas de peles mortas, ao lado de um camião, um remoinho de saias. Putas acabadinhas de chegar da Estónia, Croácia, Valáquia, Rumélia, de todos os chiqueiros do leste. Uma delas, em pé, em cima de um tronco derrubado, qualquer coisa entre os 9 e 13 anos, dança com a saia erguida. Os rapazes em volta ciscam, batem os pés, as mãos, atiram tremoços e castanhas, devoram-na, com olhares de megatoneladas, numa algaravia de palmas e buzinas. Ela ri, desdentadinha e gesticulosa. O cabelo grosso, castanho, metade solto, metade numa trança. O velho que atirou azeite ao fogo, se aproxima. Dois facalhões com cabo de madrepérola à cintura e conchas de ouro a cascatear do pescoço. Deve estar já no seu segundo bilião. Ela desce da árvore. Os gajos ficam quietos. É preciso enfiar o orgasmo de volta pelo caralho. Eu? Bom. Subo a azinhaga entre valados cheios de capacetes de espinhos até à tampa. As mãos espalmadas diante dos olhos, para não nos arrancarem tudo. Pálpebras, lábios, as pequenas varizes das órbitas, os ovos oculares aos pedaços. Depois de um cordão alto de capim, a música tinha-se evaporado. É deitar o ouvido ao chão e auscultar os corações de mil gatos. Cavalos, galinhas, crocodilos, carroças, feitas de cortinas e celofane, espalhadas pelo campo. Lá em cima, o cigano mais velho é uma geena de mofos, tem a roupa acolchoada com jornais, quilos de papéis debaixo do sovaco, entre as coxas, culotes de revistas. Está parado a firme no caminho. Tentei desviar. Tentei mais uma vez. Mais duas vezes. "Onde será a Europa daqui trinta anos?", ele pergunta. "No mesmo sítio?", arrisco. Ele ri. Dois caninos de ouro e mais nada. A boca vazia. Mas vazia num contexto mais amplo e menos disponível. Um vazio torcido, franzido, descendente. Mais tarde, ouço um ruído através do papelão. Alguém à nossa porta. Não é imaginação. A polícia? Àquela hora? Sacudo a palha, levanto-me, empurro a porta de zinco. Três degraus abaixo, uma vozinha de miúda cochicha. Diz logo do que se trata. 5 euros o broche. Quero? Não. Melhor deixar as brincadeiras para depois. Volto ao feno, de gatinhas. Posso ver o céu pelos rasgões da lona. Viro para a direita. Há um espelho ovóide encostado à parede. Eu devia aparecer ali para mim. Mas não. É como se tivessem posto outro no lugar do meu reflexo.

 

Peor

despesadiaria às 14:42
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Quinta-feira, 24 de Abril de 2014

 

É bem sabido que a confissão silenciosa fez rolar inúmeras cabeças nos túneis da história. Desconheço quantos eruditos terão arriscado estudos acerca desta necessidade tão bizarra, quando podiamos simplesmente fingir sagacidade com o silêncio. Começo a desconfiar que à semelhança do tempo em que os sábios calcavam uvas nas planícies da Grécia, o futuro será de quem garantir segurança, amor, dinheiro, sem necessidade de recorrer ao conspurcado comércio das palavras. Existe mesmo qualquer coisa de germânico nesta contumaz tendência para fingir uma sensibilidade digna de registo, inventariar a anormalidade, catalogar a personalidade bizarra, descrever a sísmica e caótica pulsação da mente, inventar um sofrimento original para esfregar no focinho da humanidade. Caramba, que mal nos fez a humanidade para recusarmos o nosso destino de estúpidas ovelhas? E terão as ovelhas que ser estúpidas? Está muito bem documentada a existência de rebanhos de ovelhas dignos dos maiores louvores para não falar da espetacularidade civilizacional das baratas. Bem, a verdade é que os mediterrânicos sempre contaram histórias mas nunca se preocuparam muito com a perenidade da sua conversa. Ou melhor, confiavam na memória dos seus miolos. Mas nós somos filhos da imprensa mecânica, que digo eu, somos magníficos hologramas digitais. Fizeram-nos soletrar o nome, dominar a técnica da escrita (nos locais apropriados, note-se, nunca nas paredes alheias, ou nas nádegas das criadas, usando gotas de cera derretida; não, não, isso está inteiramente proibido). Fomos, portanto, forçados a codificar as nossas emoções (risos) e a responder a um nome e número de polícia, a fim de reclamar direitos sexais e económicos. Perante tão trágica situação, ainda temos que gerir o quotidiano. Enfim, coragem.

 

Pode dizer-se que o meu caso é mais um prolongamento, inútil, na melhor das hipóteses, exaustivo, desta especialização enigmática: a crença nos efeitos estéticos desta bizantinice da linguagem natural (quando já toda a gente percebeu que o futuro é das programções e das linguagens artificiais). Os meus dias têm sido atravessados por choques inconscientes com a ideia de artíficio, ao que eu costumo responder com um pano encharcado em detergente, ou seja, a ideia de sujeito, isto para me esconder da roda vertiginosa e ameaçadora da informação infinita. Até uma cabeleireira se rirá se eu disser que a maior comédia consiste nesta necessidade de atribuir classificações, ordenar estímulos, ideias, coisas, meu deus, coisas, através de um tecnologia tão arcaica como o alfabeto. 

 

Façamos uma curta experiência, como nos livros de péssimo gosto, simplesmente olhando em redor. No meu caso, que vejo? Um helicóptero recortado na parede celeste, o barulho exasperante do teclado, uma caneca de produção industrial (rachada), os veios na madeira da mesa (lembrando ao observador a relação ténue entre a vida biológica e a utilidade), a cortina branca coalhada de sol, a estúpida planta de interior, uma fileira de livros manchados de humidade, o telefone (vergonhosamente desautalizado) e cruzando tudo e em todas as direções, as setas do tempo e da memória, apontadas a todos os outros sinais possíveis, infinitos. Dirão que a racionalidade humana limita esse doloroso campo de possibilidades, e só com a barriga cheia é possível sofrer com a indecisão perante a multiplicidade das coisas. Eu direi que a minha barriga tende a esvaziar-se dada a minha decisão em sobreviver através de uma triste e insólita prostituição das minhas experiência mentais. Veja-se esta minha indelicadeza ao submeter os leitores a problemas de economia doméstica. O que se seguirá: ténicas de pedinte romeno? O caro leitor poderá sempre recorrer à Ópera. Da minha parte, não faço compromisso de originalidade ou inteligência. O meu cérebro é um velho imperador apunhalado, que a meio da sua queda política descobriu não ser sequer real, mas apenas fruto do sonho de um pobre escravo acorretando numa cave húmida, onde não rompe a mais pequena réstea de luz. Mas não nos cansemos com lamentos. Os morcegos não precisam de olhos para rasgar a treva das abóbadas cavernosas. 

 

alf

despesadiaria às 16:38
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Quarta-feira, 23 de Abril de 2014

 

idílios e pequenos delitos, Branco, III

 

Quando tinha três anos caí num poço de água. A protecção nominal do poço consistia em duas chapas de zinco sobrepostas com tijolos de cimento pespegados nas extremidades; para o génio terra-a-terra da aldeia, duas chapas de zinco são mais do que suficientes para proteger quem merece viver. Dormir é de noite, dizem. Não correu mal: caí na plataforma do motor que puxa a água e fui salvo pela minha avó ou tia ou ambas, as opiniões dividem-se. Este episódio vago, de que recordo só o medo e a escuridão, foi-me contado várias vezes com algumas variantes artísticas. Mais tarde, li O Díscolo de Menandro em que o misantropo também cai num poço. Cnêmon, já salvo, lamentou a sua sorte. Tales de Mileto caiu também, segundo Platão. Estas histórias são todas semelhantes – cair não é coisa que se possa fazer com muita originalidade –, mas é sempre interessante ver as variantes artísticas.

 

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despesadiaria às 07:20
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Terça-feira, 22 de Abril de 2014

 

A Rapariga do Cineclube

 

Chegou ao cineclube quando o filme estava quase a começar. Pediu-me rapidamente um bilhete e procurou as amigas num misto de excitação e ansiedade, de quem não quer enfrentar o filme sozinha. Tinha uma aparência extremamente frágil mas, suspeitei, um carácter que nunca lhe permitiria admitir essa evidência.

Como uma lobinha no seio da alcateia, instalou-se no lugar central de um grupo de cinco jovens visivelmente contentes por ninguém ter faltado àquela pequena reunião.

Quando o filme começou tirou o gorro de lã e mais de uma vez deu a ideia de se querer livrar do cachecol; de resto, não fez mais nenhum movimento assinalável até os créditos finais riscarem o ecrã. Depois levantou-se, deu a entender que voltava já e, num andar rápido e ligeiramente saltitante, veio ter comigo.

Fixando o olhar ora no meu ombro direito ora no esquerdo, com o sorriso embaraçado de quem se encontra surpreendida pela sua própria audácia, disse-me que era relativamente nova na cidade, que até hoje desconhecia a existência do cineclube, que as poucas amigas que fizera lhe disseram que nós estamos sempre à procura de novos elementos e que ela adoraria se pudesse ajudar.

Tinha uma voz aguda e falou com todas as hesitações de alguém que está a rememorar aquilo que tem para dizer.

Eu estava extenuado e fiquei realmente surpreendido com a abordagem, mas enquanto ela falava não consegui evitar que os meus pensamentos se debruçassem sobre a pequena suspeita de que ela teria sardas no pescoço. Quando acordei disse-lhe que era uma bela ideia ela juntar-se a nós, agradeci-lhe em nome de todos a generosidade e convidei-a a aparecer um pouco mais cedo na próxima sessão, que teria lugar no mesmo dia da semana seguinte, de forma a apresenta-la ao resto dos cineclubistas e inclui-la nas tarefas. 

De início, ela pareceu ficar desconfiada com a minha resposta, como se não acreditasse que pudesse ser assim tão fácil. Apanhou o cabelo e tudo, deixando apenas uma repa linear cobrindo a testa. Acho que esperava que eu ao menos lhe desse uma ficha de inscrição ou algum papel para preencher. Depois, ainda meio constrangida mas com sorriso sedutor, disse-me que ficava muito contente por poder fazer parte do cineclube e que na próxima semana seria com muita vontade de ajudar que chegaria mais cedo.

Afastou-se em rápidos passinhos que me pareceram de novo ligeiramente saltitantes.

Passado um momento, ao sair com os amigos, fez-me um aceno cúmplice, como se me dissesse até para a semana.

Não sei o que entretanto se passou e ainda hoje penso muito nisso, mas no cineclube nunca mais ela apareceu.

 

pmramires

despesadiaria às 13:41
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Segunda-feira, 21 de Abril de 2014

 

Depois de desbastar meio litro de vodka paraguaia e iluminar a noite com 2 cigarros de haxixe, sou levado a concluir que no mundo tudo são carícias. O céu, a água acastanhada, as ribeiras malvas. Enfim. Daqui a pouco vou subir na camioneta e voltar para a estrada, com a janela aberta para ouvir os grilos. Até lá, com a t-shirt amarrada à cabeça, fico escorado de lado num pinheiro a espera do dia. É assim que ele costuma chegar, nem visto nem ouvido, empurrado por densas voltas onde rende-se a uma vertigem que não consegue explicar. Tudo bem. Não é preciso nenhuma precaução. Uma clareira em um bosque, algumas pedras, um rio ao fundo: é o que basta para o nascimento de uma fada. Mas um gajo tem de ver com os próprios olhos, todos os itinerários do diabo. E depois o diabo à mesa, a engolir algumas almas, a rasgá-las com a boca cheia. As mulheres suplicam, não exigem explicações, carregam resgates, as mãos cheias de jóias, a açucarar os abismos. E o diabo a rir, a beber lágrimas. Depois, lá adiante, um eixo estreito de luz a cair do poste. E por trás, o mundo. A mata e a metrópole. Juntas, de mãos dadas para o centro desse fluxo onde se vão sentir tão mal enquadradas quanto a Fernanda Câncio numa sessão de ATM dum filme pornô. Pelo céu, toda uma colecção de pendericalhos. Tóxicos e inúteis, avançam. Sem risco, sem esforço. Eles imitam os movimentos, as posturas, todas as subidas e variações. É isto. A situação empeorada, mas diáfana. Um gajo já não se comove. Mete as mãos aos bolsos e pergunta-se a rir: onde é que tens o coração? O coração é um árabe com todo o seu harém em cima de um camelo. 24 ou 25 pingentes entre as duas bossas gordurosas no dorso. E por cima de tudo. Atado por todos os lados, mil cabos, lianas, enfeites, estilo zíngaro, o demónio cabriola, cadaveriza. Não ligo a mínima. Tenho na mão a minha piça gorda, mijo um arco de pontilhados soltos. Peido, chacoalho o mangalho para cima e para os lados e entro na camioneta. Amanhã vou ver a minha gaja de Dundee, estamos separados há 3 semanas. Mas pronto, as minhas mãos vão sempre ao pão. 

 

Peor

despesadiaria às 14:51
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Domingo, 20 de Abril de 2014

 

idílios e pequenos delitos, Azul, XXXIII

 

No Liceu Nacional Sá de Miranda faltava às aulas para jogar bilhar ou para jogar GTA Vice City na casa de um amigo; nessa casita em São Vicente imitávamos “Big Pussy” Bonpiensero, matávamos peões virtuais e apreciávamos as alvinitentes alegrias da recém-descoberta pornografia amadora. Nos cafés modorrentos das vielas de São Vicente aprendi muita coisa, porque não aprendi a jogar bilhar; ainda me lembro de perguntar a um velhote por que é que um gajo na Eurosport estava a jogar com dois tacos – o velho nem olhou para mim, «deve jogar p’ra caralho esse teu amigo, pá». Era um taco auxiliar, uma rabeca. Naquela idade ainda acreditava que podia fazer tudo, pelo que não conseguir meter uma bola num buraco foi uma lição importante. Mais ou menos por essa altura, roubei da biblioteca do liceu O Processo de Kafka, que compreende vias ardentes que a escola de Dumas não ensina e que me iniciou em frustrações mais duradouras do que as do bilhar.

 

[]

despesadiaria às 12:19
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Sábado, 19 de Abril de 2014

 

A sensação que às vezes tenho é que desfrutas tanto dessa tua lengalenga que se mudares de vida é abdicares dela o que mais te vai custar. Quando começas a falar do agonizar irritante das gaivotas pela manhã, da luz porosa e multicolor que envolve o jardim após o corte da relva, do gingar trôpego e flutuante do corpo no fim de uma tarde de cerveja e fadiga, e em como precisas mesmo de te libertar do desprezo que carregas no peito com a bonomia do agricultor que traz na algibeira tesouras de podar, fico mesmo com a sensação de que nem te esforçaste por ouvir o que eu disse: pára de usar a beleza como um analgésico, por favor! Nem é uma necessidade, estás viciado, é só isso! Vamo-nos divertir, que seca, jogar badminton, dançar, vamos, vou pagar, não aguento mais esta melopeia soporífera, que fim de tarde enfadonho, meu Deus, não é mais estimulante falar contigo, vá lá Tomás, vá lá, vamos sair daqui.  

 

pmramires

despesadiaria às 12:29
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Sexta-feira, 18 de Abril de 2014

 

Acordei. Descalcei os sapatos, e voltei a dormir. Dormi 9 horas seguidas. A merda é que agora não encontro mais o que estava a escrever neste filho-da-puta do meu computador. Bom, tudo bem, em dois minutos a semana acaba. E não é difícil saber por onde começar. Um blog como este, diria La Rouchefoucauld, é sempre uma derrota de todos. Eu digo que não. Mas a minha credibilidade nestas coisas é, admito, suficiente para atolar qualquer iniciativa nos próprios louros. Enfim.

 

Que cada um tome nota no seu caderninho de erros: o pátio da casa da minha tia é um morrinho mais ou menos ajardinado que eu, sem nenhuma capacidade de diferenciação, subi e desci muitas vezes, e que a partir de hoje por muitas e boas razões (vide 12 Angry men, de Sidney Lumet) não subirei nem descerei mais. Eu sei. Há fracassos que não se entendem.

 

Peor

despesadiaria às 15:26
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Quinta-feira, 17 de Abril de 2014

 

idílios e pequenos delitos, VII

 

Lembro-me de roubar fruta com os meus amigos de infância. Partilhávamos, muitas vezes ainda verdes, os frutos destas aventuras temporãs. Nas aldeias – longe do Alfeu e de toda a geografia épica – estes pequenos feitos têm dimensões inesperadas; cagar no chapéu de um lavrador vizinho daria que falar, pensávamos nós, por muito tempo. Não deu e, segundo as crónicas, o lavrador vingou-se cortando várias bolas de capão com uma tesoura de podar. As tardes no campo são demasiado longas sem uma bola; A. levou uma cartuchada de sal no cu para recuperar uma e, apesar das marcas permanentes, ainda hoje diz que valeu a pena. Ele ia à baliza e aquele foi seu maior sucesso desportivo.

 

[]

despesadiaria às 11:14
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Quarta-feira, 16 de Abril de 2014

 

Recordo praias selvagens, velhos tecendo redes de pesca, o cão preso por um cordel a uma bóia enfiada numa estaca, caminhos de sirga, paredes onde se lê Amo-te Sónia, escumantes volutas de desejo sintetizadas no rufar granuloso de borboletas nacaradas, corolas a que faltam pétalas, baloiços sem folgo, tu e eu... memórias como pinturas desbotadas, sonhos diariamente exibidos e nunca reclamados, prenhes de ambições gloriosamente banais... canções dilaceradas por trompetas de caça, firmes estátuas sacudidas por gentis sopros outonais, a amorfa palpitação de uma crença vazia... matizes artificiais ensopados de tédio, vigílias onde nenhuma vela arderá mais... fiascos eternamente sedutores... vidas gangrenadas por ébrios fantasmas, zurzidos mas não esquecidos, como doces tropeções de brincadeira numa tarde de Verão... jovens entesoados e deprimidos, elaborando revoltas a que sempre faltou espessura, fragmentos a que nenhum mosaico dará sentido... rituais tétricos, fachadas ocres e sinos jubilantes... campos maquilhados a cores matutinas, a frequência familiar, vozes que inibem e consolam... paixões anémicas, amarguras cintilantes, interiores entupidos de frescos vulneráveis, claustros de pavor... dias solares e dias sombrios, o fim que nos deram e que se escolheu.

 

pmramires

despesadiaria às 14:05
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Terça-feira, 15 de Abril de 2014

 

Pedro, este blog não tem nome. O URL explica-se sozinho: é a nossa quantia ganha, recebida ou gasta em cada dia. (Depois apaga-se.)

 

Tudo, como se diz, está aqui. De novo. A minha irrelevância e a tua. Essa autodepreciação que facilmente se confunde com a arrogância, com este sair-todo-jeitosinho-de-dentro-de-si-mesmo. Isso tudo que mal se ingere e logo se caga. Essa mistura de curral e abadia. Está tudo aqui. A inclinação para o picadeiro. O vínculo entre o que escolhemos e a intrujice que nos grampeia o cu (mais de uma vez, inclusive). A vaidade. A nossa e a deles. Que alívio! Não é preciso dar mais que um encontrão em cada um. Olhar para fora com a meticulosidade de uma Penelope. Falar de tudo, mas ainda assim com muita discrição. Eu sei. Tudo tem instintos. O despropósito. O meu estilo de pobre coisa. Isto pode não dar certo e por isso mesmo ser perpetuamente contemporâneo de qualquer coisa e de qualquer um. Bom, talvez não. Ninguém sabe. Ainda assim, o que esperamos ver é a porca torcer, definitivamente, o seu rabo. Não é mesmo? Eles lêem ou não lêem, é uma coisa que não nos diz respeito.

 

Peor

despesadiaria às 06:31
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