numa lan house a jogar counter strike,
entre o olhar plácido, peticego, quase sonhador
dos nerds do externato
e a agressividade sebosa dos mitras,
escrevi o meu bildungsroman.
Angst é, sores,
só acne ,
colhões cheios
e uma humilhante faca pixelada.
[]
Vou dizer duas coisas (e se quiserem isso atende pelo nome de dupla penetração).
Uma.
Tenho a razão toda do meu lado quando digo que aquela vitória do Randy Couture sobre o Tim Sylvia foi ainda mais inquestionável e vergonhosa que a derrota do Tank Abbott diante do Kimbo Slice. O que desmerece (e muito) o voluntarismo do Kimbo é que o trabalho dele estava metade feito. E não só porque o Tank Abbott é uma varanda que se vê da própria varanda, mas porque mais vale ganhar uma luta depois, do que antes.
Duas.
Quando os quatro domingos do mês passado cessarem de mandar mensagens, voltarei a miniaturizar meu almoço de quarta-feira ao lado da minha loja preferida. Na loja do casal António & Marta Siqueira, compra-se o melhor carvão para desenho desta cidade. Além disso, temos um papel canson muito apropriado e em cuja superfície a participação dos ângulos em entidades como triângulos ou losangos não levanta nenhuma suspeita, mesmo naqueles olhos brevemente fervidos pelo estrabismo, como os meus.
P.S.: Qualquer dia ainda vou dizer bem do Samuel Fuller. O meu mau gosto começa a ter um preferido, uma espécie de Lancelot para quem possa dar o braço ao passear.
Peor
era mais um daqueles dias
em que entras no café a meio da tarde
para ler umas páginas de poesia
que bonita a lisboa das sete colinas
onde ecoam vozes de crianças e de ardinas
e sobre o tejo
a lembrança de barcas em partida para as índias
e tu a sorrir o lirismo que a alma sente
tão quase indiferente
ao preço do moscatel que pediste para a mesa
a caneta azul sublinhas
linhas que te apanham de surpresa
uma bomba em cabul
o que é que isso te interessa
- azeite
Have you ever seen an assembly line? They're absolutely fantastic. Anyway, I wanted to have a long dialogue scene between Cary Grant and one of the factory workers as they walk along the assembly line. They might, for instance, be talking about one of the foremen. Behind them a car is being assembled, piece by piece. Finally, the car they've seen being put together from a simple nut and bolt is complete, with gas and oil, and all ready to drive off the line. The two men look at it and say, "Isn't it wonderful!" Then they open the door to the car and out drops a corpse!
Se o tapete rolante, os contentores, o ruído constante das máquinas se associavam facilmente a uma típica linha de montagem, os ganchos e o armazém a quinze graus negativos davam ares de matadouro, ligação que felizmente só fiz anos depois. Uma fábrica sem chaminé, o que complicava o desenho na creche; uma fábrica com apenas três homens, ao contrário das multidões operárias nas extravagâncias de Einsenstein e Vertov. Uma fábrica de gelo, gigantesca máquina quase automática, essencial a uma terra de pescadores. Ou pelo menos era-o, já fechou, claro. Agora não sei como se faz para fornecer a lota, mas uma fábrica de gelo é exemplo perfeito de um tempo de especialização em que um homem podia arriscar abrir uma loja de parafusos ou uma camisaria, negócios de outras gerações.
Não sei se posso chamar linha de montagem a uma onde nada é montado: uma torneira gigante enche em segundos uma caixa comprida de 4 x 1 x 1 metros que o tapete rolante faz avançar durante seis minutos. Lamentavelmente, a meio deste processo a caixa perde-se de vista e sai do outro lado um imponente bloco de gelo, as paredes da caixa para baixo como na caixa aberta de uma carrinha das obras e sobre o gelo descem dois ganchos que já me sugeriam ameaça antes de conhecer histórias de futuros distópicos com a humanidade subjugada por máquinas. O bloco segue, pendurado sobre as nossas cabeças, para o armazém uns metros ao lado, e a caixa volta atrás para repetir o processo.
A história que Hitchcock conta a propósito de Intriga Internacional é uma cena que nunca chegou a ser rodada nesse ou noutro filme, mas gosto de pensar que se ele conhecesse uma fábrica de gelo tão bem como eu, e se em vez de surgir de um carro recém-montado o cadáver aparecesse dentro de um magnífico túmulo transparente de 4 x 1 x 1 metros, a cena nunca teria ficado de fora.
Gouveia
detener el tiempo
concordaremos quase todos que - mais coisa, menos coisa - a vida é esta merda. uns dias assim, outros assados, mal passados, quase em sangue. mas não é sobre isso que vos quero falar. tive uma ideia para um conto. já vai sendo coisa rara, na minha idade. lembro-me amiúde do meu avô, que me contava muitas histórias sem saber que me contava muitas histórias. mas depois chego aqui e esqueço-me de vos falar sobre o meu avô. enfim, também não era sobre isso que vos queria falar. tive uma ideia para um conto, dizia. era uma criança numa aldeia (é sempre uma criança numa aldeia, diria o freud). mas era mesmo. a criança da aldeia brincava sozinha, mui-to triiiste. de repente (as coisas nos contos acontecem sempre de repente, que não há cá muitas linhas para explicar tudo e compor o ramalhete, como fazia o eça), de repente, dizia, uma nuvem lá ao fundo começa a chover letras. a criança corre até à nuvem e começa a chapinhar nas poças de letras. é uma criança num conto - tem que chapinhar. a criança brinca com as letras e começa a formar palavras que vão ganhando vida, aparecendo ou acontecendo de alguma forma. e assim a criança descobre muitas coisas novas que caem do scrabble do céu. uma flor, uma bicicleta, um amigo, o amor (que depois de um pontapé se transforma numa romã), o irs. se calhar isto já existe e eu li nalgum lado e não me lembro, que eu cá nunca me lembro de nada. e, se for esse o caso, estou para aqui feito parvo a pensar que tive uma ideia para um conto. mas também não é disso que vos quero falar.
um tal de joão gaspar
Se andasse de autocarro como noutros tempos, teria uma história destas por cada carreira atrasada.
A paragem de autocarro, nos subúrbios onde a ruralidade já espreita sem pudor, está cheia de miúdos da escola, mochilas excitadas com a chegada do fim-de-semana. O banco corrido de madeira riscada é guardado do sol por uma infraestrutura de plástico, com um teto em abóbada, roto pela intempérie do Inverno que já passou. Sento-me num extremo do banco e encosto a cabeça ao plástico grafitado onde se afixam alguns avisos da rodoviária. A carreira 33 para o lugarejo onde Judas perdeu as botas vai passar a ter apenas dois horários: um para as velhas virem à vila comprar chita e outro para voltarem, de braços cheios de tecidos e tralha dos chineses. Esta e outras mensagens são letras largadas ao desbarato. Aquelas velhas enlutadas, que nas suas casas caiadas têm quintais de celgas e erva príncipe, enchem as estantes de loiça em vez de livros. Os putos à beira da paragem não querem saber dos avós, a menos que seja Dezembro e uma mão enrugada lhes empurre uma nota para o bolso. Ali, alheios ao que se passa fora da redoma individualista em que a adolescência os aprisiona, mostram as gargantas potentes de histerismo e os telemóveis de última geração, a sinfonia caótica das gargalhadas com os últimos êxitos da eletrónica mais medíocre: batuques, baixos mais que baixos, os nervos na ponta do botão do play. Não há onomatopeia que descreva tamanho chinfrim.
Na outra ponta do banco está uma rapariguita, com os livros da escola no colo e uma mochilita de pele sintética aberta ao lado. O tom castanho da mochila é mais claro que o tom da pele da miúda. As pernas que lhe saem do vestidinho de flores cor-de-rosa são longas, finas e escuras como chocolate de culinária. São perfeitas, sem cicatrizes ou hematomas que perturbem a imensidão do negro, e parecem ter a textura suave da mousse na qual costumo usar o chocolate que lhes empresta a cor. Reparo que se mexem, um movimento periódico e nervoso que me obriga a investigar o que mais há na pretinha: uns braços delgados, uma cara redonda tapada por uma mão que segura a cana do nariz com dois dedos, gesto de tristeza mal disfarçada. O cabelo também é negro, mas é carvão, tão crespo e seco que não forma cachos encaracolados. Em vez disso, mima o aspeto de uma nuvem de fumo carregado (carvão que queima!), selvagem, não se deixa domar pelos elásticos que o querem subjugar, espeta-se e rodeia a cabeça da pretinha, qual halo de divindade africana. Fosse este cabelo escorrido, como as revistas ensinam todos os cabelos a ser, e tapar-se-ia a face da miúda, ocultando os olhos vermelhos, cheios de água.
Um facto curioso: a composição química das lágrimas é alterada pela razão que as inventa. Lágrimas de felicidade são diferentes das de tristeza, ou das de dor, ou das de raiva. Porque chora a pretinha, enquanto os seus pares gritam obscenidades, numa ode à brejeirice do ensino médio, isso não sei dizer. Os meus olhos prendem-se por largos minutos no choro furtivo, queria que fossem espectrómetros capazes de desvendar com que mistérios a gotas salgadas desenveredam o seu caminho, até caírem no abismo da maxila ou serem limpas pelas costas da mão. A miúda devolve-me o olhar, eu não consigo responder à súplica velada porque tenho sentimentos cobardes. Se tivesse na mala lenços de papel, oferecer-lhe-ia um. Ela não os tem; da mala que se abre a seu lado espreita uma carteira vermelha e um telemóvel mais barato do que aquele que oferece ao momento a banda sonora despropositada. Vejo uma corrente com chaves e um estojo com dois ursinhos gordos abraçados, e entretenho-me assim nos minutos elásticos que antecedem a chegada da carreira. Olho para a rapariga, para a sua mala, para o horizonte carregado. Depois, fixo as minhas mãos pálidas, manchadas pela rede sanguínea que as alimenta, fios arroxeados em atividade, incapazes de me fazer levantar e dizer à pretinha que tudo vai ficar bem. Nas mãos dela, os capilares não se vêm, nas minhas, pulsam num excesso de vida que daria de bom grado a quem mo pedisse. O autocarro chega sem que eu dirija palavra à miúda. Espero que ela saiba que tudo vai ficar bem, seja pela boa vontade do Universo ou pelo alívio de uma corda pendurada.
S. White
(conto às prestações)
2.
«Estavas com o Pedro… Mas como é que eu iria saber se vocês estavam bem? Das últimas vezes costumavam vir falar aqui para o parque infantil do condomínio antes de se despedire…»
«Mãe, será que eu estou a ouvir bem? Tu costumavas espiar-nos, mãe?! Eu não acredito que tu costu…»
«Não vos espiava nada, rapariga, não sejas ridícula. Somente tenho o hábito de dar uma olhadela ao parque enquanto faço o jantar e tinha reparado que vocês…»
«Não precisas de te justificar, mãe, eu entendi perfeitamente o que tu…»
«Sofia, não sejas malcriada! O que estás para aí a fazer? Vem jantar antes q..»
«Já vou mãe, já vou! Deixa-me aos menos trocar de roupa em paz...»
A Srª Isabel, que se mantivera ao longo da conversa a dois passos da entrada da cozinha, voltou ao recolhimento da mesma. Como a pobre aventureira que desespera por reencontrar a bússola perdida, ou como o seu cabelo anárquico que suplica pelo regresso do elástico que lhe devolva a forma e lhe dê um sentido, a Srª Isabel esperava novamente pela filha e dir-se-ia que pela filha estaria sempre pronta a esperar.
Quando Sofia entrou na cozinha, vestindo uma sweat desportiva branca, de carapuço, o logótipo de pelúcia vermelha levemente ondeado pelos infantis peitinhos de quem a vestia, dirigiu-se à banca, lavou e enxugou as mãos e sentou-se à mesa, ignorando, mas de um modo estranhamente não ostensivo, próximo até da delicadeza, a outra pessoa que por lá estava.
«Sofia, tens a pele enrugada do frio. Por onde diabo andaste com esse rapaz? Estamos em Fevereiro, meu Deus, o tempo não está para andarem por aí a passear pela Avenida dos Banhos como se…»
«Mãe, podes passar-me a quiche, por favor?», interrompeu, dando a ideia de nem estar a ouvir o que a mãe dizia.
«Não irás tu manchar mais essa camisola? Ainda ontem a passei a ferro. Vê se tens cuidado. A tua mãe está farta de… Sofia, estás a ouvir?»
Numa sala de cinema escondida algures na sua mente, a conversa com Pedro tinha sido rebobinada e era de novo exibida, captando toda a sua atenção. Era ainda com ele que ela dialogava. Depois de fazer o pedido à mãe, pegara no telemóvel e encontrava-se distraída a enviar-lhe uma mensagem. A sms dizia:
Tu consegues mesmo deixar uma pessoa deprimida.
«Sofia, queres pousar esse telemóvel? Quantas vezes já te avisei que às refeiç…»
«Está bem, mãe, desculpa.»
Esta última palavra, dita assim, como um assentimento inesperado, denunciava uma brecha por onde a Srª Isabel não resistiu a avançar. Após uma dentada na empadinha de espargos, arriscou: «E então, o quê que diz esse rapaz?...»
«O Pedro?... Disse-me que vamos todos morrer, muito em breve.»
«O quê?!», a Srª Isabel apressava-se a engolir, «Sofia, esse rap…»
«E emprestou-me um livro cujo título é Morte a Crédito…»
«Sofia, esse rapaz não está nada bem. Não te quero ver mais com ele. Pode até ser perigoso! Nem quero imaginar o que diz esse livro. Aposto que...»
«Mãe, não tens de te preocupar... Não é nada disso... E quanto ao livro, ele disse qualquer coisa sobre ser um livro que relata as diversas reacções de uma sensibilidade exposta a tudo o que lhe é mais agreste. Ele agora fala assim, de sensibilidade e em síntese. Dantes estava sempre a saltar de um tema para o outro. Eu chegava a casa e não me lembrava de um único tema que tivéssemos abordado. Falávamos de mil coisas, era de loucos! Mas de certa forma também divertido e interessante... Agora ele parece que anda ali à procura da expressão ideal daquilo que quer dizer, e depois, quando acha que a encontrou, cala-se. Por vezes não diz rigorosamente mais nada o caminho todo. É deprimente!»
(continua)
pmramires
porque a morte
meu amor
é natural;
e quando todas as folhas,
todos os amarantos
se perderem na perdida Creta
cessará toda a límpida necessidade
de figos, de mel
– de comparações.
Tudo isso são pelo menos vinte hectares de nada. Para fazer caminho é preciso subir por qualquer dos montes. Ou por estes ou por aqueles. Mas isso é um cofre que não vou querer abrir. Justamente para estar dispensado, mais tarde, dos cuidados e trabalheiras do retorno. Tenho o braço para fora da Kombi. O gajo de turbante tem na mão um punhado de amendoim. Os dedos grossos como bananas. Leva aquilo ao nariz. Avisa: 75% do que chamamos gosto, é cheiro. A kombi tem 3 buracos de bala na porta do motorista. Alugada por 35 contos o dia. À leste, seguindo em frente (caso os turcos o permitam, naturalmente), vira-se à esquerda rente ao Bósforo e aí estamos. Claro, podíamos desdobrar o mapa sobre os joelhos. Assim nós também teríamos por onde nos perder. Mas não viemos para ver o Castelo de algodão, nem nada dessa Turquia que pertence a um mundo de brinquedos. Bem. Podíamos largar tudo e voltar à Enna. Mas, no fundo, a razão para isso não existe mais. No ano que vem, a uma vida ou duas de distância. Talvez.
Peor
Um homem só se apercebe de que nunca esteve perdido até ao momento em que a cidade o encontra. Penso nisto enquanto, a meu lado, o lânguido rosto da noite soçobra na mesma cama onde lençóis e sonhos convivem desengomados. Talvez que o palpitar da estrela que arde sobre a minha testa mais não seja do que morse na língua estranha de um coração que, como o meu, espera. Pudesse eu fazê-lo, partiria nesse eléctrico que agora desliza, sobre invisíveis carris, entre a Basílica da Estrela e uma estrela de Andrómeda. Em noites como esta não é difícil seguir o seu trajecto pela abóboda celeste sobre os telhados de Lisboa. Perco-me, como de costume, nesse trilho e também na música das palavras, como se nessa perdição deliberada fosse encontrado, por acaso, pela poesia.
A cruzar os ares, o teu sorriso, o teu sorriso a invadir-me o quarto, a apossar-se de mim, a quebrar-me as forças, a entranhar‑se‑me nas unhas. O teu sorriso de louca e de criança entrando em mim sem pedir licença, como alígera besta célere. Ganhei horror a esse sorriso que com um dedo (e talvez dois!) em vertigem na fresta me descose a ferida aberta, uma chaga, no lado esquerdo do abdómen. Não sei bem se isto me lembra Cristo; se Prometeu; ou se não lembra ao Diabo. Sei que é o meu caminho da paixão e será paixão até ao fim.
Repara que continuo a pensar nisto, a minha cabeça encostada às estrelas, um cigarro guiando os dedos no seu percurso entre o nada e a orla marítima dos meus lábios. O tempo de escutar o pulsar descompassado da minha respiração, num sinal de que em mim arde uma vontade infantil de me masturbar e um desejo reprimido de pôr uma bala nos cornos.
E tu agora aqui, sorvendo da cana o suco, enquanto te fotografo pornograficamente, tu: toda inteira e falaciosa; eu: perdido de amores entre as estrelas; tu: em vaivém entre umbigo e glande; eu: errando por Cassiopeia; tu: deglutindo a via láctea; eu: big bang de um novo universo.
Encostas-te a mim, prostrada, mínima, domada. Pões o dedo na ferida, dezorganizas-me as entranhas, perguntas-me as horas e são quatro da tarde do dia em que começaste a maldizer os relógios, e em que eu – lambendo tudo em ti: as feridas as chamas o umbigo tatuado no flanco de um sonho que me acorda enquanto tu dormes – deixei no quarto um rastilho de pólvora para uma melodia de fuga.
azeite
Não percebi imediatamente que podia furar a convenção social das horas de almoço num escritório e que não só era possível evitar os meus colegas, como deixar de frequentar os snack-bares especializados em refeições económicas (ou qualquer outro restaurante). Não foi imediato nem fácil; foi necessário andar uns meses quase sem dinheiro e - de trocos contados - passar a almoçar duas sandes num banco de jardim. Certo, soa a pequeno melodrama, mas, à parte o facto de um almoço feito de sandes, peça de fruta e banquinho ter um potencial deprimente, fui-me convencendo sem dificuldade que o Sol era agradável, que toda a gente faz isto lá fora e que assim sozinho a literatura ganhava mais uma hora na minha vida. Foi tudo verdade e, mesmo após a necessidade, afeiçoei-me a uma rotina de sandes, livro e dois cigarros. De todos os sítios onde já desisti do Ulisses, este foi seguramente o mais agradável.
Nem só eu gostava de celebrar o almoço desta forma. Ao lado do banco que eu ocupava todos os dias, com escrupulosa pontualidade, às cinco para a uma da tarde, havia um outro, a menos de um metro, que ia sendo usado por gente que nem sempre me deixava ler, mas que não tornava por isso a hora de almoço mais mal empregue. De entre estes meus novos amigos, contavam-se:
Uma cabeleireira, que também passava o almoço sozinha. Sem hábitos de leitura, ou telefone com internet, aproveitava a hora para ligar a amigas e desabafar sobre a sua superiora. De todas as vezes ouvi a mesma história, pelo que suponho que ligava sempre a pessoas diferentes, e à medida que a narrativa do ódio crescia (a estrutura passava sempre por uma exposição das causas de indignação seguida de fantasias de homicídio ou agressão qualificada) ia falando mais baixo enquanto olhava nervosamente em volta. O cabeleireiro era pertinho;
duas miúdas de cerca de vinte e cinco anos, vestidas com o que habitualmente se chama, com propriedade, roupa justinha, e sapatos de salto muito alto e coloridos (os próprios saltos eram largos poliedros coloridos). Dado que uma das duas era extraordinariamente mais atraente do que a outra, a hora era passada invariavelmente a falar da vida sentimental da primeira, sempre difícil, intercalada a espaços por conselhos, raspanetes e opiniões da segunda, sublinhadas por expressões como «duh» e «hello??» muito eficientes na demonstração da auto-evidência da sua verdade. Tanta sabedoria e experiência desta eram um mistério para mim mas um dado assegurado para aquela;
durante cerca de quinze minutos, sempre à mesma hora, uma senhora passeava o cão sozinha e rondava o meu banco em elipses não muito alargadas. Não era a única pessoa que o fazia, e também não era a única que falava com o cão. Mas não usava a habitual baby talk de alguns dedicados donos de animais de estimação. Eram conversas completas, com pausas para resposta do interlocutor. Fiquei a saber, por exemplo, que a espera no Santa Maria é desesperante, que em determinado dia a consulta fora adiada e que pensaram marcar para o seguinte, mas a doutora ia fazer greve e portanto só depois do fim-de-semana. Após consultar o cão decidiu aproveitar esses dias sem consultas e ir ao dentista. Uma cereja: a senhora tinha uma gaguez tão acentuada que eu acreditava sentir arritmias de cada vez que uma palavra ficava presa a meio;
duas outras raparigas, a estudar inglês. Em voz alta, claro. Diariamente levavam uns apontamentos que liam uma para a outra, pontuando a espaços o estudo com risinhos descontrolados. Gravíssimos - gravíssimos - problemas gramaticais mas, surpreendentemente, uma inatacável pronúncia. Mais curioso ainda, estas duas pessoas falavam numa língua que a minha ignorância só permite situar numa ex-república soviética e, pontualmente, em português. Este com mau sotaque, ao contrário do inglês. É muito desconcertante ouvir frases extremamente erradas com pronúncia de Oxbridge; e
dois senhores reformados, os meus preferidos, pessoas de sessenta e alguns ou muitos anos, que conversavam sem parar, em russo (neste caso faço questão de acreditar que era em russo). Nunca quis tanto participar numa conversa. Ora se indignavam, ora expunham, ora se riam com vontade, sempre sem que qualquer um dos dois ganhasse ascendente sobre o outro, algo que aliás nunca pareciam pretender. Tanto quanto sabia podiam estar a trocar coscuvilhices como as da cabeleireira, mas é impossível ouvir dois velhos a falar em russo e imaginar que a conversa não envolva Pushkin, gambitos obscuros, Napoleão, ou, pontualmente, a carreira de um qualquer Lokomotiv esta época. Há piores preconceitos.
Gouveia
(nunca) é só um jogo.
num vinte de maio já adolescente o real madrid ganhou a final da liga dos campeões. um zero à juventus. golo do mijatovic. efeméride sem demasiado relevo não fora dar-se o caso de várias coisas. por razões de vida ou de morte que não são para aqui chamadas, o futebol espanhol chegou-me primeiro às mãos e aos pés do que o português. foi há muito tempo, ainda a vida era simples: coca-cola ou pepsi. sagres ou super bock, ovomaltine ou milo, real madrid ou barcelona. desde muito pequeno era do real madrid, quando quase toda a gente era do barcelona. de modo que nesse vinte de maio vi a final da liga dos campeões com a camisola do mijatovic orgulhosamente colada ao meu mui franzino - à data - dorso. a rebeldia do rock adolescentódepressivo calou-se um segundo, um minuto, o sessenta e seis, e do pé esquerdo do mijatovic, aproveitando uma bola solta, saiu o golo que dá razão e sentido a tudo, a euforia ingénua e desavergonhada, a esperança num mundo melhor. e festejámos (ah caralho, se festejámos.) e depois voltou a vida. o nada. o silêncio enquanto impossibilidade metafísica. uma memória ou outra mal disfarçada, a eterna espera pelo teu telefonema, a insónia que não é bem insónia, já é só mais uma almofada vazia que jaz ali ao lado, a angústia patética, a espera desesperada pela morte. ou pelo menos a esperança de envelhecer e aprender a escrever com menos adjectivos, como dizia o eugénio.
um tal de joão gaspar
A cronista desculpa-se pela carne que é fraca.
Passei uma hora a cirandar pelo terminal A do aeroporto de Zurique. Quando me cansei, sentei-me num dos bancos estofados a pele bordeaux, com boa vista para os painéis azuis das partidas. Ia olhando para eles, em intervalos de tempo espaçados pelo aborrecimento. Obrigaram-me a rezar credos em criança: é assim que justifico a esperança de ver desaparecer as observações pintadas a vermelho que me fazem bufar de impaciência quando encontro o meu voo na lista. Betriebiiche Verspätung. O avião tinha problemas técnicos, dizia a voz omnipresente do aeroporto, no alemão-suíço que magoa os ouvidos. Alemão que traz más notícias. Alguém fintou a morte por mim e detectou uma falha, um defeito, um atraso de três horas num terminal frio para que as minhas tripas não acabassem espalhadas pelo Olimpo ou no chão de alguma terriola em caminho. Naquele momento, era difícil agradecer o zelo. O que me levava a Atenas era irrelevante para todos os deuses que lá habitam e por isso não largava a ideia de que se esqueceram de mim naquele corredor desolado. As horas pareciam lava viscosa que toldava a minha noção de ser, a espera eterna e a antecipação da viagem faziam da minha mala a pedra de Sísifo que ia arrastando até à zona do Duty Free.
E agora que estou regressada à insignificância do meu quarto português, é pouco mais o que consigo escrever sobre a semana que vivi. Cheguei a Atenas de noite para a descobrir guardada por cães vadios, de olhos tristes e baços à procura do carinho de uma taça de comida. São animais miseráveis, de pelo enriçado pela falta de cuidado. Prostram-se nas entradas dos templos, aqueles esqueletos de civilização esquecida. Mas os cães, os templos, as ruas esburacadas pela dificuldade dos tempos, tudo se mistura numa poça de memórias mal definidas. O que recordo da Primavera grega leva-me ao elevador do hotel, que sobe para lá das balaustradas do Parthénon. O elevador estava cheio de gente estrangeira que se conhecia pela primeira vez, mas foi no Jannis, o físico alemão, que o meu olhar se prendeu. Mais tarde, depois de andarmos entre os cães danados, de subirmos ao ponto mais alto da cidade, de escorregarmos nas pedras puídas da Acrópole, foi nele que a minha boca se perdeu. A recordação mais viva que tenho de Atenas é a daqueles olhos azuis, tão azuis!, a observarem-me enquanto eu procurava a minha roupa espalhada pelo quarto. Os traços germânicos sobre a luz da cabeceira a pedirem-me para ficar mais um pouco, o calor no meu ventre a lutar contra a urgência do tempo que corria para o aeroporto.
Sou uma cronista miserável, como miseráveis são todos os corações apaixonados. Amancebei-me sem querer, à sombra das laranjeiras gregas. Do regresso ao trânsito e aos aviões atrasados, podia falar sobre o movimento nas ruas. Homens e mulheres ladeavam a estrada com cestos de fruta e legumes frescos, em preparação para o mercado do dia seguinte. Gritavam palavras desconhecidas, enxotavam os cães com destemor. Mas não sei dizer mais nada, o bulido das gentes era uma mosca da fruta, pequena drosófila irrequieta, enquanto o meu corpo tremia com a violência de uma varejeira perdida nos cortinados. Procuro sair de mim, absorver o alheio para alimentar a minha arte, mas o toque do alemão ainda me arrepia a pele. Que raio de história me havia de acontecer. É melhor ficarmos por aqui.
S. White
(conto às prestações)
1.
Após tirar o avental de corpo inteiro e o pendurar num gancho de plástico, deslocou-se à pequena janela da cozinha, afastou ligeiramente a cortina e olhou para o parque infantil que, apesar de recente, à luz baça do solitário candeeiro tinha um aspecto lúgubre e abandonado. Era a oitava ou nona vez que o fazia, mas agora demorava-se um pouco mais, hesitando em correr de novo as argolas para a posição inicial. Parecia acreditar que, esperando mais um momento, a sua paciência seria recompensada. Depois de perscrutar, de uma forma extremamente concentrada, cada um dos elementos do parque, ainda se deteve por alguns segundos, apreensiva, no acesso escuro ao mesmo, até que virou costas à janela com preocupada resignação. Já tinha ligado imensas vezes à filha, que porém se encontrava apenas um tudo-nada atrasada para o jantar.
Em cima da mesa arrefeciam quatro triangulares empadinhas de espargos, uma redonda e espessa quiche de marisco, e um número indeterminado de bolinhos de bacalhau. Dado que tudo aquilo se destinava a alimentar só duas pessoas, podemos afirmar quase sem nenhum risco que a Srª Isabel tinha encontrado naquela tarefa um excelente modo de se entreter, mantendo à distância aqueles sentimentos depressivos, de solidão, que ao anoitecer tanto a apoquentavam.
Ao percorrer a cozinha em nova busca pelo telemóvel, puxou o totó que lhe prendia o cabelo e largou o elástico azul, de um modo displicente, numa cestinha de madeira que acumulava um sortido extraordinário de bugigangas femininas. Quando finalmente o descobriu em cima do micro-ondas, por debaixo de um puído e coloridamente manchado pano de cozinha, ouviu o familiar ruído da fechadura da porta de entrada, que, paradoxalmente, chegava aos seus ouvidos com um suave efeito tranquilizador.
«Sofia?...», chamou, pegando no telemóvel antes de dar uma espreitadela à sala adjacente. «Sofia? Estás aí?...»
«Sim, mãe, cheguei…» A voz de Sofia vinha do seu quarto, para onde se tinha dirigido rapidamente mal entrara em casa.
«Sofia, tu não ouviste as minhas chamadas?»
Como resposta, o bater seco de uma porta de guarda-fatos.
«Sofia, estás-me a ouvir?...»
«Sim, mãe, o que é?...»
«Sofia, por acaso não ouviste nenhuma das minhas chamadas?»
«Ouvi, mãe», disse, e fez uma curta pausa de quem parece estar a vestir uma camisola, «tu não paraste de ligar praticamente desde que saí de casa...»
«Sofia, então por que é que não atendeste nenhuma chamada?... Será que posso saber? Gostas de deixar a tua mãe pre…»
«Mãe», interrompeu, dirigindo-se à porta do quarto, «o quê que tu querias, mãe? Podes-me dizer o quê que querias? És tão…»
«Sofia, estava muita preocupada contigo. Já anoiteceu e estás atrasada para o jantar. Tu sabes que eu fico sempre muito pre...»
«És tão chata mãe, mas tão chata… Ainda não passaram dez minutos da hora combinada! E eu estava com o Pedro, não andava por aí sozinha a…».
«Estavas com o Pedro… Mas como é que eu iria saber se vocês estavam bem ou não? Das últimas vezes costumavam vir falar aqui para o parque infantil do condomínio antes de se despedi…»
«Mãe, será que eu estou a ouvir bem? Tu costumavas espiar-nos, mãe?! Eu não acredito que tu costu…»
«Não vos espiava nada, rapariga, não sejas ridícula. Somente tenho o hábito de dar uma olhadela ao parque enquanto faço o jantar e tinha reparado que vocês…»
(continua)
pmramires
essas ardentes vias, II
Ver para lá da obscenidade, que está lá e parece não estar, que se dissolve na fantasia. Daniel atirava esta ideia de Goncourt ao ar, apanhando-a primeiro com uma só mão e depois, mais convencido, com o corpo inteiro. Racionalizar o voyeurismo, beber rum Brugal, comer tomates recheados são tarefas para o corpo inteiro e cada gesto molda o pensamento; talvez Daniel nunca se lembrasse de Goncourt se não tivesse, por acaso, encontrado um álbum de pornografia tentacular que o lembrou d’ O sonho da mulher do pescador de Hokusai que o lembrou das palavras de Goncourt sobre as gravuras Shunga; talvez fosse o cheiro adocicado dos tomates ou as menos doces palavras da ruiva; talvez o Brugal que sempre o lembrava de parafilias, panamás e de professores de filosofia pederastas a pulular, com os seus fatos brancos e água-de-colónia francesa, nesse paraíso dominicano – luz, calor, e um ardor que começa e acaba com uma receita médica: “um comprimido antes de, e cuidadinho com o tomatal, amigo”.
(continua)
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Eu sei que lá adiante, o dia de hoje vai se tornar uma dessas lembranças capaz de converter o presente em mera fantasmagoria. Estamos em seis, ao lado da Kombi, a comer um guisado de cão. De início, não sabia. Quando começaram a latir enquanto comiam, não quis acreditar. O "cozinheiro" fez que sim com a cabeça várias vezes. Depois levantou-se, desempenou os ombros. Posso ver as fezes brancas que uma ave deixou nas costas da sua jaqueta. Ele volta, desembrulha um pedaço de lona. Ali, aglutinada em parafuso, a pele ensanguentada parece um coração de seda amarrotada, uma compreensão ao mesmo tempo subtil e básica de que afinal nem a vida é mais que uma escoriação houellebecquiana dos sentidos nem somos menos que a prova viva (ou melhor: zombie) de muitas coisas.
Peor
crescer num subúrbio como o miratejo ensinou-me a ver sempre por onde ando, nunca andando por onde me possam ver. é uma aprendizagem demorada, que se apura ao longo dos anos, nascida de um instinto de sobrevivência que é marca de casta, imagino. no miratejo, no laranjeiro, na cova da piedade, em corroios, os mais caprinos tendem a estimar a arte de passar como o vento por entre as matilhas de olhares que predam junto às esquinas dos prédios, ávidos do ricochete ocular que acenda o rastilho da sequência de palavras mais explosiva que alguém pode escutar quando tem 14 anos e um medo sem fundo:
- 'tás a olhar, caralho?
pouco tempo depois, a minha fluência nesta linguagem dos olhares correspondia, de forma justa, à reputação que entretanto havia adquirido. aprendi depressa a não dar nas vistas, a tornar-me invisível, a moderar os meus apetites adolescentes em nome de um corpo que queria demasiado esquálido para o apetite dos predadores que povoavam os meus sonhos e o miratejo.
só eu não o percebi na altura, mas haveria um preço a pagar. se o tivesse feito, se tivesse compreendido, ter-me-ia furtado menos ao risco de regressar a casa com alguns hematomas a mais e uns trocos a menos. mais indissipáveis são as fracturas hoje radiografadas nesta alma que trago a habitar-me o corpo e um apartamento em almada. a invisibilidade imiscuiu-se de tal forma no meu carácter que, deixando a pouco e pouco de ser meramente uma técnica de sobrevivência, passou a tomar conta da matéria de que me fiz homem. cedo deixei de ser apenas o tímido que conseguia passar despercebido, para passar a ser aquele de quem ninguém se apercebia. e aprendi a suportar a intolerabilidade desta solidão, que se apresentava juntamente com as borbulhas que me começaram a colonizar o rosto, como uma novidade. aos poucos descobre-se que a solidão não desaparece quando se limpa com um resto de papel higiénico a bola de pus disparada contra o espelho da casa-de-banho.
os anos passaram e nunca mais regressei ao miratejo, mas ainda hoje mantenho traços indelevelmente invisíveis na minha personalidade. continuo a ser bastante eficaz em situações que requerem alguma discrição, eximindo-me com elevada taxa de sucesso de encontros indesejados: pais de alunos que me querem dar uma palavra no final do dia à saída da escola; vendedores de time-sharing a barricar-me as ruas; os olhos treinados dos chacais que farejam o turista acabado de chegar à cidade. reconheço, portanto, que continuo a encontrar vantagens na matéria invisível de que sou feito. falta-me é uma solução que evite que a sua eficácia se estenda para além do meu controlo. como naqueles momentos em que nada pode ser mais contrário aos meus desejos do que passar despercebido – a beber sozinho, curvado sobre um tampo de mesa de café - aos olhos de uma mulher que passam indiferentes à água de beber que trago nos meus.
azeite
Calculávamos nós, todos tinham uma boa história, mas a melhor, e da qual nunca duvidámos, era a de que o Sr. Lapão assassinou a mulher, quando tinha coisa de vinte anos. Pelas nossas contas estaria ali há mais de quarenta. Um doce de pessoa, podíamos jurar. O mais velho chamava-se Elvino (eles tratavam-no por Administrador, nós não), já tinha passado os setenta e costumava sentar-se sozinho numa caixa de electricidade na esquina mais distante da rua. Vestia sempre o mesmo casaco velho, um blazer desportivo azul celeste, e na cabeça um fedora impecável como os que os miúdos agora deram em usar. Vítor, bastante mais novo, tinha mau ar e usava-o a seu favor a quem o deixasse. Mais de um metro e noventa, uns quarenta anos e uma barba completamente branca, aparada a tesoura. Andava devagar e silenciosamente, o que era desconcertante para nós, e pedia cigarros como quem ameaça. Quem lhe dissesse que sim era dele, mas um não seguro virava o jogo de tal forma que nos confrangia o pedido de desculpas consequente. Havia mais, procuravam passar à nossa frente na fila para os gelados na papelaria, bebiam coca-cola sem cafeína ao balcão, eram mais inconvenientes, mais lentos, pareciam mais inconformados mas menos hábeis do que os outros três. Os empregados dos estabelecimentos à volta tinham instruções claras: nem álcool, nem fiado. Tirando isso, eram calorosos quanto baste e, salvo o da papelaria, gostavam de toda a freguesia que fosse ali do bairro.
Bom, não chegava a ser um bairro, era uma rua fechada, só com duas saídas nos extremos.Uma recta de cerca de duzentos metros que não era ponto de passagem para ninguém, os carros eram raros, não havia praças de táxis nem paragens. Aliás, não passavam táxis ou autocarros, ninguém chegava por acidente, só querendo. Quando acabavam as telenovelas, a minha mãe tinha o hábito de convidar colegas do trabalho para jantar e verem juntas o último episódio, e quase ninguém dava com o sítio, mesmo as que já lá tinham estado. O comércio parecia resultado de um minucioso plano abandonado a meio. Uma papelaria de um velho nojento que tinha por nós profundo desprezo; o café onde, durante todo o dia, se iam encontrando os enfermeiros que pegavam ou largavam turnos, maioritariamente homens, enormes, densos, com excesso de boa disposição e, curiosamente para enfermeiros - achava eu - sempre aos pares como os polícias; uma mercearia de uma senhora que tinha sido anos antes projeccionista no Cinema Paris na Estrela; um barbeiro que não dizia uma palavra e se vestia (por baixo da bata, evidentemente) com distinção de cavalheiro; um sapateiro que, para nosso êxtase, se atirava ao chão, de costas, e rodopiava sobre si como uma barata moribunda sempre que entrava na oficina determinada vizinha; e uma casa de pasto onde, gabava-se o dono, o Matateu bebia em tempos um bagaço todos os fins de tarde, mas onde nunca jantou. Tínhamos praticamente uma autarcia.
Sabíamos bem onde terminava o território: do lado oriental a rua fundia-se com a calçada adjacente e deixava de ser nossa aí mesmo. Lembro-me de um cão vadio que costumava seguir-nos e que parava quando entrávamos na rua por este lado. Ficava sentado no cruzamento de olhar resignado como se uma vitrine o impedisse de passar. Do lado oposto, uma estreita ponte romana (não era nada, mas tinha arcos) ligava a nossa rua ao bairro de cima. Nenhum rio lhe passava, mas, dizia o meu pai, aquilo já tinha sido terra de ribeiras abundantes, tapada de caça real, e arredores tranquilos de Lisboa. Parecia-me orgulho de pouco valor; tudo o que sempre tinhamos conhecido eram carcaças de prédios que nunca devem ter sido bonitos. Eram (e ainda devem ser hoje) construções incaracterísticas que revelam nada de outro tempo. Há um charme digno e bonito nos bairros operários de filmes antigos que nunca vi por ali. Nessa ponte, terreno neutro, resolvíamos os nossos problemas com os de cima em jogos de balizas de um passo ou de outra forma pior.
No centro da nossa rua, enfrentavam-se dois edifícios com admirável equilíbrio: o meu liceu,a norte e, do outro lado da estrada, o Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, ou, como era mais habitual chamar-se-lhe na voz popular local, o antigo sanatório.
Gouveia
johnny keeps walking
irish pub, sevilha. seis da tarde, de uma tarde qualquer. uma guiness, por favor, para o livro dos recuerdos. um balcão quase vazio, meia luz, a pedir um quadro do hopper. a guiness já vai a meio caminho. lembro-me mal de uma frase antiga: "se vês o copo meio cheio, devias beber o resto." bebi o resto. a segunda trouxe uns cacahuetes de cortesia. ela entrou, apontou o indicador à prateleira que vigiava as costas do camarero, trocou moedas por tabaco e saiu, sem que lhe pudesse ouvir a voz. finjo-me poeta. já poeta nunca fui. ao fim e ao cabo somos todos soldados sem guerra. generais sem tropas. metáforas sem sentido. outra guiness? sim, por supuesto. bebi três ou quatro? cinco, diz ele, que faz de conta. a continha.
um tal de joão gaspar.
Ficar velha assusta-me tanto que já tenho a minha morte planeada.
A minha avó adoptou a Dona Esmeraldina como comadre emprestada quando se zangou com a comadre verdadeira, se é que tais coisas existem. Trata-a assim mesmo, por comadre emprestada. Conhecem-se há mais de quarenta anos e os lanches demorados, chá e torradinhas ora na casa de uma, ora na casa da outra, duraram até as pernas o deixarem. Agora, só a minha avó não verga as costas sob o peso da idade. É ela que todos os Domingos vai a casa da amiga para trocar as novidades do alheio por uma madalena, depois de lavar a roupa no tanque de plástico que lhe comprámos por nunca se ter habituado à máquina de lavar. Mas a semana tem mais dias e a Dona Esmeraldina vive na solidão do nojo. Tenho uma vaga memória do seu marido, o Zénita. Do terraço da casa dos meus avós, via-o passar numa carroça puxada por um cavalo cinzento. Faltavam-lhe dois dedos numa das mãos. Depois, faltou-lhe o coração e ficou a Dona Esmeraldina sozinha, a colecionar roupa preta e a telefonar para casa das amigas à procura de companhia.
Sei que a Dona Esmeraldina me conhece desde sempre, que disse as primeiras palavras para a divertir e que os meus primeiros passos a encheram de orgulho. Como todas as amigas da minha avó, decerto houve uma altura em que odiava a forma como me apertava as bochechas ou se ria dos refegos nas minhas pernas gordas. Os anos passaram. A Dona Esmeraldina deixou de ter uma cara. Apenas lhe conheço a voz, das vezes em que lhe atendo o telefone. O timbre é frágil e treme como quem pede desculpa a medo. Olá, Dona Esmeraldina, como vai?, digo eu, entretenho a velha com cortesia, falamos um pouco sobre o tempo e a saúde, até eu encontrar a minha avó debruçada sobre o tanque da roupa ou a passar vistoria à porcelana chinesa da sala. O diálogo acaba por se estender para lá do que a educação manda. Às vezes, a minha avó cruza os braços e bate com o pé impaciente no chão, um metrónomo que marca o compasso da conversa que nunca mais acaba. Os seus olhos ordenam que lh e passe o telefone, o alguidar da roupa deixa adivinhar que a tarefa foi interrompida em hora pouco oportuna. É difícil terminar o debate sobre a dor ciática quando aquela voz se agarra a mim com a sofreguidão de uma lapa que sentiu na concha a promessa de uma faca.
A Dona Esmeraldina tem por mim uma admiração enorme, segundo conta a minha avó. Fala de mim a toda a gente e diz a quem a quiser ouvir que gostava de me ter como neta porque sou muito simpática e educada. Como ela me vê, não sei. O que lhe sou na realidade é a mesinha em que se apoia a custo, o naperon encardido no topo, o telefone de disco que tosse uma voz jovem, o desespero da solidão abraçado a um meato de conversa. A pobre velha não sabe que sou feita de matéria mais negra que as suas vestes: tem aquela desesperança que cega e nos faz amar a sombra de tudo o que existe. Os padrões listrados da difração da luz sob uma porta. O cheiro das folhas de eucalipto jovens a brotar no campo, entre as bermas pejadas de cuquinhos e alfavaca de cobra. Ou a minha voz de cuidado, para levar no peito e aquecer a solidão. A velhice é uma infância muito triste, penso eu, ao passar o telefone à minha avó num arrepio.
S. White
Dona Cândida
No fim das aulas íamos para sua casa. O tempo do colégio tinha acabado, a independência estava longe. Alguém tinha de nos fazer o almoço e afastar da rua. Não sei como a encontraram, os meus pais, não sei como deram com ela. Apenas nos disseram um dia: «A partir de hoje, no fim das aulas, vão directos para casa da dona Cândida.» E nós assim fazíamos.
Era uma senhora muito velha, solícita e digna, a dona Cândida. Tinha aquele gosto em ajudar, a infinita paciência das avós, a que aliava uma discreta mas adorável vaidade. Nunca a vi descomposta. Usava unhas postiças, pintava o cabelo. E até a racha na grossa lente direita parecia mais um toque de estilo do que o resultado de um acidente. Apenas me recordo de a ouvir queixar-se uma vez. «Dores na coluna, meu filho.» Nesse dia ficou pelo quarto e nós no pátio das traseiras, a atirar a bola contra o portão, a tentar molhar-nos um ao outro com a mangueira do pequeno jardim, a arreliar o cão da vizinha… Asneiras.
Muito ela nos mimou, a mim e à minha irmã. Um dia deixamos de ir lá. Não mais lá voltei. Penso que a minha irmã também não.
Ontem, ao fim da tarde, enquanto passeava pela cidade, veio-me à memória a dona Cândida, e decidi ir rever a casa. Tinham-na destruído. Totalmente. O próprio muro que nos afastava da rua estava por ali caído, esfarelado… Estão a construir um prédio. Outro. Quatro andares. Tudo muda, bem sei. O que nos era afeiçoado talvez apenas o fosse à custa de um lugar querido a alguém. E ainda primeiro que a casa foi com certeza a dona, o que é muito pior. Mas... que acre gosto!... E que golpe na memória! A minha irmã vive longe, os meus pais já cá não estão. Em breve eu mesmo me irei embora… Tudo então se acabará.
A minha vida não está pior hoje do que já esteve. Ao fim-de-semana até bem que me divirto, com novos e velhos camaradas. Na verdade, vivo uma autêntica Primavera. Colho frutos que não me lembro de ter plantado... Espevitei a sorte, o olhar sofrido caiu por si. Mas destas mágoas doces ninguém escapa. Fica um vazio. Dói.
Precisava de contar quem foi a dona Cândida. Antes que eu parta também.
pmramires
essas ardentes vias, I
Are you not weary of ardent ways,
Lure of the fallen seraphim?
James Joyce
Now see I
That warmth’s the very stuff of poesy.
T.E. Hulme
Daniel acordou. Andou pelo seu quarto; entre o computador e a estante viam-se três latas de Redbull, um pacote de batatas fritas, vários livros e um corpo de uma mulher de 42 anos. A mulher estava viva, Daniel também, conquanto a palavra seja mais imprecisa do que parece. Observou os pêlos púbicos ruivos da matrona que manchava de suor o seu chão empoeirado; a respiração dela, pesada e laboriosa, criava uma dulcíssima dissonância. “Uma Helena sem charme ou para lá do charme. Menos mal, nem guerras nem chatices”, pensou Daniel.
Tinha dormido apenas duas horas, pois insistia em não dormir como toda a gente – uma mania inocente e pouco produtiva. O sono polifásico dava-lhe tempo reflectir sobre a sua inactividade e acrescentava alguns farrapos de pretensa originalidade à sua vida. Bateu com a porta do varandim no pé; agitou, iracundo, as pernas glabras numa coreografia digna de Toulouse-Lautrec, a fúria em toda a sua superfluidade; depois de umas canoras caralhadas, percebeu, já exausto, que não tinha tabaco – os sofrimentos deste homem não tinham fim. Resolveu sair para comprar tabaco.
A noite era já plena. Adivinhava-se o bulício das estudantes universitárias e das probas estudantes do sexo oral. Daniel sentiu-se excitado, já com um cigarro na boca exalava volutas para o ar ameno; pensava em aventurosos encontros que acabam por nunca acontecer. Recebeu um SMS de Vergílio, um iniciado nos rituais da noite e um encantador brochista de conas: «td bem meu caralho? hj há festa grossa. aparece na rulote do zé». Não pensou duas vezes. Respondeu: «Não te enfadam já essas ardentes vias? Lá estarei, rabeta». Será que Joyce curtiria bué desta mensagem? Talvez. Divertiu-se com esta ideia durante 33 segundos. Estugou o passo.
Chegou ofegante à rulote do Zé que se chamava, muito apropriadamente, Zelote. Zé afirmava, cheio de prosápia, que nunca tinha lavado as mãos e defecava com frequência atrás da rulote; por vezes, quando se sentia mais generoso, dava as mãos a cheirar a um freguês: “cheira a racha de Erasmus, amigo”, dizia com uma notável sprezzatura; duas vénias ou um olé eram as respostas mais frequentes. As iguarias servidas fartavam os brutos e funcionavam como um benéfico vomífico para os menos varonis. Comer na rulote do Zé era um rito de passagem que vitimava a bravata típica de certos machos da espécie e a incauta alegria doutros. Nunca morreu ninguém.
– Esta noite é para os resistentes! – disse um sujeito anafado.
– Somos os maiores! – respondeu um pelintra.
Daniel ouvia desinteressadamente estas inanidades, “a gloríola a três passos do vómito ou eu daqui a três horas?”, pensou. Vergílio nunca chegava a horas. Continuou a acompanhar a camaradagem ébria do gordo e do maltrapilho.
– Dantes é que se faziam noitadas das boas! – gritou o gordo.
– Imagino, eu no Ultramar depois de despachar dois ou três ainda despachava duas ou três, – o maltrapilho ria-se com gosto.
– Não brinques com isso, pá! Morreu muita gente a defender esse império da loja dos trezentos!
– Eu não morri, mas comprei a tua mãe por trezentos paus.
Gerou-se um alarido alacre. A chusma apreciava estes conflitos fátuos e acicatava o circo porque o pão era fraco. Daniel estava entretido e enojado ao mesmo tempo. Os dois heróis pícaros exaltavam-se com a sua própria gritaria, mas evitando lutar, o que exasperava os espectadores.
– Temos cá senhoras? Se fosse comigo já te tinha partido todo, meu badocha! – disse uma voz no meio da turba.
A vozearia recrudesceu. Ouviam-se pessoas a defender as virtudes militares, o império, o patriotismo; outros defendiam ideias opostas e alguns defendiam o que calhava nos intervalos para a tosse. A certa altura, um rapazote de aspecto famélico pontapeou o gordo nas costas e os restantes aproveitaram a deixa. Daniel afastou-se, apreciando a cena; os mais expeditos e destros aproveitaram-se do inebriamento dos restantes que nem um murro conseguiam desferir; os bêbados eram, contudo, os mais castiços com as suas caretas e gestos sem sentido. Daniel, quando tudo parecia mais calmo, deu um pontapé no, caído e ainda mais andrajoso, defensor do império só para marcar presença.
– Vais comer pela medida grande!
Entrementes, Vergílio chega e repara no sangue na bota de Daniel.
– Que se passou? – perguntou Vergílio sem grande curiosidade.
– Baratas.
– Morreram?
– Não, resistem a tudo.
Os olhos inexpressivos de Vergílio brilhavam por causa da miopia, do fumo e do cansaço; orgulhava-se de estar sempre cansado. Fazia isto e aquilo e conhecia toda a gente, o que muito irritava Daniel, um acedioso por natureza – todo aquele frenesim parecia-lhe fútil. Percorreram, a passo largo e quase sem falar, os poucos metros que os separavam da Averno, uma discoteca em voga por ser antiquada.
Na entrada da discoteca encontrava-se um grupo variegado: uma mistura de janados e hipsters, que eram demasiado fixes para frequentar aquele antro, mas demasiado fúteis para dele ficarem completamente arredados. Alguns faziam por parecer rebeldes – a rebeldia esgotava-se nos penteados e nas calças coloridas –, outros queriam parecer misteriosos, oraculares – ai de mim, Cassandra –, envoltos num denso fumo de Cannabis sativa e de leituras enviesadas. Daniel chamava Senado ao grupelho e Vergílio seria o seu césar, não conhecesse ele o destino dos imperadores, “não há idolatria que não redunde em chatices”, costumava dizer.
– Vamos lá ver o que se ladra por ali, – disse Vergílio, apontando ostensivamente para os senadores.
– A salvação do mundo em três horas, o Vale de Josafat e a Shakira de quatro, como é costume, Deus os abençoe! – murmurou Daniel persignando-se comicamente.
– Três horas parece-me excessivo.
Aquele grupo pequeno e garrido, com os seus olorosos charros e a suas brilhantes ideias, não deixava de ser curioso: lá estavam os especialistas no tema do último artigo que tinham lido numa revista americana – uma maneira elegante e quase inteligente de perceber o mundo; os documentaristas das realidades mais esquálidas que faziam do seu cinismo e estupidez uma virtude; os tipos que lhe chupavam os documentários entre o sono e a ressaca; os investidores e divulgadores, uma casta mais pragmática, porque o dinheiro assim o exige, e mais atraente porque tinha o poder de afamar a próxima mediocridade genial; os escritores com um romance quase pronto há mais de dois anos, vivendo desse crédito imaginário e de um emprego num restaurante de fast-food; os críticos da cultura, da contracultura e de tudo que dê de comer; os polícias do gosto – o Bom, o Feio, o Mau e o Belo, muitas definições lapidares e muita comichão; os angustiados simpáticos; os defensores das teorias da conspiração; os debunkers das teorias da conspiração; as meninas bonitas com penteados terríveis…
Daniel e Vergílio juntaram-se aos senadores. O ambiente estava inesperadamente calmo, trocavam bafos de porros mal enrolados e elogios mal industriados. “Um pacífico circle jerk”, pensou Daniel. Vergílio cumprimentava toda a gente com meio sorriso e a testa franzida; via-se o receio nas suas palavras, a hesitação era evidente: a) poderia ser sincero e ceder ao prazer momentâneo de atacar esta de intelligentsia de lantejoulas; b) poderia ter um futuro. “Espero que a minha inteligência e o meu ânus sejam do seu agrado, senhor”.
Fumaram sofregamente algo com um sabor terrível.
– O que é isto? – perguntou Daniel disfarçando a tosse.
– Pó dos anjos, meu amor! – respondeu alguém.
– Amém – gritou Daniel desconfiado.
– Nah, é só uma erva malcheirosa do malcheiroso Loureiro. – disse Vergílio agudamente – Ninguém quer ver-te alucinar, fica descansado.
– Alucino todo o santo dia! – sussurrou Daniel ainda assustado.
Tinha medo de alucinar. Daniel era um anacoreta não praticante e receava despertar o seu lado místico. Lembrava-se amiúde de uma experiência que teve com cogumelos que alguém teve a caridade de filmar – a ignomínia em troca de milhares de likes no YouTube. Parece que, depois de ter consumido uma dose prudente de cogumelos, tentou formar uma religião. Uns riram-se outros choraram. Num furor quase dionisíaco subiu a montanha, citou Nietzsche e outros filósofos para mancebos, urrou, chorou, despiu-se e tentou partilhar a seiva adâmica com os eleitos; depois comeu amoras, “isto é tão simples”. Chegou a casa envergonhado, escoriado e com a língua azul. “Nunca mais”, pensou Daniel.
Começaram a discutir um filme recente, um drama pobre sobre gente pobre de um realizador muito contente em chafurdar em tais meandros – interessante mas esquecível.
– É um retrato perfeito do mundo dos delinquentes! – afirma um homem com o cabelo cuidadosamente despenteado.
– Então não me interessa nada – disse Daniel distraidamente enquanto tentava cuspir o resto da erva malsã que tinha fumado.
– Gostas mais desse cinema burguês, não é?
– Mas esse tipo de filmes é a quintessência da arte burguesa, uma perspectiva burguesa sobre os gebos, coitadinhos!
– Gostas de tudo bonitinho e postiço?
– Quase como o teu penteado. Mas não gosto desse tipo de filmes porque por um lado sou um esteta, por outro lado não tenho paciência para filhos da puta – coroou Daniel entediado.
– É só um filme – declarou Vergílio, o conciliador.
O cinéfilo despenteado afastou-se e beijou a namorada, de olhos abertos, atestando a sua virilidade. Daniel continuava a cuspir para o chão cada vez mais indisposto. O cheiro não o deixava pensar claramente e aquelas conversas cruzavam-se no seu cérebro como o barulho de carros desgovernados numa estrada distante. Augurava acidentes. “Começamos mal”, pensou. Pensou em sair dali mas Vergílio já entretinha as fantasias de outro bobo.
– Isto é tudo planeado.
– Mas como é possível calar essa gente toda, mais tarde ou mais cedo a verdade saber-se-ia.
– Não, se os gajos nos andam a envenenar o pessoal imagina o que fariam aos delatores.
– Isso não faz sentido nenhum.
– Pois, isso é que a propaganda quer que tu penses. Os doidos escaparão e depois eu é que me vou rir.
– Rir de quê? Eu, mesmo que acreditasse nisso, não sei se queria escapar.
As vozes sucediam-se indistintas, falavam de chemtrails, água venenosa, escravidão, era tudo um plano do governo para calar os dissidentes. Daniel não percebia uma palavra. Agachou-se para atenuar a náusea. Vergílio ofereceu-lhe uma garrafa de água.
– Para o Monte de Sinai, chefe! – brincou Vergílio – Já chega de patetices.
O alígero Vergílio conduziu Daniel, que começava a sentir-se melhor, até à porta da discoteca. A porta anacrónica – cheia de estátuas, pátina e merda de pombo – era medonha, uma estrambótica combinação de mau gosto e pedantismo. Um mar de gente esperava para entrar. O porteiro parecia uma caricatura duma estátua de Praxíteles: os músculos insuflados atrofiavam-lhe os movimentos; o pescoço vasto, que dava para várias cabeças, encimava o crânio espalmado; as orelhas retesas seguravam uns óculos ovais. Vergílio saudou-o com familiaridade. O porteiro olhou de soslaio para Daniel.
– O seu amigo tem sangue na bota. Isso é contra as regras da casa. Parece mal.
Vergílio, o dos mil artifícios, pegou lestamente num lenço e limpou a bota de Daniel que apreciava o espectáculo; o porteiro sentia-se confuso – queria bajular Vergílio, mas também queria exercer o seu pequeno poder de meter nojo; a reposição de testosterona deixava-o mais belicoso do que o normal e já tinha partido os dentes a dois clientes esta semana.
– Olhe que ele porta-se bem, não faça caso.
– Mas são as regras da casa, sabe como é que é. Ele parece já estar mais para lá do que para cá.
– Considero isso um elogio, senhor. Sou um poeta! – disse vivazmente Daniel. – Além disso, o sangue era de um mártir do Império.
– Poetas nunca nos faltaram, graças a Deus! – disse o porteiro rindo altivamente – Passe lá, mas se não meta em sarilhos.
– Palavra de honra.
Entraram. “Ter que pedinchar para entrar nesta estrebaria. Indócil sorte a minha, fugi aos degraus do Parnaso para vir a um festival de frustração”, pensou Daniel enquanto observava as pessoas presentes. Ficou acabrunhado, toda a excitação dissipou-se. A música infiltrava-se nos seus pensamentos, a batida do dubstep, distorções, vozes robóticas – tudo o entorpecia. Via braços no ar. Luz e Escuridão. O calor vermelho do fumo, da transpiração e da tensão sexual. Saias curtas perfilavam-se em estilizadas sombras nas paredes. Extrema brancura. Luz e Escuridão. De olhos semicerrados absorvia aquelas imagens fantasmáticas. Bacantes de meias de vidro, bárbaros de wife-beater e querubins caídos pelos cantos mais obscuros, afastados, quietos e sorumbáticos. Tudo lhe parecia deformado e ridículo mas via em alguns uma alegria primitiva, quase bela, um desejo de esquecer tudo e reviver alegrias passadas, a primeira bebedeira, o primeiro amor, a primeira foda…
Vergílio falava aparentemente.
– ???????
– ???????
– ???????
– SHOTS? – gritou Vergílio
– SIM.
Dirigiram-se a um dos bares. A música mudou, ouviram-se uivos de alegria e quase todos cantavam:
Everybody get up
Everybody get up
Hey, hey, hey
Hey, hey, hey
Vergílio pediu absinto para ambos. Alegria em estado líquido. O sabor floral encheu a boca de Daniel e o calor encheu-lhe o corpo de ousadia.
– Outro?
– Outro.
Começava a entender tudo; os gestos mais insignificantes, esgares involuntários, toques casuais pareciam-lhe carregados de sentido. Sentiu-se leve. “Uno, o diverso, um porco-espinho a atravessar uma auto-estrada, Tesla apaixonado por um pombo… É claro.”
– Outro, caralho!
I know you want it
I know you want it
I know you want it
A via direita era perdida. Foram engolidos pela multidão. Daniel apenas via lampejos da realidade e sorria estupidamente revirando os olhos; via os pequenos grupos de meninas do liceu, licenciosas a medo, bebendo bebidas coloridas pelas palhinhas tímidas, “o seu B.I., menina?”, pensou; via homens desajeitados abraçando a tarefa impossível que é parecer másculo a dançar; via mulheres de meia idade, que foram industriadas para serem princesas por progenitores papalvos, desiludidas e sem expectativas, como ele gostava; via as suas pernas enroscarem-se numa mulher de sapatos brancos, vestido azul com bolas brancas, sem lhe ver a cara.
Hey, hey, hey
Hey, hey, hey
Hey, hey, hey
Não sabia se devia tentar ver-lhe a cara, nem sempre é bom revelar o que está escondido. Fechou os olhos, sentiu-lhe a firmeza do corpo; ela sustinha o cabelo levemente ondulado com mão esquerda revelando o pescoço fino; cheirava a pêssegos e a suor. A música mudou.
Hands down
I’m too proud for love
But with eyes shut
It’s you I’m thinking of
O cu dela, perfeitamente delineado, subia-lhe pela perna esquerda acima. Abraçou-a; sentiu-lhe as mamas delicadamente manufacturadas num laboratório venezuelano qualquer; acariciou-lhe a pele tisnada com um prazer moroso e meticuloso; beijou-lhe o pescoço. Ela cedia, como se perdesse as forças, caindo sobre ele em peso.
I think I’m a little bit
Little bit
A little bit in love with you
Virou-a para si. Perscrutou-lhe os olhos garços; ela afastou-se suavemente ofertando os últimos meneios da resistência protocolar. Daniel apertou-lhe as firmes nádegas em forma de coração com ambas as mãos. É aqui e é já. Beijou-a sofregamente. Perdeu a noção do tempo. Trocaram saliva com sabor a Listerine e a sopa de lentilhas durante longos minutos. Abria os olhos a espaços, via gente quase sem roupa em cima das colunas, escuridão, luz; sentia uma alegria cristalina; pisava copos partidos sem perceber, o pé latejante não o incomodava – a porta do varandim e o pontapé no maltrapilho pareciam-lhe agora distantes e risíveis. É aqui e é já. Colocou a mão direita entre os dois corpos, pressentia-lhe a linha do ventre, desceu aquela via ardente, cauteloso, apreciando cada relevo. Beijou-a. Sentia os lábios dormentes e túmidos. Encontrou um relevo estranho. Ela/ele olhou-o com uma cara culpada. Daniel ficou sóbrio em segundos; não sabia se devia vomitar-lhe os sapatos brancos ou chupar-lhe o pénis encarquilhado. Não é aqui, nem é já. Beijou-a educadamente nos lábios.
– Tenho de ir ao W.C., meu amor – disse Daniel – Já volto.
Afastou-se rapidamente. Não conseguia parar de rir. Já na casa de banho, fintou destramente as poças de vómito no chão pegajoso. “Um pequeno passo para um bêbado, um grande passo para a Higiene”. Não conseguiu suster o vómito, urinava e vomitava ao mesmo tempo. Apoiou a cabeça na porta infecta; começou a ler, com os olhos cheios de lágrimas, as inscrições apócrifas:
1 - Assim morreu Napoleão com as calças na mão.
2 - Aqui nasceu e viveu Yoko Ono até conhecer John Lennon.
3 – Caga a cantar que os cagalhões saem a dançar.
Não conseguia parar de rir. O chão eivado de urina e vómito, o transexual, a sua estultícia – tudo lhe parecia hilariante. Vergílio estava à porta da casa de banho. Daniel correu na sua direcção
– Que se passou? – perguntou bruscamente.
– Estive a brincar com os colhões de Tirésias – respondeu Daniel divertido.
– Estás borrachão, pá!
– Não o suficiente.
– Precisas de água…
– Benta, por favor.
As pistas começaram a ficar vazias. A luz, mais intensa agora, convidava as pessoas a sair; via-se o lixo e as ilusões perdidas. Mulheres de maquiagem descomposta saíam apressadas e só a pista latina tinha ainda algum movimento. Daniel e Vergílio sentaram-se nos sofás com uma garrafa de champanhe que Daniel pedira.
– Tens dinheiro para isso? – perguntou Vergílio.
– Não te preocupes, já não tinha dinheiro para os shots.
– Que caralho! Eu estou teso.
– Só tens que te arrepender no dia do juízo final, fica descansado.
Um sujeito desengonçado passou por eles, tinha uma amarela caminha justa que revelava uma bojuda barriga. Não reparou neles nem na sumptuosa garrafa de champanhe. Começou a tocar um tango de Piazzolla; três pares precipitaram-se para a pista. O barrigudo de camisa amarela dançava com uma mulher voluptuosa de vestido vermelho, completamente alheado do resto da sala. Daniel e Vergílio assistiram à metamorfose do barrigudo: movia-se, galhardo e confiante, e parecia agora quase atraente.
– A síndrome de Samsa invertida! – disse Daniel enquanto bebericava o resto do champanhe.
– Quero sair daqui.
– Espera que está quase. É o último tango.
A música parou, a pista estava a fechar. Daniel deu um salto e começou a aplaudir; foi cumprimentar o barrigudo mas quando este lhe estende a mão desfere-lhe um murro nas costelas. Pontapé aqui, murro acolá, uma festa. Os seguranças correm atrás de Daniel que está, por alguma razão, sem camisa e sem calças – parecem cães atrás de um gato. Quando finalmente o apanham Daniel desmaia. Vergílio tenta acalmar os ânimos mas os guardas não andaram vinte anos a inchar os músculos para nada. Depois de alguns pontapés conscienciosos, em partes do corpo pouco visíveis, atiram Daniel pela porta fora. Atiram também a roupa que cai majestosamente na cabeça de Vergílio que tenta reanimar Daniel, este dá acordo de si rapidamente.
– Estás a ver, não paguei a conta! – disse Daniel forçando um sorriso.
– Não vais acabar bem.
– Nem eu nem ninguém.
Não conseguiu encontrar um dos sapatos. Sentia agora a dor no pé descalço que atenuava as outras dores. Tentou andar mas a dor impedia-o de dar mais de três passos. A luz rósea da manhã ainda jovem aveludava as dores de Daniel. Andou mais uns metros ao pé-coxinho. Não dava. Chamaram um táxi.
– Para longe deste inferno, patrão! – transmitiu Vergílio ao taxista.
Daniel amodorrou-se no banco traseiro ouvindo a chalreada do taxista. Recordou a noite. Opróbrio. Subitamente com fome disse:
– Vamos parar para comer.
– E vais matar alguém para não pagar a conta desta vez? – questionou Vergílio carrancudo.
– Não, pagas tu.
Chegou a casa. Subiu os degraus íngremes sem dificuldade, eram as propriedades curativas do seu lar ou as propriedades punitivas do mundo? Não sabia. O pé já não o incomodava. “Portas e mártires não me fazem mossa”, pensou.
A casa cheirava a refugado e bafio, abriu duas janelas para deixar entrar o ar da manhã. A ruiva dormia ainda no chão, compondo ainda muito diligentemente o seu trio de cordas, bronquite e peidos. Da rua vinham os barulhos da passarada e do ocasional carro. Ligou o computador para confirmar que ninguém lhe ligava nenhuma. Correcto e afirmativo. Consultou o Facebook, o YouTube, o Reddit e o Twitter, essas oportunas vias para ser importuno. Rechaçou três argumentos e começou duas discussões. Decidiu tomar banho, porque as suas mãos retinham ainda o cheiro das proféticas bolas de Tirésias.
Depois das abluções, ungiu-se com um óleo maçã que pertencia à sua irmã. Sentia-se fresco e forte. Na cama, comeu duas bolachas com chá preto. Os lençóis cheiravam o mijo, suor e sémen. Não conseguia dormir; remexia-se na cama mas as recordações de episódios insignificantes da sua infância consumiam-no; ademais, ainda tinha a música da discoteca nos ouvidos e não conseguia habituar-se ao silêncio. Pensou no cu da professora de inglês do sétimo ano, uma memória a que recorria em noites de insónia. Não resultou. Levantou-se.
Olhou-se ao espelho, meditabundo. “Mais dez anos bons”, ponderou. A calvície era inevitável, o rosto, cada vez mais encovado, perdia a sua distinta disposição e os olhos tinham perdido o viço há muito. Não havia nada a fazer. Barbeou-se com esmero.
Passeou pelo quarto com o revólver na mão. Reflectia sobre aquele pacificador pedaço de metal. Todas as suas inseguranças e problemas podiam acabar com gesto simples. Pum! Já foste, aqui jaz e tal. O barulho era de facto dispensável e a ideia de que alguém tivesse de catar-lhe a mioleira do chão também não lhe agradava. “Paciência um pouco de sujidade para alcançar a limpeza eterna”. Comprara a arma depois de ver um instrutivo filme do Van Damme; um homem nunca se deixa apanhar pelo inimigo – guarda-se sempre a última bala.
Abriu a malfadada porta do varandim para fumar. Da janela via-se uma tabacaria: paredes esverdeadas, jornais e moscas. No néon da tabacaria, um paraíso para muitos insectos, lia-se O GRANDE GATSBY em letras verdes; para Daniel o paraíso era um pouco mais acima.
A luz da grande literatura atraía os mosquitos e a luz da janela de Vânia atraía Daniel. Ele pensava que o calor era o móbil de toda esta agitação, uma noção errada como tantas outras. Era a luz. A luz rosicler da manhã de Abril não se diluía no amarelo sólido do quarto de Vânia.
Conhecia Vânia há mais de dez anos, mas nunca lhe tinha prestado atenção até ela se mudar para a casa à frente da sua. Espiava-lhe os movimentos mais simples: ela a regar as plantas, a ver televisão, a ler a comprar cigarros slim na tabacaria. A proximidade aumentava-lhe o encanto, a sua beleza era inconspícua, feita de pormenores que não se percebiam de passagem, careciam de metódica observação para lhe perceber as subtilezas.
Ela acordou. Daniel fechou a porta e alcançou uma câmara de filmar digital e uns binóculos de caça, que nunca usou para caçar mas que serviram vários propósitos furtivos. Preferiu a imagem pixelizada à alta definição predatória – era um romântico, no fundo.
Assim como se agita uma nova folha verde,
se estende e desenrola devagar,
abriu-se o corpo dela na frescura
e no impoluto vento da manhã.
A figura grácil de Vânia aparecia e desaparecia no seu ramerrão matinal; a luz cegava a câmara, deixando a lubrificação a cargo de alguns quadradinhos lúridos. Focou a câmara. Os braços, flácidos mas delicados, enquadravam perfeitamente um cu de porcelana chinesa, a verdadeira linha da beleza. Pegou na mão da matrona para envolver o seu pénis erecto – o suor dela e o líquido de Cowper dele fizeram o resto.
Guardou o nascimento de Vânia num disco rígido para nunca mais o ver; esta peculiar perversão vive mais da ansiedade do momento do que da reminiscência. Estava finalmente pronto para dormir.
O vento, perfumado de glicínias, fazia o seu robe de chambre adejar levemente. Foi até ao varandim fumar novamente. Vânia saiu para fumar e acenou-lhe. Daniel acenou-lhe duplamente com a mão e com o pénis ainda tumefacto. Ela desapareceu. De repente, viu tudo muito claramente, era tudo tão simples. A máquina do mundo, ímpar e impoluta, estava escancarada e esperava por ele.
E quando todas as folhas,
todos os amarantos
se perderem na perdida Creta
cessará toda a límpida necessidade
de figos, de mel
– de comparações.
[]
São 02:32AM. Engoli um Valium e bebi dois canecos (dos grandes) de vinho. Daqui a pouco fecho as pálpebras para fabricar uma noite. Estou no Windsor há, mais ou menos, duas semanas. Dormi, comi, reli todo o Moby-Dick. O meu cabelo (apesar de curto) está tão cheio de remoinhos que não tenho muito como penteá-lo. O Windsor é limpo, mas o quarto muito mal aquecido. Pela manhã, a camareira traz à cintura, sem nenhuma vaidade de puta, um molho chocalhante de chaves. Fala comigo de um modo oleosamente paciente, como se estivesse a dar instruções detalhadas a um anormal. Por ali, ela diz, para o fundo. Basta levantar o pino. Junto com as correntes. Pergunta-me de novo: O senhor não é judeu, é? Não! Tenho o reflexo da autodefesa. Não! Berro mais uma vez. Ontem, sonhei que a rapariga erguia a saia e se esvaziava completamente ali no corredor. Posso ver pelos seus braços que limpar todos esses quartos custa-lhe um certo número de escoriações. Mas, afora isto (o nariz é um pequeno e bonito apêndice germânico e as sobrancelhas, de amarela e fraca pilosidade, vão desaparecendo à medida que se aproximam das têmporas), a cara é uma roda branca e vazia de traços. Enquanto espero o elevador, ela aperta o bico do interruptor e todos os abajures agarrados à parede do corredor acendem ao mesmo tempo. Não é preciso recorrer a um vernáculo cabeludo para descrever o que vejo. Ela vai e vem com uma austeridade atraente. Acho que só usa um pouco de essência de baunilha atrás das orelhas. Dentro do elevador, sozinho, ouço outra vez. Nos últimos 3 dias a minha cabeça tem sido constantemente invadida por uma voz neutra, afastada, anónima. Em geral é uma frase solta, nem mesmo dirigida a mim, e tão trivial que nem me atrevo a dar exemplos. Mas a voz, hoje de manhã, pela primeira vez se pareceu muito com a do meu pai. O meu pai era um daqueles gajos que tinha todos os motivos do mundo para se matar. Ou para ser morto por alguém. Bom. Não faz diferença. Passo pela porta giratória. No fim da rua existe um barzinho chamado Kali Café. É a contrapartida visual às minhas alucinações auditivas. A rua é estreita, espremida entre duas calçadas. Olho para cima. A fachada do Windsor esbanja falta de encanto. É como um puzzle, mas sem metade das peças. Na esquina, com a mão poisada na anca, Marta, uma puta de 24 anos cujas habilidades eróticas são incompatíveis com as suas exigências financeiras. No fundo, tem o aspecto daquelas plantas que estão a morrer ao mesmo tempo de sede e por excesso d'água.
Peor
Não soube dizer se o que me acordava vinha da porta, sonho, ou telefone, mas confundiu-me sobretudo ser ainda de noite. Tentando estabilizar o raciocínio por entre a repetição do som, estiquei o braço e percebi ao tocar na mesa de centro (e não de cabeceira) que estava no sofá da sala, o que nos últimos meses não era mais estranho do que estar na cama; estar calçado e de casaco era-o um pouco mais. A boca seca e a garganta arranhada de fumo, faziam prever uma ressaca, cuja sintomática dor de cabeça procurei avaliar com cuidado, focando objectos a medo em várias direcções. Nada latejou, nenhuma ressaca, pelo que só me restava concluir estar ainda bêbado.
O toque continuou, recorrente como um alarme, e não consegui pensar noutra forma de saber se era dia da semana (ou, no que na verdade estava a tentar perceber, de alarme), senão consultar o telemóvel, que imediatamente me pareceu zunir no bolso direito, mas não senti lá dentro mais do que umas moedas e a vibração a revelar-se imaginária. Cheguei a ter tempo para pensar (como de todas as vezes em que acontecia) que interessantes são estes fenómenos dependentes da disseminação de uma tecnologia, mas também se um tumor na perna poderia provocar uma vibração muscular espontânea, só que a persistência do toque não me deixou aprofundar estes temas durante uns cinco minutos como teria acontecido em situação mais tranquila. Do bolso esquerdo e correcto tirei o telefone, que me informou após pressão simultânea de uns cinco botões pelo polegar gordo, que não era ele o responsável pelo chinfrim e que eram 3:40 da manhã. Foi menos de um segundo depois de perceber ser a campainha da rua que insistia, que o toque deu lugar a uma única pancada, na madeira da porta, seguida do que não poderia ser senão um suspiro cansado.
Anos de cortes de água, luz e gás, de cartas registadas mal intencionadas de serviços fiscalizadores diversos, de visitas de oficiais da justiça ou outras de carácter menos ofensivo como vendedores de pacotes de comunicações ou (estes cada vez menos frequentes) da palavra de Deus, tinham-me levado à convicção de que nunca os ganhos de uma visita cortês poderiam superar os custos de uma de um destes meus inimigos. Não abro uma porta há anos, o que fez desaparecer gradualmente os amigos, e conferiu à campainha um carácter de prelúdio de más notícias. Era por isso intrigante ouvi-la àquela hora, quase quatro da manhã, e foi quando me sentei no sofá, sem tirar os olhos da porta - agora silenciosa - que uma vaga memória muito recente pareceu querer servir de rastilho para perceber que não tinham passado mais de vinte minutos desde que eu tinha entrado em casa, que não tinha vindo sozinho do bar, que lhe tinha pedido para esperar um minuto enquanto eu entrava e (isto não disse) tirava alguma roupa do chão, como se a esta hora, com ela à porta, esta variável fosse relevante para o que pretendíamos. Novo suspiro do outro lado, agora conformado, e o som familiar de passos a descer as escadas, amplificados pelas condições da hora, passos que estava tão habituado a associar à vitória sobre mais um credor. Não saber o nome dela fez-me hesitar por um momento, mas estava ainda suficientemente bêbado para correr à porta e abri-la com treinada leveza, debruçar-me sobre o corrimão e dizer, da forma mais alta que uma surdina permitisse, "espera, espera!"
Gouveia
ela confundiu-me com outra pessoa.
começar a escrever isto é como entrar numa festa e ter que me apresentar. nunca vou a festas. normalmente as festas são alegres e a alegria é uma coisa que me deixa triste. e estar triste numa festa é uma coisa que me chateia. como não gosto de estar triste nunca fico feliz, para facilitar. uma vez fui a uma festa, em casa do zé merdas. gajo porreiro, o zé merdas. fã de trufas e do truffaut. um gajo porreiro, o zé merdas. um dia destes falo-vos do zé merdas, que é para isso que ele existe - para que dele se fale. zé merdas: a derrota como condição de vida. será este o título da autobiografia imaginária do zé merdas. tem tudo pensado, o zé merdas. relatos amargurados, epitáfios constantes, poesia rasca, recuerdos inventados, referências snobzinhas, prefácio de escritorzeco sofredor da moda, apresentação ao vivo, vinho para dois e putas para todos num hotel decadente, ali à praça de espanha.
um tal de joão gaspar
Mastigue bem a comida para facilitar a digestão
Sentada à minha frente, de perna cruzada, está uma senhora. Pago-lhe à hora para me resolver. De cotovelos apoiados na mesa de vidro que nos separa, segura uma folha rascunhada a preto. Diz-me que tenho ruminações. Endireito os ombros e aumento a velocidade com que as minhas pernas, também cruzadas, se movem para cima e para baixo. O salto do meu sapato bate no chão, num staccato frenético.
Costumava ver os meus pensamentos como um carrossel da feira de Maio. Sempre detestei os carrosséis e todo aquele bailar eterno sobre si mesmos. A novidade esgota-se em poucos segundos e o resto do tempo é a paisagem a autoflagelar-se. Na feira de Maio, a paisagem é um campo de gravilha cheio do lixo das barracas das farturas e dos copos de plástico das imperiais. O meu pai queria que eu andasse nos carrosséis todos e não percebia porque é que, ao contrário das outras crianças, a filha preferia passear de mão dada pelas barraquinhas de artesanato ou olhar para o motor dos tratores em exposição. A ideia de andar às voltas presa numa chávena de chá colorida atormenta-me. O estômago não segura a forma, a cabeça não mantém o equilíbrio, a repetição das imagens é claustrofóbica: a minha mente funciona assim e é como se num carrossel estivesse presa dentro de mim mesma.
Mas afinal, o abstrato é um pasto cheio de azedas. Imagino vaquinhas malhadas a pastar dentro da minha cabeça, abanando o rabo para afastar as moscas. O terreno onde repousa a generosa manada tem uma forma irregular e é delimitado por uma cerca de madeira. Faz sol, cheira a calor (que para mim é o cheiro da terra seca dos campos, no tempo das amoras). Alguns animais estão de pé, a fitar o vazio, outros deitam-se sob a sombra dos sobreiros empoeirados. Na maior parte deles, a mandíbula move-se com parcimónia e as bochechas ora insuflam, ora são sugadas para dentro, formando covas. Os sonhos são uma pasta verde e peganhenta. Os pensamentos são quimos regurgitados, mastigados ad aeternum ou até sair merda.
Sem explicar como vi os meus pensamentos transformados em vacas, terminamos de discutir as ruminações. São apenas parte do problema, avancemos pois, que a agenda está cheia. Agora oiço dizer que uso a fantasia como mecanismo de defesa. Não me diga, senhora.
S. White
Uma tarde lenta e pesada, consumida em desejos tantalizantes, apenas amenizados pela serenidade de uma zona ribeirinha... Vastos lençóis de indolência, a espera de rapazes entorpecidos por uma insuportável e melancólica passividade, antecipando a noite... Um mergulho revigorante, súbita agitação de células na memória, imaginação que lança o anzol a um oceano que sabe estéril, para se sentir viva... Deambulação fugidia, ténue, impressionista… Solta-se a verve, padroniza-se o calor... Multifacetada e doce e frívola, infiltra-se a noite… Noite intencional e espontânea, lúcida e infantil, irresistível, estranha à hostilidade e ao cinismo jocoso, atordoada por uma espécie de ressaca por antecipação de tudo o que aí vem... Noite ébria e sonâmbula, apocalíptica incubadora de mistérios nunca desvendados, cada espaço uma gaiola onde nos é possível esgueirar por entre as grades, como selvagens celebrando em liberdade a sua natureza animal... Máscaras de celofane que brilham de vitalidade e suor... Recortes vertiginosos: a estranheza de uma perna dobrada no braço de um sofá… E lábios vincados por fendas estaladiças como papel de estanho, tímida pele estilhaçada por beijos lúbricos num sopro juvenil… Noite tropical e autêntica e depravada – noite sonhada, noite realizada.
pmramires
idílios e pequenos delitos, Azul, LI
Em Vilnius ouviu-se um português dizer: “Não vim aqui para fazer amigos, eu vim aqui para foder, ó primaço!”. Montaigne não diria melhor. Simpatizei logo com esta personagem de cujas aventuras só ouvi relatos. Por essa maré, aqui não se relatavam aventuras; consegui passar dois lemurianos anos submerso no momentoso remanso da internet. Fodas, ó Calíope digital, nem vê-las, amigos tão-pouco. Pergunto: o que é que eu andava aqui a fazer?
[]
Entre dois baldios de terra compacta, a casa flutua. Não se sabe onde acaba, onde começa, é uma barriga cheia de crostas, aquosa, vegetal, repugnante. Na lateral, só os caixilhos e duas ou três semividraças. Pelos cantos da janela escorre um elemento fantasma, esponjoso. O mesmo que desce degrau a degrau, sem pressas, de uma escada agarrada à parede. Atrás, à direita, vejo duas árvores queimadas com a metade que restou do celeiro ao fundo. No balde de plástico junto à porta, uma água felpuda e desvitaminada, mistura de borracha e tisana. A coisa espuma também nos frisos da porta e ainda na ponta norte do telheiro. Deve ter sido um incêndio bonito. Pronto. As gajas saem. O que querem é me fazer falar. Dou uma boa olhada na mais alta, a que mantém a barretina caída sobre os olhos. São afro-polacas. Tenho uma carabina usada pela Wehrmacht para lhes vender. O mosquetão é autêntico, mas com a baioneta serrilhada, e não a lisa s84/98 do tipo 3. Peço licença. Entro. Uma bola de roupa esparrama-se pelo chão. A gaja com o duplo ésse tatuado ao punho passa por mim. Se der um passo mais em direção à parede, mostrará a saída, mas sem a ver. O corredor ainda está ali, meio pendurado. A outra sala já não se aguenta em pé. Vigas, tijolos, escada, persianas, tudo está a cair. E detrás do reposteiro: nada. A cozinha é vácuo, deve ter explodido umas quatro vezes, completamente. Seguimos, por um instante, a céu aberto, vaziamente. Nada mais de paredes, nada mais de nada. No último quarto, uma cama de barriga para baixo. E na parede, desenhados a carvão, dois leões vomitam os corpos que comeram. Ao lado da cama, o verniz tinha desaparecido e a cadeira, mole, achatada, desconjuntava-se num ninho de felpas. Em cima, no tecto, uma só pá do cata-vento, uma ratoeira aérea, desdentada, tediosamente a girar como uma manivela. A casa de banho está fechada. Pela porta esfuracada, contempláveis: as cuecas, amarradas duas a duas numa vareta. Voltamos ao corredor, cobertos de caliça, areia, cinzas. Descemos. A cave faz água, a casa toda vai afundar. Saltamos de tábua em tábua, somos pulgas-d'água. Na saleta ao lado, os tijolos que sobraram estão frouxos, suspensos. Todo o resto desaba. Desenrolo o cobertor. Elas olham para a espingarda. Olham para mim. Sabem que eu sou o gajo que enfia as putas no inferno a golpes de garfo.
Peor
Jovem histriónica procura consolo
O diálogo com o espelho faz-se todos os dias pela mesma hora. Hoje, agradeço aos ovos maduros nos confins do meu ventre pela borbulha púbere que tenho na testa. Como é que te escondo, ó puta inflamada? Quero esquecer-me da adolescente que fui, mas estas fúrias ainda explodem na minha pele. Deixam dias de marcas que me recordam do pouco tempo que passou desde essa altura. Com dezasseis anos, tinha um cavalete armado no meio do quarto. Quando pintava e o pincel fugia para onde não devia, tapava os erros com mais tinta. Esta borbulha é um erro sobre o erro que eu vejo refletido no espelho. Vou buscar as tintas ao armário da casa-de-banho. Da bolsa preta que tiro, explode uma miscelânea de produtos: bases, corretores, máscaras. As minhas tintas. Eu sou uma tela pálida, com papos das insónias, sardas do sol, marcas das hormonas, tudo caminhos errados para onde o pincel não devia ter escapado.
Espremo o tubo da base, deixando uma ervilha bege nas costas da minha mão. Com um pincel farfalhudo, faço da ervilhinha uma poça de tinta para cobrir a minha palidez. Na infame borbulha, a mentira adensa-se num remendo de betume testado em beagles. Arrasto a base para o pescoço. Isto é arte. A pintura tem método: contornar, esbater, esfumar, repetir até à perfeição. Um pó acastanhado salienta a maçãs do rosto e mais não sei o quê - um dia soube o nome desses ossos todos, agora esqueci-me. O passo seguinte é a máscara. Levo a varinha coberta de líquido negro à base das minhas pestanas e agito-a no plano horizontal para deixar a pasta bem agarrada àqueles fios de pêlo. Depois puxo a varinha para cima, repetindo o processo até ter pestanas de boneca. Falta o batom. Na caixinha dos batons que tenho no quarto, há uma vintena de tubos cremosos (na caixa onde guardo as tintas acrílicas, o sortido de cores não é mais variado): cor-de-laranja e cor-de-rosa, tons arroxeados, lilás, mais todos os vermelhos que há num cesto de fruta. Os meus lábios transformam-se em sopranos espampanantes, a gritar por atenção.
A metamorfose termina dez minutos depois de olhar para o espelho pela primeira vez. Quem quiser, que fale dos seus gregos logo pela manhã, que coma os cereais com páginas de erudição em vez de leite, que fale de socialismo e de cinema francês. Eu maquilho-me. Rezo aos deuses das perfumarias antes de sair de casa. Nos quadros, a tinta luta com mais tinta. Eu, que deixei de pintar, invento duelos do vazio com mais vazio. Isso também é arte. A arte da fuga.
S. White
Memorabilia
Falámos por correspondência – nunca foi espiritual.
Quando estivemos juntos – também não foi carnal.
Trocámos leves confidências – nunca fomos íntimos.
Mas com ela fui – aos sítios mais distintos.
Perfumadas flores de hastes elegantes lhe ofereci
Na ânsia de um gesto destemido que porém temi.
(Uma Abelha ao Sol, uma Mosca na Chuva −
Ousadia que hoje não vale a grainha de uma uva.)
Falta-me o engenho dos que vivem o actual;
E ela não cede ao sortilégio dos que apostam no desigual.
Devia ter arriscado um cd, um concerto ou mesmo um dvd;
Mas tenho aquela inépcia dos que sofrem nem sei de quê!
Falámos por correspondência – nunca foi espiritual.
Quando estivemos juntos – também não foi carnal.
Trocámos leves confidências – nunca fomos íntimos.
Mas com ela fui – aos sítios mais distintos.
pmramires