Segunda-feira, 30 de Junho de 2014

 

cuspido para a plataforma de metro do cais do sodré, avanço, contínuo, pisando o traço amarelo que separa esta vida da outra. seja qual for o caminho, estou certo que irá dar ao inferno, que são os outros, garantem-me. os outros que são agora este exército de calcanhares, de nádegas, de costas e nucas em movimento. metáforas, diria nietzsche, como se fosse verdade.

 

anónimo e lento, sigo na marcha fúnebre, com passo certo, quando, a meio caminho do primeiro lance de escadas, me perco no rosto que avança em contramão. abre brechas na formatura, revela o que as muitas nucas escondiam, e funda o espanto num lugar subterrâneo de lisboa.

 

como se ainda me tocasses, medusa, pergunto-me, petrificado, se um dia serei capaz do que acabas de fazer: voltar a olhar para mim.

 

- azeite

despesadiaria às 12:20
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Domingo, 29 de Junho de 2014

 

#2 (de 4) :: cinco da manhã ::

 

Quando vinha, Marlene chegava sempre a esta hora. Encontrava Carlos à porta e acendia também um cigarro antes de entrar. A circunstancial troca de palavras a que se sentiram obrigados nos primeiros dias deu lugar a um cumprimento feito de aceno, sorriso e ombros encolhidos, um acordo de silêncio que foi um alívio para ambos. Havia mais rotinas neste contrato tão habilmente não verbal. A cadência a que Marlene puxava o fumo do cigarro mudava três vezes antes de o apagar, e Carlos, sem ainda deitar fora o seu, abria a porta do café e deixava-a entrar. Compensavam esta temporária proximidade física não se olhando, e por isso não havia como saberem que ambos pressionavam os lábios da mesma forma e com a mesma intenção de comunicar, ainda que o dele significasse "faz favor" e o dela "obrigada".

 

Era, claro, a primeira cliente da noite, o que lhe permitia sentar-se onde quisesse. Após semanas de observação e experiência que determinaram o local a maior distância da casa de banho, porta da rua, e máquina de tabaco em simultâneo, o sítio estava escolhido para sempre. A rotina de Marlene no Roda Viva era espectacularmente rigorosa, mas por não gostar da cumplicidade que isso poderia sugerir aos empregados, fazia tudo como se nunca ali tivesse estado. Todas as noites parava fingindo decidir onde sentar-se. De todas as vezes pensava um pouco antes de pedir o café. Poucos dias depois de se tornar habitual na casa, um dos empregados trouxe-lhe um café, sem que ela o pedisse, que lhe deixou na mesa com uma piscadela de olho desprovida de qualquer segunda intenção, mas Marlene disse, ainda antes que ele se virasse, Desculpe, não pedi café. Era uma sopa, por favor.

 

Conseguiu fazê-lo sem ser desagradável, pelo menos no tom de voz ou em qualquer expressividade física, mas, como bem sabia, há palavras que se bastam e que chegam a ser mais eficazes na forma neutra. Nenhuma razão houve para pedir sopa e não outra coisa qualquer, saiu-lhe assim, comeu contra a vontade, e culpou a cada colher o empregado incapaz de evitar uma simpatia não solicitada, demonstração de má educação encapotada de criação de laços de pertença. A sério?, pertença? Pertença a um café mau, frequentado por miúdos bebâdos quando tudo o resto já fechou? E, enfim, que fosse um café bom, um bar de um hotel, um restaurante de luxo ou a pastelaria do bairro. Pertença? Que sopa de merda. Gostava de deixar bem clara a natureza estritamente comercial desta relação, e felizmente não foram necessárias mais do que quatro ou cinco situações idênticas para todos os empregados passarem a agir em conformidade com um mundo civilizado.

 

Numa noite normal, estaria no café entre as três e a primeira luz da manhã, sempre sozinha e sempre com um livro. Os pedidos, salvo intervenção dos empregados, seriam sempre um café à chegada, dois Jameson novos a intervalos de margem relativamente precisa, e novo café imediatamente antes de sair, que bebia ao balcão enquanto pagava. Não vinha todas as noites, nem sempre as mesmas, mas vinha várias por semana, dias úteis ou não, trazendo sempre um livro que lia sem sublinhar. Pelas suas contas fazia 40 a 50 páginas por hora em inglês ou francês e 70 a 80 em português. Supunha que houvesse quem fizesse bem pior, apesar de nenhum dos seus amigos lhe saber responder a que velocidade liam, por muito que perguntasse.

 

Naturalmente, dada a frequência do espaço, era interrompida mais do que gostaria, o mais das vezes com pedidos de cigarros ou isqueiro, algumas outras com conversas que começavam por um expletivo estás a ler? e, pelo menos uma vez por noite, com uma trapalhona tentativa de sedução.

 

Gouveia

despesadiaria às 09:00
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Sábado, 28 de Junho de 2014

 

isto não anda nada fácil. esteve aqui um - chamemos-lhe - poema. vocês não o viram. apaguei-o antes de o publicar. não era grande merda; não perderam nada. um trocadilho no título, meia metáfora mal amanhada, uma referência escandalosa ao chico buarque e uns enters fora do sítio. nada de especial. o meu avô era poeta sem saber que era poeta. os melhores poetas estão todos mortos porque é difícil escrever poemas quando se está vivo. escrever poemas é para mim quase tão difícil como encontrar agriões decentes nos supermercados. isto não anda nada fácil. e o gasóleo que voltou a subir - viram?. e as prateleiras que afinal não cabem na garagem - haviam de ter visto. e o camarão que estava estragado - ainda bem que não viram. e os clientes que só pagam a 90 dias mais iva - já nem os vejo. enfim, a vida é isto. mas nem tudo é mau: pelo menos já podemos ver o mundial descansadinhos. 

 

um tal de joão gaspar

despesadiaria às 04:24
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Sexta-feira, 27 de Junho de 2014

 

I

 

A noite de domingo é a premonição de uma semana repetida, mais um pequeno azulejo perdido no padrão azulado da piscina que brilha do lado de fora da janela. O velho relógio orelhudo, companheiro de todos os sonhos e das horas nas quais eles me faltam, vela por mim sentado na mesa de cabeceira. O seu tiquetaquear é o regulador analógico da luminosidade que penetra através das frinchas das portadas. Por cada tique, uma fresta de luz faz-se em duas; por cada taque, cada duas transformam-se em quatro. Os ponteiros dançam, a claridade imaginada cresce nos meus olhos e acorda os sentidos. Uma vez chegada ao estado de alerta em que as orbes ficam do tamanho de enormes moedas de chocolate, dobrar a quetiapina torna-se inútil, quadruplicá-la é apenas estúpido - o meu mundo rege-se por geometrias que medram até um infinito que todos apalpam, menos eu.

Costuma ser esta a hora de escrever, mas nunca o piscar do cursor negro na folha branca foi tão irritante como hoje. Na minha cama de solteira, as aparições ritmadas da linha negra trazem-me a insegurança do gabinete atrás da praça de touros do Campo Pequeno. O gabinete de linhas retas e frias: uma mesa em vidro, uma maca estofada a napa preta, mas coberta de papel sujo, duas cadeiras azuis, desconfortáveis, uma de cada lado da mesa e à esquerda da maca. Os traços austeros da sala são lâminas que rasgam o ser até à razão que o sustenta.

A senhora doutora não tem mais quinze anos que eu, mas cresce sobre mim com esse número em centímetros. O seu sorriso é de fácil desenho nas faces sardentas e o cabelo escorrido tem a cor de um fardo de palha sob o sol tardio da lezíria. Não é a pessoa que odeio, é o reflexo que as suas teorias decoradas me devolvem: aquilo que sou e sempre fui, repuxado, achatado, torcido nos espelhos de uma feira de horrores. Na hora que partilhamos, fechadas naquele gabinete, ofereço-me a cada pergunta-dundum com o altruísmo das mártires. Faço a minha defesa com murmúrios e hesitações que de nada servem para evitar que os buracos das balas cresçam até me sentir pouco mais que uma côdea.

 

- Tu escreves, não é?

Ao recordar esta pergunta, a entoação retórica que me lembro de ver nos lábios coloridos da senhora doutora atinge-me como um soco. Nos seis dias que separam estes encontros fico a lamber as feridas e a afastar as larvas. Preencho tabelas onde se expõem os meus pensamentos negativos, onde identifico as minhas respostas emocionais, comportamentos disfuncionais e ideias alternativas que curem os meus antebraços massacrados. Depois, a senhora doutora estende-me a mão de unhas compridas e bem cuidadas: quer ver o que pensei durante a semana, se houve alguma compulsão alimentar ou discussão gratuita na fila do supermercado, com ovos partidos, escaparates de revistas revirados e um gosto sanguíneo no lábio inferior. Está ali, no chão do quarto, o papel das minhas emoções mal contidas, organizadas por data e situação, escritas com tinta diluída em lágrimas. Deito-me de lado na cama, estico o braço até agarrar a folha A4. Num dos quadrados delimitados a azul está escrito que

- Viver dói. O que é que isto quer dizer?

 

O cursor pisca-pisca. Tenho encomendado um ensaio sobre o significado desta dor, mas mesmo sentindo-a como o elemento mais real do quarto, descrevê-la parece impossível. Levo a mão à barriga. Talvez viver seja uma cólica menstrual gigantesca. Esfrego vigorosamente o meu baixo ventre, o calor da fricção costuma acalmar as contrações cruéis da minha moelinha reprodutora. Ao chegar a minha mão um pouco mais para a direita, sinto nas pontas dos dedos um pedaço e pele mole e frágil. Paro o movimento para percorrer a linha diagonal com os dedos como se a descobrisse pela primeira vez, mas a carne branca, rasgada a bisturi por um talhante glorificado e cosida em sete nós toscos, enfeita-me a barriga desde os sete anos. 

 

S. White

despesadiaria às 08:30
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Quinta-feira, 26 de Junho de 2014

 

Sou comercial numa empresa há seis meses, mas não vendi um único produto, nem dos que fui contratado para vender nem qualquer outro. Ao início ainda me esforcei. Não muito. Não demasiado, certamente. Mas tentei. Tem-se uma certa gratidão por quem nos paga um salário, por mais magro que seja. Tentei por gratidão, acho eu. Ou por entusiasmo, por desafio. É provável que quisesse provar qualquer coisa a mim próprio, tipo aquele exame irrelevante da faculdade em que nos esforçamos mais um pouco para demonstrar que se quiséssemos podíamos ter sido o que não fomos, nem somos. Tentei, e não consegui. Depois deixei de tentar. E agora sou comercial há seis meses, não, há mais de seis meses, vai mesmo fazer sete meses e eu não vendi um único produto. É lamentável. Chega a ser triste, quando tapamos o lado cómico da coisa. Mas é verdade. Acontece que nestes últimos dias voltei a tentar vender as coisas, as quais fui contratado para vender. Vi uma oportunidade, fui atrás. Entendam-me: ganho o mesmo. Já me tentaram lançar a cenoura da comissão, mas viram logo que eu não era nenhum burro. Fui por enfado, por tédio, por escrúpulo. Percorri mais de 700km, à boleia e de comboio. Fui a duas malditas reuniões. E voltei a não vender nada. Não estou frustrado, não é isso. Estou cansado. Corri, suei, fatiguei-me. Fuji da rotina. Saí. Tive uma vida. É possível traçar uma biografia destes dias. Como tal, não escrevi. Ou se vive ou se escreve. Ou se vive ou nos deixam em paz. Espero que isto não volte a acontecer. Não em breve, pelo menos. Talvez em Novembro, antes de me demitir. Entretanto que volte a rotina. Que volte a maldita mas necessária rotina. A que nos oferece estáveis tempos livres, mornos parêntesis de luz.  

 

pmramires

despesadiaria às 00:21
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Quarta-feira, 25 de Junho de 2014

 

Razões pessoais

 

(ou uma trôpega homenagem a Bartleby)

 

Naquele dia, Mário, solteiro, maior, e contabilista, decidira que era tempo de começar uma nova vida, o que implicava, desde logo, deixar o trabalho no escritório de contabilidade “Almeida Contabilidade”; tomou a coragem necessária e pediu para falar com o Sr. Almeida, a quem comunicou a intenção de se ir embora imediatamente. «Mas porquê?» perguntou, espantado, o velho patrão com quem sempre se entendera perfeitamente. Mário respondeu-lhe sem rodeios, inamovível na decisão, e da forma mais lacónica possível: «Por razões pessoais, Sr. Almeida».

Sem meios de sustento nem rendimentos certos, Mário iniciou uma vida de indigência e marginalidade, cujos contornos, ainda hoje, não estão plenamente compreendidos. E isto até ao dia em que foi detido por dois agentes da PSP, em flagrante delito, quando destruía, com uma barra de ferro, uma viatura de alta cilindrada estacionada em frente ao escritório do advogado mais conhecido da cidade. Nos calabouços da polícia, o Agente Silva, amigo de infância de Mário, censurando-lhe a conduta, perguntou-lhe «Por que caralho andas tu a fazer isto, Mário?», ao que Mário respondeu: «Por razões pessoais, Silva».

Procurado há meses pelas autoridades judiciárias, e após o decurso de um curto inquérito, Mário foi acusado pelo Ministério Público da prática de: três crimes de furto (uma encyclopedia britannica da casa do Dr. Areias, as obras completas do Padre António Vieira da Biblioteca Municipal, e várias obras de Dostoiévski de uma livraria), um crime de dano, dois crimes de roubo (um numa casa de penhores, outro num estabelecimento de compra de ouro), um crime de ofensas à integridade física (agredira um carteiro), e um crime de incêndio (provocara uma explosão no Serviço de Finanças de E.). Na audiência de julgamento confessou a prática de todos os crimes, sem quaisquer reservas. Instado, por fim, a informar o tribunal dos motivos pelos quais os cometeu, respondeu simplesmente: «Por razões pessoais».

No dia da leitura da sentença (pena única de sete anos e seis meses de prisão), o repórter do jornal local “O Diário de E.” conseguiu ainda, enquanto conduziam Mário, algemado, para o carro celular, atirar a pergunta «Por que o fez, Mário?», ao que este apenas logrou responder, sem manifestar qualquer rasgo de arrependimento ou outro sentimento, «Razões pessoais».

Encaminhado para o estabelecimento prisional da cidade de E., Mário continuou procedendo de um modo algo inexplicável, passando a maior parte do seu tempo silenciosamente na cela, sem qualquer contacto com outros reclusos, recusando até a alimentação. E sempre que alguém procurava indagar directamente a causa de tal comportamento, Mário apenas exprimia as secas palavras que ultimamente lhe eram conhecidas: «Por razões pessoais».

Umas semanas mais tarde, numa altura em que estava já internado na enfermaria do estabelecimento prisional, Mário recebe uma visita do Sr. Almeida; este, compadecido pela história do seu antigo empregado, procurou, em vão, compreender e demovê-lo de prosseguir semelhante atitude. De facto, apenas teve tempo de se abeirar do paciente, cadavérico, respirando com dificuldade, e ouvir as derradeiras palavras que, num sussurro arrastado, proferiu: «razões pessoais».

O óbito foi declarado no local poucos minutos depois. E ainda hoje, quem passar pelo cemitério da cidade de E., poderá ler, inscrito na pedra tumular da campa número 791, o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Mário R., que morreu por razões pessoais”.

 

EVN

despesadiaria às 06:04
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Terça-feira, 24 de Junho de 2014

 

o poeta na esplanada

 

o tropo penetra tanto como trepa

e obedece à mesma mecânica

da cotovelada simiesca

que aponta as úberes leggings

dervixes, castrati, aedos

passando pelos imaginários os dedos

 

[]

despesadiaria às 11:36
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Segunda-feira, 23 de Junho de 2014

 

O cartaz foi encaixado entre duas hastes na plataforma: "Proibido fumar". Por pudor, mas também por irritação, atiro o casaco por cima, cubro-o. Acendo um cigarro. Ela outro. Venta muito, mas nossas fumaças sobem em linhas rectas para a Ursa Maior (e Menor conjuntamente). Toda paragem de comboios é um bar sem saber que é. Atrás da estação as ruas sobem, corcundas, mancas, amputadas. Do outro lado, deixaram-nas cair. A fumaça espuma na beira do defumador. As faíscas estalam e giram, o vento as puxa pelos cabelos, elas se desfiam em tranças. Essas fumaças são espíritos. São o mundo a dizer que não há no mundo aspecto privilegiado (o que até não deixa de ser uma perda sem contrapartida). As sombras não param de pular para trás, e de voltar a passo de lobo. E aos poucos a beatitude etílica apaga o real que a apaga; transformará esses bancos de tijolos em correntes de ar, e a esse falso astro aldeão acima dela fará tão verdadeiro quanto o verdadeiro. Mas antes a toalete se completa: uma cidade vai buscar essa linfa escura, puxa-a da terra por milhares de canudos, suja tudo, transpira esse velho mel enrugado pelos alvéolos, é uma cratera habitada. O que é preciso fazer em Nápoles é arrancar os cacos de dentes, obturar pontes e prédios, dar a impressão de que esse velho maxilar pode ainda morder. Uma velha mandíbula de vaca encalhada na areia. Muralha da China de pedra-pomes.

 

Peor

despesadiaria às 07:01
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Domingo, 22 de Junho de 2014

 

Também observei o comportamento da perdiz (Alectoris rufa) na rodovia. A perdiz, mais caçada pela sua falta de destreza que pelo seu sabor, apresenta semelhanças com quem a caça. Veste de caqui. Vai para a estrada sem que se perceba porquê. Tem crias como se fosse haver amanhã — mas a perdiz tem desculpa, desconhece o conceito. As crias parecem mais sensatas que as progenitoras: o som do carro que se aproxima é o sinal que basta para estas recolherem à berma, enquanto aquelas, propriamente despassaradas pelo efeito Doppler, parecem achar que há tempo para ponderar opções. Mesmo sendo só duas, sem contar com as alíneas, os resultados estão pelo asfalto com custos para o utilizador.

 

Uma contagem quase sistemática num troço de quinhentos e quarenta e sete metros escolhido quase aleatoriamente confirmou esta impressão: perdizes adultas espalmadas: sete; juvenis (que são mais que as mães): zero. Também a perdiz perde algo pelo caminho-tempo quando tem a sorte/azar de não perder tudo num ponto do caminho-espaço. Talvez as cacem, afinal, por ódio ao espelho.

 

Mesmo estando fora do âmbito das minhas ocupações, foi-me impossível deixar de notar que, ao nível da relação com a rede rodoviária nacional, a lebre-comum (Lepus europaeus) também parece sofrer de problemas que não afetam o coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), ou afetam-no com outra discrição. Eu próprio já atropelei uma lebre-comum, que não comi, mas nunca estive perto de atropelar um coelho-bravo, que iria ao forno. O meu desconhecimento do peso de ambas as espécies na população total de leporídeos e o caráter particular da minha experiência no terreno aconselham a não adiantar, para já, mais considerações acerca desta hipótese.

 

E.

despesadiaria às 00:53
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Sábado, 21 de Junho de 2014

 

vai ver-te ao espelho logo de manhã

e passa depressa a lâmina pela cara

que não vais querer que te olhem assim no trabalho

 

a camisa que te ofereceram no natal passado

cai-te bem sobre o tronco magro

mas o nó da gravata lembra-te tem de ficar bem apertado

 

não percas este metro

e sente o cotovelo que te magoa as costas

a mão que não sabes de onde a afagar-te a nádega

 

vá deixa de ser desconfiado

ninguém te vai roubar a carteira

quando muito atrás de ti há uma septuagenária

com pensamentos de solteira

 

mantém a compostura e esse sorriso bem educado

tu és poeta para se levar a sério

e eis-te aqui épico entre o campo grande e o chiado

 

não importa se lá fora

a cidade é indiferente ao destino que tens traçado

 

o que importa é garantir

que a gravata não fique um pouco de lado

 

- azeite

despesadiaria às 09:22
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Sexta-feira, 20 de Junho de 2014

 

#1 (de 4) :: duas da manhã ::

 

O café Roda Viva abria todas as noites do ano exactamente às 3h30 da manhã, com o inteligente propósito de servir todos aqueles que em mais de dez anos ainda não se habituaram a ver os bares que frequentam fechar à hora legal. O Roda não tem decoração retro, nem espelhos, nem flyers no balcão, e das colunas ouve-se a Rádio Renascença todas as noites. As mesas quadradas de contraplacado, com uma tira de alumínio a toda a volta e as cadeiras de sala de aula, as montras de pastelaria recheadas de salgados acabados de fritar e as frigideiras em lume brandíssimo com bifanas e outros cozinhados em molho abundante, são de um espaço que não pertence a estas horas. O Roda Viva não está aberto de noite, antes abre especialmente cedo. E fica aberto até perto das cinco da tarde, hora a que terminam os últimos almoços e em que são finalmente lavadas as últimas frigideiras de ferro, o chão é limpo de beatas, as vitrines livres de gordura, a casa de banho limpa pela quarta vez.

 

Às duas da manhã, Carlos, que tinha largado o trabalho às 14.30, assim que fechava a cozinha, abria a porta do seu café sozinho, levantava as cadeiras, começava a encher de óleo as frigideiras e a tirar as enormes caixas de pastéis de bacalhau e croquetes do congelador. Cortava em bocados o polvo que tinha cozido à hora de almoço, procurava habilmente nas peles e espinhas das sobras de bacalhau as tiras que juntaria ao polme também preparado de manhã do que viriam a ser pataniscas. Até às três, momento em que chegariam em simultâneo os seus quatro funcionários da noite, teria as vitrines do balcão cheias e as frigideiras em combustão lenta, pronto para fumar o primeiro cigarro, à porta do estabelecimento, ainda fechado ao público.

 

Quando Marlene vinha, era a esta hora que chegava. Inicialmente ainda aproveitavam para umas palavras simpáticas de circunstância enquanto ela também fumava um cigarro antes de entrar, mas alguns meses depois esta rotina transformou-se num aceno amigável, após o que Carlos, sem largar o cigarro, abria a porta discretamente e a deixava entrar.

 

Gouveia

despesadiaria às 15:13
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Quinta-feira, 19 de Junho de 2014

 

reencontrar um ex-amigo é, a todos os títulos, sucesso a evitar. se digno de mero registo en pasant em caso do acaso nos cruzar numa calçada daquelas de olá e adeus, até um dia destes, temos que combinar um café, estou cheio de pressa, ia para ali, já em situações cuja estratégia de fuga se nos afigura inalcançável, o descritivo requer-se mais detalhado. conta-se em poucas linhas o lamentado e sucedido. espero contar com a sua empatia, caro leitor. se for esse o caso, faça o favor de me acompanhar. o cenário era uma fila de supermercado, filial dos hipermercados azevedo. local por si só a evitar, sem demais razões a terem que vir à baila, mas convirá o meu amigo leitor que há momentos da vida em que um gajo fraqueja, e os bens essenciais são assim chamados por alguma razão. sem muitos considerandos sobre a escolha da fila de caixa certa - que não existe e, se existir, nunca será a escolhida - sem muitos considerandos, dizia, este que vos tecla encaminha-se à caixa cheio de vontade de proceder ao pagamento dos consumíveis recém desprateleirados e ao posterior usofruto dos mesmos após curta (espera-se) viagem de regresso a casa. aqui chegados, sou alertado para usar a expressão, «no conforto do lar». consideremos isso despachado. à minha frente, só uma gorda. deve ser rápido. 'tá bem, 'tá - ri-se o tio murphy. pousados os bens até então carregados em sólido regaço, surge à retaguarda o referido ex. então, tudo bem, há quanto tempo, estás por cá, que tens feito. cumpridas as desnecessárias formalidades sociais, lembro-me que não me lembro sequer do nome. não vai ser preciso, penso. 'tá bem, 'tá - outra vez ele. a gorda que aquilo estava em promoção e agora está a passar o preço errado, a caixista que o colega já aí vem. o vitor (?) que temos que combinar qualquer coisa, que estou só de passagem mas venho viver para cá (foda-se, até eu já percebi onde é que isto vai dar) que mudo-me no fim do ano, estive em angola e acaba o contrato em dezembro, que os angolanos agora é só dinheiro, mas são pretos e não percebem nada de engenharia, querem construir estradas e eu, olha, aqui era desempregado, lá no meio dos pretos sô enginhêro. e eu penso, calo-me ou chamo-lhe já porco racista, a gorda que nunca mais, eu pago-lhe a diferença da promoção se for preciso. olha, dá-me o teu número que eu dou-te um toque, dispara o samuel (?). olha, que caralho. eh pá, deixei o telemóvel no carro. a mão esquerda denuncia-me. afinal está aqui. estou a ficar sem bateria (ridículo, eu sei, amigo leitor). grava aí o meu, recarrega o luis (?). novium, dois cinqueseis, doijoito três sete. dá aí um toque para eu ficar com o teu. temos que falar. está tudo bem contigo? tudo a andar, tento eu fugir. eh pá, atropela o fábio (?), separei-me da sofia (who?), relações à distância, sabes coméquié. (não sei, não, amiga leitora). e lá em angola, com tanta carne boa, sabes coméquié. (também não sei, juro). temos mesmo que ir jantar. olha, eu ligo-te quando vier para cá, tenho saudades tuas, pá. vamos beber uns copos e falar da vida, que isto anda assim meio coiso, sabes coméquié (esta por acaso sei). desde que me separei da sofia a minha vida anda um farrapo. fui-me a baixo, não me renovaram o contrato, por isso é que vou voltar. eh pá, estou na merda, solta o tózé (?), sem se importar com os decibéis. a caixista devolve-me o cerelac e o tinto ao mesmo tempo que eu esbugalho o olho em direcção ao eduardo (era isso, eduardo!). como quem não está satisfeito com o dano causado, ele insiste: eh pá, estou na merda. e eu, que sempre que posso cito os rio grande, peguei no saco das compras e disse: «olha, sou capaz de ir aí pelo natal.»

 

um tal de joão gaspar

despesadiaria às 01:27
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Quarta-feira, 18 de Junho de 2014

 

Wake of shame

 

O clarão da madrugada escorre pelas frestas ovaladas das gelosias, deixa o rasto luminescente rasgar o monte de roupas esquecido numa cadeira giratória e morre na lisura da estante de pinho - dois metros de design sueco sem contos fantásticos ou livros de poesia. Em cada prateleira sobra a negrura ignorante. Na do topo, inacessível mesmo ao meu braço mais comprido, um colosso sobre as técnicas da ciência com equações diferenciais suga as correntes frescas da divisão para a sua lombada acastanhada; nos outros espaços vazios, pequenos corpos negros devoram o meu despertar arrastado.

Não sei onde estou. O fantasma borracheiro esqueceu uma esponja na minha boca. O gosto do vinho atrasado faz da glote um badalo inquieto, hesitante quanto ao futuro da pouca comida que ainda jaz no estômago. Eis a expressão máxima do glamour do dia seguinte: a cabeça enfiada nas fauces de um sanitário encardido, as mechas de cabelo que a violência dos arranques vesiculares solta do apanhado e que se colam ao suor cansado, a escorrer das têmporas. Tenho um Chuck Close preso no espírito, cada momento imaginado é um fotograma que se sucede a outro. Tudo seria mais simples se eu soubesse onde fica a casa de banho, se o meu ponto remoto não fosse a parede branca frente à cama na qual estou deitada. É nela que concentro o olhar, tentando adivinhar a cena em redor com os sentidos que sobram. Cada um vai acordando lentamente, à procura da sua consciência própria.

Sei que o lençol que me tapa as pernas também é branco. Estou há tanto tempo quieta sob o toque do algodão que do tronco para baixo sinto apenas uma dormência pastosa, como se pele e tecido se fundissem num só revestimento híbrido, a tapar-me as talas disfarçadas de ossos. Espreguiço-me, estalo os ombros e o pescoço, estendo os braços para cima e para atrás até os punhos baterem na esquina da cabeceira da cama, onde ficam presos na duração de um suspiro atormentado. De tensão articular aliviada, esqueço a parede. Fecho os olhos com força e deixo os pontinhos esbranquiçados piscar na escuridão das pálpebras. Sinto os movimentos oscilatórios do esterno a cada golfada de ar. Apalpo as minhas costelas com as pontas dos dedos: uma, duas, três, estudo-lhes os intervalos com o toque, brinco como se tocasse naquele piano ósseo o requiem da minha inocência, e a música afunda-se no odor que se eleva das garrafas de vinho espalhadas pelo quarto.

O cigarro da sorte ficou por fumar. Vejo-o, solitário, na carcaça do maço de Marlboro que repousa na mesa de cabeceira. Não encontro o isqueiro, deve ter-se perdido algures no outro lado deste leito maldito. Nada enxergo à minha esquerda além da muralha muscular erguida a um palmo da minha almofada. As sombras da alvorada encharcam-na de lama. Ontem à noite, os sinais escuros da pele envelhecida podiam ter desenhado as mais belas e intrigantes constelações. Um horóscopo de promessas, as previsões de sagitário no amor. Agora, o que mais quero é deitar de costas o muro da minha vergonha e trepar pelos destroços; prender a cintura daquele homem com as minhas pernas nuas, agarrar na almofada manchada de máscara preta e usá-la para lhe tirar o ar. Com gosto exorcizaria a vida daquele corpanzil danado, seria até um preço pouco justo pela minha nova cicatriz de arrependimento, a ser descoberta após engolir dois cafés cheios, sem açúcar.

Estas ideações homicidas abatem o último bastião da quietação doentia que me prende a este sítio. Com o desejo de sangue a alimentar a carne, consigo finalmente tirar as costas do colchão e ficar sentada na cama, sentindo o meu próprio sangue a pulsar violentamente na nuca de caracóis enriçados. Recordo um pintassilgo muito amarelo que fiz explodir nas mãos quando era pequenina. Receio que o mesmo me aconteça se não sair daqui, que o ar quente deste quarto me aperte com entusiasmo doentio até os olhos saltarem das órbitas e as suturas cranianas se desfazerem em linhas soltas. Vejo os meus miolos grafitar a parede branca na qual me concentrava há uns minutos, e de repente imagino a parede ensanguentada, a estante nórdica, os lençóis sujos, tudo parte de um happening glorioso que culminaria no meu regresso ao pó das estrelas. Levanto-me, a náusea mental é agora mais intensa que a física. No seu abraço asfixiante, procuro as minhas roupas. Visto-me. Saio do quarto para o corredor escurecido e encontro uma porta de madeira robusta e trinco pesado à minha esquerda. Saio do apartamento, saio do prédio, saio do bairro suburbano. Só não saio de mim porque não posso.

Ora, muito bom dia a todos.

 

S. White

despesadiaria às 08:00
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Terça-feira, 17 de Junho de 2014

 

Conto às prestações. 

 

(outro, sim. talvez valha a pena um esclarecimento: o conto é partilhado ao ritmo a que o autor o escreve, daí ser às prestações. por vezes sobram-lhe uns trocos, ao autor, mas não o suficiente para pagar dupla prestação - muito menos o total da despesa.)

 

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1.

 

Há alguns anos atrás, a meio da tarde, numa praia algures no norte litoral do país, era possível avistar um jovem rosado, mais espadaúdo que elegante, vestindo uns calções de praia azul-turquesa. Estava sentado numa intergeracional e desdobrável cadeira de lona, enterrada na areia a dois passos de uma geométrica barraca de praia. Na mão direita, 33cl de cerveja encapsulados numa lata cilíndrica de metal. Na esquerda, uma banda desenhada em paperback manchado e de pontas corroídas. Ao seu lado, duas jovens mediterrânicas, quais garças de perna longa e pescoço fino, derretiam oleosas há largas horas. Aos seus pés, uma bola de plástico, insuflável e multicolor, aguardava melhor uso. Ao fundo o mar, desdobrando-se preguiçoso na areia fina e aderente… Era possível ao leitor avistar esse jovem de boné vermelho com aba voltada para trás e óculos à aviador fixos na oblíqua cana do nariz – mas o mais provável seria enganar-se redondamente se tentasse adivinhar as águas por onde o seu pensamento navegava.

Imagine um jardim com piscina e pezinhos trôpegos a chapinhar nela. Imagine uma bola de celulóide seguindo trajectórias surpreendentemente rectilíneas para cá e para lá numa mesa de pingue-pongue cuja rede esburacada já tinha posto em causa amizades e gerado rocambolescas teorias. Imagine cadeirões de couro e adolescentes frenéticos neles sentados enquanto a televisão exibe mais uma espectacular etapa de montanha do Tour. Imagine blusas de alças caindo lânguidas sobre miúdas que se passeiam airosas pelos labirintos de um parque de jogos. Imagine uma mesa de nogueira à sombra de um olmeiro e tortas de toda a espécie e sumos frescos sempre nela renovados. Imagine o odor da relva viçosa e cíclicos jogos de futebol entre luxuriantes rododendros. Imagine um ambiente plácido, uma atmosfera jovial e quadros impressionistas... E por fim imagine que o jovem sentado na cadeira de lona tudo isso imaginava e muito mais!... E a leveza e prazeres de outros tempos, certamente adocicados pelo filtro nostálgico da memória, tornavam mais densa a quietude sufocante que o envolvia, o ritual pastoso de inactividade em que se via preso. A simples visão das pregas laterais do pano da barraca de praia, abatidas como bochechas flácidas num rosto envelhecido, não podia deixar de fazê-lo pensar nos dias em que, enfunadas pelo vento, se agitavam alegres e ruidosas.

O jovem frequentava o terceiro ano da faculdade e tinha a estranha sensação de alguém que se vê cair numa armadilha sem ter saído do lugar onde há muito estava. No entanto, caso alguém pudesse auscultar aquilo que ele sentia, não poderia deixar de concluir que, fosse como fosse que tivesse ido ali parar, avolumava-se nele uma fúria que o levaria a sair. Não porque a ingenuidade que nutria o seu pensamento lhe alimentasse ilusões de reviver algo que sabia estar definitivamente para trás; mas pela indiscutível necessidade espiritual de evitar um colapso nervoso sob aquela teia asfixiante e viscosa. 

«Chega», pensava, «tenho de acabar com este namoro ainda hoje.»

 

(continua)

 

pmramires

despesadiaria às 08:15
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Segunda-feira, 16 de Junho de 2014

 

a janela do senhor João às duas e meia da tarde

 

creepy  socks e roupa menor emolduram

uma cara jiboiando

meditabunda contando

os tostões do abono

três tacinhas de verde e um maço de americanos

pede-se mais três moedas à filha

quatro? muito bem pensado

agora o sono

 

[]

despesadiaria às 14:56
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Domingo, 15 de Junho de 2014

 

Isto à primeira vista não se percebe. Mas estou sentado numa dessas cadeiras de rodinhas. Passa um pouco das onze da manhã, e há quase meia hora estou a fingir falar ao telefone. Digo "fingir" porque é uma conversa em que não consigo meter nem prego, nem estopa. O gajo que está a espera de que eu desligue o aparelho, faz passar voluptuosamente, pelos buracos do nariz, o fumo do cigarro. Em cima da mesa, aberto, um Michelin gordíssimo a eviscerar as belezas da Itália; as pontas gastas e empenadas pelo excesso de aproveitamento. Olho para Cápua. Continuo uma conversa para fora da qual a minha atenção pouco a pouco resvalou. Isnello fica a setenta e nove quilómetros de Palermo. Palavras italianas flutuam entre as cadeiras, mortas, de barriga para cima. Atrás do gajo, o sol e os galhos misturam-se numa espécie de siroco que deposita por toda parte uma luz diluída, enfarinhada, que entra pela janela e dá aos contornos um brilho embalsamado, leitoso como aquelas membranas que envolvem um órgão ou lhe formam as paredes. Trata-se do reino sinistro do esbranquiçado. A fumaça sobe pela ponta do cigarro, a se revirar como uma língua recém cortada. Dois passos à direita e a sala metamorfoseia-se em um canteiro de escadas, escoras de madeira; uma porta arrancada das dobradiças está encostada na parede entre uma pirâmide de lascas de tijolos e uma papa de gesso em um balde. A casa, de uma grandiosidade ultrapassada, pertence à sua irmã. Eu a tinha visto na cozinha, a passos largos para a embriaguez. Uma bacia com água sai por uma porta nos braços de uma miúda. O gajo piscou-lhe. Ela devolveu-lhe a piscadela e depois mandou-lhe um beijo, pondo a boca em forma de cu de galinha. Vai dar banho à boneca que abre e fecha os olhos. Ele sopra um anel de fumaça na direcção da minúscula messalina, e aquela oval vazada, a flutuar, parece impregnada de uma mensagem erótica. Foi sempre assim. Quando se acham grandes e querem enviar mensagens ao mundo, dão impressão de ter rebentado o prato, mas na realidade não quebraram nada. Trincam uma banana, agarrados só por um braço à barra do trapézio. Tudo a fingir. Há uma rede lá embaixo, pode-se cair à vontade. Viro a cabeça. Olho para a miúda e para a persistência com que empurra o cabelo para trás das orelhas. Depois para o gajo, cuja atenção estava agora voltada para o acto de enfiar o dedo no nariz e o examinar com sonhadora satisfação antes de limpá-lo na beirada do banco.

 

Peor

despesadiaria às 12:11
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Sábado, 14 de Junho de 2014

 

Não se trata de culpar ninguém por nada e muito menos por alguma coisa, trata-se de constatar que é muito difícil chegar a algum lado, quanto mais a nenhum, com gente assim. Proponho portanto que elaboremos um documento em que sejam sumariamente explicadas algumas noções que, depois de interiorizadas, poderão coisar ações capazes de rebolar em direção a um objetivo, logo se vê qual. Vamos então começar a desenhar a semirreta.

 

1. É importante que aprendais a distinguir entre raciocínio e reflexo condicionado. Não sendo previsível que tenhais disponibilidade para as minudências desta diferença, tão subtil como a reverberação das vossas palavras de ordem dentro de uma manilha de saneamento, segue a regra simples, de acordo com o enunciado acima: quando notardes que vos estais a babar, largai o que estiverdes a fazer, mesmo que caia ao chão e se parta. Não faz tanto mal. As coisas refazem-se, enquanto que as palavras, mesmo em desordem salivar, valem sempre menos do que queremos e mais do que julgamos.

 

2. ___________________________________________________________________
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3. ___________________________________________________________________
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E.

despesadiaria às 00:23
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Sexta-feira, 13 de Junho de 2014

 

Assim que acordei, estremunhado, não pude deixar de reparar no bojo que se fazia anunciar por debaixo das calças do pijama. Qual madalena de Proust, vi-me amolecer num devaneio que só parou quando me reconheci, todo homenzinho, sentado no banco de trás do Mitsubishi Galant que o meu pai guiava, sobre a 25 de Abril, para levar a família, aos sábados e aos repelões, a ver o Tolan. Eu bem que insistia, olha que é pai, mas o meu pai garantia-me que não, que aquilo não era a barriga de uma baleia que dera à costa. Eram tempos em que acreditava em tudo o que o meu pai me dizia. Hoje sei que passou uma boa parte da vida a mentir-me e, por isso, é provável que também me tenha mentido quando me disse que aquilo não era a barriga de uma baleia que dera à costa. Ainda assim, vivia, sem que o pudesse adivinhar, os meus bons velhos tempos. Aos domingos, íamos de metro até ao Alvalade, aplaudíamos o Manuel Fernandes e o Jordão, depois lá rilhava uma sandes de coirato na rulote do careca e, se estivesse com sorte e o Sporting ganhasse (o que era uma e a mesma coisa), empurrava-a com uma gasosa da Rical. Também gostava das manhãs de domingo. De ir à catequese para me sentar ao lado da Helena e de seguir, depois, com a família, para ver o Tolan. (Certa vez, perguntei à Helena se queria ver o Tolan. Mal me refiz desse encontro, tratei de comunicar formalmente aos meus pares o teor da sua resposta. Para o efeito, lembrei-me de uma palavra que aprendera ao ler o correio sentimental de um dos fascículos da revista Maria, convenientemente sempre à mão, sobre o naperon da mesinha de centro da nossa kitchenette no Miratejo. Preliminares, meus amigos. Muito embora, em bom rigor, para a Helena não tenha havido dúvidas de que se tratara de uma joelhada nos tomates).

 

Ao recordar-me dessa época, poucas coisas me deixem mais saudoso do que os intervalos passados no pátio central da escola preparatória Pintor Columbano. Suburbanos que éramos, ali atravancados entre o bairro dos ciganos do Laranjeiro e a nacional nº 1, lá nos juntávamos nos recreios, para umas futeboladas ou, então, para falar de cinema francês. Passo a explicar: primeiro que tudo, convencíamos o infeliz com mais graveto na turma a comprar a TV Guia todas as semanas (normalmente, o argumento a que mais recorríamos, era um par de chapadas). Professoras saídas do PREC passavam por nós de lágrima na lapela, infladas por um sentimento de trabalho bem feito, por ver assim aquele grupo de cábulas a folhear as páginas de uma revista em busca do próximo Rivette, do último Godard ou do melhor do Truffaut. É verdade que não lhes sabíamos os nomes nessa altura. Mas sabíamos o essencial: se eram franceses e o filme passava na rtp2, mais cedo ou mais tarde, haveria de aparecer um par de mamas.

 

azeite

despesadiaria às 11:38
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Quinta-feira, 12 de Junho de 2014

 

Uma lista em papel de milhares de números contra um excel de milhares de números, a representação quase binária de um mês de actividade incompreensível; apenas duas colunas intermináveis, inimigas. Reconciliação, chamaram-lhe pessoas que não podem saber do que falam, não sabem da fúria que a precede, nem dos atalhos que tomamos, ou do make-up sex que prevemos com esperança. Reconciliação, chamam-lhe, como se gozassem connosco, ao controlo neurótico de duas colunas infinitas, iguais. Linha 1, papel, check, ctrl+f, excel, check, linha 2, papel, check, ctrl+f, excel, check, linha 3, papel, check, ctrl+f, excel, check,  linha 4, papel, check, ctrl+f, excel, check,  linha 5, papel, check, ctrl+f, a música nos auscultadores não significa nada, passam álbuns inteiros e não os ouço, excel, check. Linha mil, linha dois mil, nem um erro, cresce a ansiedade por um erro, um cêntimo, um erro do caixa, um erro de simpatia, um erro humano que me devolva a humanidade a esta tarde de ctrl+f, e de vistos a caneta vermelha.

 

Invariavelmente o erro surge, reconcilio banco e contabilidade e é impossível não sentir o horror de ter chamado felicidade ao usufruto de um grão na engrenagem em que me enfiaram, a engrenagem que sou.

 

Gouveia

despesadiaria às 12:52
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Quarta-feira, 11 de Junho de 2014

 

riscar o que não interessa

 

sabes que é inútil. só querias escrever uma frase mas sabes que é inútil. é essa a grandeza do ser humano, disse o pina uma vez. que é inútil. que sabemos que é inútil. e mesmo assim vamos lá. se calhar o pina não disse exactamente estas palavras. mas foram estas as palavras que eu ouvi. é aquela merda da arte estar nos olhos de quem vê ou o caralho. eu ouvi, está ouvido; a literatura que se foda. a literatura é inútil. e ainda por cima já está toda escrita. sabes que é inútil. procuras in-ce-ssan-te-men-te a frase perfeita. sabes que é inútil. aquela frasezinha: punho cerrado, seta apontada, metáfora indelével. uma frase, para te salvar a vida. uma frase e morrias feliz. aquela puta de frase, a meio caminho entre o riso e o chão, onde a literatura nasce, vive e morre, se tudo correr bem. tentas lá ir, com a certeza de que nunca conseguirás lá chegar. sabes que é inútil.

um tal de joão gaspar.

despesadiaria às 07:30
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Terça-feira, 10 de Junho de 2014

 

A perspetiva popular de um crime passional.

 

A minha mãe mandou-me ir à casa das lãs. A loja é mínima, espremida entre um dos cafés mais antigos da vila - o pioneiro na venda de gelados, algures nos anos 60 - e uma esquina de calçada puída com destino a um bairro que nunca explorei. Fica perto da casa mortuária, de uma fábrica defunta e das ruínas do castelo. Lãs Alegre: é este o nome que se lê nas letras verdes da placa em forma de favo de mel. A porta de entrada é tão minúscula que pede uma vénia a quem por ela quer passar; dentro da loja, sobra-me um palmo para não bater com a cabeça no teto. A divisão é quadrada, o espaço é bem aproveitado. As prateleiras embutidas nas paredes laterais guardam dezenas de meadas de lã, arrumadas com regra e primor. Quando o cliente entra na loja, a onda de cor rebenta com suavidade mediterrânica, começa nos lilases mais frios e termina nos vermelhos ardentes: o colorido de todos os modelos da Burda colecionados pela minha mãe. A dona da loja é uma senhora baixinha que tem a mesma idade há vinte anos. Nas horas de pouco movimento, pressiona o tronco em forma de barril contra o balcão de vidro. Vai lendo as novidades das telenovelas, mergulhada num transe de fofoquice para ajudar a esquecer o barulho dos ponteiros do relógio. Assim que alguém entra na loja, desperta prontamente do universo rosa-ácido com um sorriso e um cumprimento cordial.

Mas hoje, uma sombra abraça o bom dia, menina com que me recebe. Peço à dedicada lojista trezentas gramas de lã azul para uma camisola. O pedido é pousado sobre a balança branca, uma balança analógica, digna de museu, companheira próxima do escaparate onde se exibem os carrinhos de linhas da Ancora. Observo a mulher enquanto tira da gaveta o saco de plástico azul para lá colocar as minhas meadas. Cada gesto é findado com um tremelique. A mesma sombra que cobriu o meu bom dia estende-se para as ações mecânicas da senhora, uma lojista treinada!, e compromete a destreza com que as teclas da caixa registadora se encolhem na cobertura de plástico encardido. Pago a lã. O peso das moedas na mão da mulher é multiplicado por dez à potência do que quer que seja que lhe perturba a alma. Com o troco, recebo um longo suspiro. O vinho estragado espirra de entre as talas do barril inchado: ó menina, desculpe lá, mas sabe o que aconteceu ontem à noite? De cotovelos apoiados no balcão - e com as generosas mamas a taparem metade da revista que ali se abre -, a senhora conta-me que numa rua empedrada por detrás da loja, num beco escuro com séculos de beijos roubados, um homem matara a mulher com uma machada. Foi o Senhor Zé, menina, rachou a cabeça da mulher ao meio! Não faço ideia de quem sejam, assassino ou vítima: todos os velhos se chamam Zé, todas as velhas se chamam Maria. São mil caras para dois nomes vulgares. O cenário pintado é dantesco, com sangue e miudezas a tingirem o chão e a mobília do casebre onde dois septuagenários aqueciam os pés um do outro. O Senhor Zé, que raio havia de lhe passar pela cabeça!

Saio da loja com a minha lã e um par de agulhas que acabei por comprar para substituir abraço que não dei à comerciante desconsolada. Estou no Bairro do Areal: uma ruela estreita, torcida no sopé da colina onde se erguem os Paços do Concelho. Há de tudo neste pequeno bairro, da mais prosaica mercearia a uma agência funerária chamada Alface. Também há um barbeiro, o Pascoal, que encontro encostado à porta do seu estabelecimento-tertúlia. A barriga protuberante quase cumprimenta os espelhos dos carros que passam com um aperto de mão. O bigode farfalhudo está tenso e enriçado sobre a boca opinadora. Hoje o tema que discute com dois amigos, encolhidos na berma suja, não é futebol. Bom-dia, menina, e logo volta a divagar sobre o crime da rua de cima. Paro para ouvir, as versões de barbearia dos crimes devem ser tão boas (ou melhores) que as dos adultérios. Com a bênção do cachecol do clube de hóquei-em-patins, pendurado sobre o espelho que reflete a rua e uma cadeira vazia, o Pascoal conta a história que lhe emprestaram:

 

o Senhor Zé, que só é Senhor pela idade que tem, chega a casa para jantar. O fígado processa a aguardente, mas não é caso grave porque o sistema está bem treinado. Dá de caras com a mulher - raios partam aquela mulher. Como se espera do casal que se atura há uma vida, discutem. Mas a bílis ferve com afinco e o homem está farto da víbora que desposou há umas décadas atrás, na tolice da juventude. Agarra na machada e atira-a. Primeiro, aponta ao peito, e deixa um lanho sangrento no esterno da velha. O coração aflito espreita pela fresta e vê a segunda investida, agora contra a barriga. As tripas da mulher escapam-se-lhe entre os dedos, como pequenas enguias. No fim, o Senhor Zé aponta à cabeça e deixa o aço dividi-la em duas. Há sangue na machada, nas mãos do Senhor Zé, no chão da cozinha, na mesa, no prato de açorda de bacalhau…

 

E sabe quem chamou a polícia, menina? O Pascoal olha para mim, muito sério. Faço um esforço para não me rir dos seus traços castiços. O pobre barbeiro é a caricatura de um jogador de futebol dos anos 80. Remata: diz que foi o próprio Senhor Zé a telefonar para a polícia. Naquele palco inusitado, deixa a frase a pairar com uma solenidade descabida, ao jeito de quem revela os feitos de um mártir. Talvez nunca tenha gasto as madrugadas a ver programas sobre assassinos em série nos canais mais duvidosos que o pacote da televisão por cabo oferece. Já eu, devoro esse lixo televisivo com a mesma avidez com que aqueles três homens olham para mim, expectantes. Anseiam uma opinião fresca que os valide, ou então que eu siga a minha vida, deixando-os inspecionar a traseira que o casaco não esconde. Acabo por encolher os ombros, tamanha é a confusão que afoga o meu discernimento. Os programas da madrugada não me ensinaram a endeusar carrascos. Mas antes de conseguir gaguejar uma desculpa para abandonar os convivas, o coxo da vila passa pelo alcatrão esburacado e acena na nossa direção. Pergunta se estamos a falar do terrível acesso de loucura do Zé, patrocinado pela machada que nem sequer lhe pertencia. Abeira-se de mim em dois tropeções: fui eu que lhe emprestei a machada, diz.

A arma que descreve é da mais fina forja. A lâmina implacável brilhava, sem ferrugem que a maculasse, rachava troncos de zinho com uma destreza de fazer inveja às serras elétricas mais chiques. E que fácil era manejá-la, o cabo polido unia-se à mão como extensão natural do membro. O coxo está inconsolável, sem a querida machada e sem o amigo com quem partilhava couves. Lamenta não ter dado o valor devido aos dois. A machada, tão boa que até rasga cabeças. O amigo, tão bom que aguentou a perfídia daquela rameira durante tantos anos. Quantas lâminas não lhe passaram pelas mãos durante a longa pena que Deus lhe impôs? Os outros homens soltam exclamações, todos se encontram em acordo inédito, de repente ninguém tem clubes. Está na hora de me ir embora. Antes prefiro que me galem o rabo a explicar o esquema retorcido da moral que ali se prega. Logo eu, que tenho na mesa de cabeceira uma bíblia virgem. Os meus argumentos de nada servem aos homens que todos os Domingos vão à missa bater com o punho cerrado no peito. Pobre Senhor Zé, pobre Senhor Zé. No caminho para casa, até as correntes de ar me chagam a paciência com murmúrios condoídos. As palavras fazem eco na minha cabeça, essa ainda intacta. Vá-se lá saber porquê, ninguém se importa com os hemisférios da Maria, separados à machadada.

 

S. White

despesadiaria às 09:10
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Segunda-feira, 9 de Junho de 2014

 

(conto às prestações)

 

4.

 

«Meu Deus, que conversa a dele!... Só de pensar que um dia te disse que ainda haverias de casar com esse jovem…»

«Mãe, por favor… Ele deve estar a… Oh, vamos mudar de assunto.»

«Sofia, eu não te digo isto mais nenhuma vez: estás proibida, ouviste bem, proibida de sair sozinha com ele. Muito menos de noite…»

«Está bem, mãe, está bem. A partir de hoje, quando sair com o Pedro aviso com antecedência e escrevo-te uma carta com todos os pormenores de forma a poderes fiscalizar cada detalhe do que nós vamos…»

«Brinca, menina, brinca com coisas sérias. Ninguém sabe o que pode acontecer se tu o apanhas num dia mau e ele vê uma oportunidade para…»

«Mãe, por favor, poupa-me! Ele não é nenhum desequilibrado nem fugiu ontem de um manicómio. A morte da avó e ter tido de acompanhá-la durante meses ao tratamentos, isso atormentou-o, sim… Mas daí a ser considerado uma ameaça vai um longo…»

«Para onde terá ele ido, a esta hora?»

«Quem? O Pedro? Para casa, acho eu...»

«A pé?! Com este tempo?!»

«Ai mãe, pára com isso. Deixa-o. Vou já para a sala. Estás a ficar insuportável!»

 

Lá fora a cidade sucumbia ao cerco do Inverno. A luz dos candeeiros dissolvia-se, coada pela bruma, em sujas e flutuantes manchas de cor. Os poucos cafés abertos encontravam-se vazios. A solidão na rua era total.

No topo de um prédio de oito andares, um homem de idade, macilento, procurava consertar a antena parabólica. Fugia do tédio e da angústia que se instala quando nada acontece. Como o vento amainara, escolheu uma posição junto à borda, a que lhe dava mais jeito para executar o trabalho que tinha ido ali fazer. De repente, uma saraivada de gaivotas esvoaçou e foi pousar na sacada mais próxima do velho. Este manteve-se indiferente, inclinou-se para o estojo das chaves de fendas e escolheu a que tinha a ponta adequada ao parafuso que lhe faltava apertar. As gaivotas levantaram voo novamente e rodearam o homem. Parecia que acompanhavam o seu trabalho, expectantes, como se o estivessem a inspeccionar. Quando o terminou, o velho arrumou tudo numa caixa de ferramentas e voltou ao interior do edifício, no seu passo arrastado mas tranquilo.

Ao chegar a casa, Pedro presenciou até ao fim esta cena com alguma ansiedade. Depois entrou no prédio e ultrapassou com um salto os três degraus que separam o hall de entrada da porta do elevador. Saiu no quinto andar e entrou no número três.

Pela escuridão do corredor deduziu que ninguém estava em casa. Dirigiu-se para a sala, atirou a mochila contra o sofá e sentou-se na cadeira giratória, de frente para a mesa congestionada de livros e onde o computador permanecia desligado. Atirou uns livros para o chão, afastou o computador e pendurou as pernas na mesa, à cowboy. Sacou da carteira que trazia no bolso interior do kispo e retirou de lá um charro, insuficientemente amarfanhado para não ser consumido. Acendeu-o, deu uma longa passa e pensou em como tinha sido tão estranho e íntimo e embaraçoso partilhar o que sentia. Depois, consultou o telemóvel e viu que tinha uma mensagem. Não respondeu.

 

(Fim.)
(O título do conto é Muito em breve.)

pmramires

despesadiaria às 14:15
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Domingo, 8 de Junho de 2014

 

o cérebro a secar

na usura do bronze

ainda que regado de cerveja

e sumo de cona.

o verão em suma

uma serpente a caminhar

pela  areia com as mãos nos bolsos

perlustrando as núbeis moças

fingindo ler os annales

tácito

 

[]

despesadiaria às 11:11
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Sábado, 7 de Junho de 2014

 

A estrada de Ercolano dá voltas ao flanco do monte. Para se ir à pata até o vilarejo, é preciso que o dia esteja seco como um figo pelo lado de fora. Hoje não (como tudo é simples!). Na rua somos envolvidos por um cobertor molhado. O nevoeiro é uma espécie de geleia a flutuar. Uma gosma à milésima potência! Melhor voltarmos à taberna onde a especialidade é o pastel de peido e o whiskey de milho. Antes vou ali ao canto. Desço a berguilha. O mijo espuma na lama. Agito tanto o caralho que parece dez ao invés de um. Deixo para trás meia dúzia de barracões e edifícios tronchos. É preciso beber todos os dias para tirar o empeno. Nos degraus, à porta da bodega, um puto arrebatado por um livro em frangalhos. Os olhos embranquiçados como os de um peixe cego. Encolheu-se tanto quanto pôde contra a madeira lascada da porta para me dar caminho. Lá para dentro o cheiro de mofo está acavalado a um coeficiente adicional de fritura. O dono do armazém, como um professor atrás da mesa, emboscado, a olhar para os alunos à sua frente sem saber o que dizer. Pendurados na parede, os atributos de seu passatempo favorito, galhadas de alces, cabeças de zebras, corujas. Num desarranjo mais ou menos plausível. Ao lado da porta, uma pata oca de elefante (para os guarda-chuvas, ele explica). Imagino a morte da bicharada. Uma morte caracoleante, enfeitada como uma puta, fantástica, absurda e rápida. À direita, um velho com um pequeno rádio a expelir uma vibração submusical. Metia os dedos no nariz, três ao mesmo tempo, totalmente absorto, a deixar esfriar o bife sobre a tábua da mesa. O contentamento perpétuo é a mesma coisa que um boi. Aos poucos, enquanto se anda, pode-se sentir a água subir dos frisos do soalho. Em caixotes colocados no peitoril das janelas, o capim cresce duro como barba. Sou mais ou menos incomodado pela persistente mistura de dialetos que se ouve no barraco. O cavaquear de vozes é um passar por cima contestado pelo passar por cima mais distante em sentido contrário. Sento junto ao balcão. Ali ao lado, de olheiras pisadas pelo cansaço, um gajo a passar o dedo pela tampa do relógio. Apanha nos ponteiros uma gota com o dedo, uma lágrima cujo teor em sal é de certeza muito forte. Talvez a contar um a um os minutos que o separam da reforma. A disfarçar um choro sísmico, expressão de mau actor. Uma gaja alta, borralheira, enfarpelada numa farda de sopeira, põe à minha frente um copo de cerveja. No baque deitou quase toda a espuma na cova do cinzeiro. Não importa. Toda a gente sabe que é a má vontade que nos pastoreia. E no fundo é muito pouco o que um gajo tem de pessoal. Ninguém se distingue tanto da má vontade de que se nutre. Só resta dizê-lo e, se não o sentimos, senti-lo. O gajo do tamborete ao lado bate-me no ombro. Interrompi o que estava a fingir que fazia para olhá-lo fixamente. É um gajo grande, verdade. Mas duas vezes mais mal-alimentado que eu. Quer vender-me o relógio. Tira-o do pulso. Mostra. Eu estalava a língua, fazia ô, ô, assim como se ele fosse um cavalo que eu tentasse frear. Ele volta à carga. Oferece agora um baralho lolicon, cheio de crianças nuas. É a minha vez de rir. Pelo menos ele não doura a pílula. Insiste. Não adianta. Sou um cientista, vejo as coisas objectivamente. Não caio nessas esparrelas em modo propaganda. Sopro o que restou da espuma. Lá fora a chuva começou. O mundo é uma ruína enorme, cheia de ecos. Horrorosa de se olhar e de se ouvir.

 

Peor

despesadiaria às 12:59
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Sexta-feira, 6 de Junho de 2014


Procura o maço de tabaco. Apalpa o blusão. É uma ordem. Apalpa. Isso. Mais abaixo. Retira-o do bolso, abre-o e serve-te de um. Depressa. Não tenho o dia todo. O isqueiro está sempre no bolso das calças, no direito, envolvido com a pene de 64 Gb. Engana-te e tira primeiro a pene. Muito bem. Guarda a pene e tira o isqueiro. Não, tira o isqueiro. O isqueiro, caramba, não é assim tão parecido com a pene. Estava difícil. Vá, acende o cigarro. Dá uma passa para além da primeira e caminha até ao carro. Põe-te à frente do carro. Perfeito. Afasta só um bocadinho mais as pernas, como se te fizesses ao plano americano para o domínio do mundo. Olha para o chaço com desalento. Desalento, desalento. Desalento não é estar com gases. Desalento, desencanto, a consciência de que há ideias melhores. Leva a mão direita à cab... Deixa a chuva, é só água. Concentra-te no desalento, no dia que já percebeste que vais ter. Só uma contração dos maxilares, um esgar, um sopro. Depressa. Eu também tenho a minha vida. Depois fazes o que quiseres, secas-te. Deixa estar a chuva. Fica aí fora e desola-te. Fica. Fica. Oito e vinte e três ou quatro. Amanhã experimentamos mais uma vez. Ou depois, se estiver de chuva. Eles dão outra vez chuva para amanhã de manhã.



E.

despesadiaria às 00:11
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Quinta-feira, 5 de Junho de 2014

 

colado na porta de saída do bar, um pequeno aviso, recentemente impresso a times new roman (tamanho 20, bold), proibia os clientes de saírem com toda e qualquer espécie de vasilhame de vidro na sua posse. o azeite - que é dado a anexins lírico-romântico-anacrónicos - leu a mónita em silêncio, decifrando a custo e a cuspo os redondos vocábulos que, distorcidos, iam viajando através do ar carregado de fumo até junto da sua cabeça toldada por meia garrafa de talisker 10 anos. uma expressão de espanto e desamor tomou o lugar do que era, até então, apenas mais um rosto de cliente habitual ao balcão. e juro que, se puséssemos a mão em concha, atrás do ouvido, lhe escutaríamos o ganido:

 

- então e agora, sr jaime? como é que vou levar o meu coração para casa?

 

azeite

despesadiaria às 09:12
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Quarta-feira, 4 de Junho de 2014

 

Stalker

 

1995, Maio, Coimbra
Primeiro concerto em Portugal. Umas horas depois o Artista está num quiosque de cerveja, e o Jovem, do outro lado do balcão acena-lhe discretamente com a cabeça. Ganda som, man, ter-lhe-ia dito em inglês, não fosse a distância e o barulho. O Artista acenou do seu lado com um brinde discreto no ar, satisfeito consigo, com o Jovem, com a banda, com o resultado espectacular do primeiro disco.

1997, Abril, Aula Magna

Segundo concerto em Portugal, já superstars, sala cheia, público dedicado. O Artista recebe do promotor a informação de que é impossível voltar uma quinta vez ao palco. Ok, responde, vamos para o Captain Kirk!, grita para a população. O Artista conhece o Captain Kirk no Bairro Alto? O Jovem atravessa a cidade, corre para a Rua da Barroca (do Diário de Notícias?) e ouve pela primeira vez o que sempre acreditou ser uma piada de uma canção: só para clientes habituais.

1998, Junho, Passeio Marítimo de Algés

A banda do Artista regressa, como já fazia a cada seis meses. Desta vez, também o Jovem tem um concerto, num palco secundário lá para a meia-noite, do outro lado do recinto. Junto às grades do palco grande, o baterista do Jovem chega à fala com o Artista e convida-o para assistir ao concerto no palco pequeno. Artista acede. Durante o concerto, o guitarrista bulha ferozmente com o técnico de som, como sempre fazem os guitarristas (sobe mais a guitarra!), só que, desta vez, com os punhos. Até aí havia, como habitualmente, mais gente no palco do que na audiência (tivessem ouvido Beatles mais cedo e teriam mais respeito pela forma canção, mas àquele tempo não tinham nenhum). No fim, sobrava apenas no "público" um adolescente, concentradíssimo, quase entusiasmado. Quando teve oportunidade perguntou se alguém podia sair e emprestar-lhe a guitarra. Depois de devidamente mandado à merda, o Jovem e os amigos sairam também. Do Artista, ninguém se lembrou.

2003, Julho, Tavira

O Artista agora faz filmes e a estreia em Portugal da primeira longa-metragem é em Tavira, com presença do realizador. O já não tão Jovem está de férias, não tem planos e vai de carro até lá. À entrada do tabuleiro da ponte 25 de ABril, duas raparigas seguram um cartaz que diz Algarve. Nem abranda, mas, até Setúbal, pensa em realidades paralelas, na sua falta de sentido de oportunidade, e total ausência de killer instinct. Já instalado no Hotel, dirige-se para o recinto de projecção demasiado cedo e senta-se ao balcão do bar. Não há barman, mas ao seu lado está sentado o Artista. O já não tão Jovem, convicto que a sua timidez é coisa de outros tempos, ensaia mentalmente o que dizer e pensa essencialmente agradecer por tudo. Se foi músico a ele o deveu. Mas não soube como fazê-lo, e algum tempo depois, o Artista levanta-se e diz as únicas palavras entre ambos: see you, man.

2014, Fevereiro, Alcântara

O Homem, ex-Jovem, ex-não-tão-Jovem, sai do autocarro na paragem de sua casa e vê, na esplanada do seu café, a sorrir para o tablet que tinha nos joelhos, o Artista. Na rua, no café, no Calvário, o Artista. Há anos que não sabe se o Artista ainda o é, ou o que está a fazer, e no entanto, ei-lo. Sozinho, com bom aspecto, a beber uma imperial, com sacos da FNAC na cadeira ao lado. Agora já não é a timidez mas o desconforto de lhe descrever tudo isto que impede o Homem de lhe falar. Não há forma de o dizer no bom sentido, o tempo passou, o timing também e não quer que a recordação da primeira vez que se falassem fosse a dos olhos nervosos do Artista à procura de uma arma debaixo do casaco do maluco que tem à frente.

 

Gouveia

despesadiaria às 14:09
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Terça-feira, 3 de Junho de 2014

 

conto interrompido

 

quase não o reconheceu: barba sem abrigo, calças rasgadas, ombros envegonhados, nuca em vírgula e olhos no chão. a fraca figura de adolescente shoegazer num homem daquela idade causava-lhe um desconforto quase insuportável. tão quase que não lhe falou. faltou-lhe a coragem, ganhou-lhe a vergonha. lembra-se bem daquela cara mas caberá à memória inventar-lhe um nome. era amigo dos pais, figura assídua nos serões lá em casa nos anos oitenta. lembra-se que ficava com a irmã mais velha: os dois deitados no sofá, a fingir que dormiam. ouviam em falso segredo as conversas dos adultos que bebiam e jogavam às cartas até de manhã. falavam de política, de livros, de trabalho e de outras coisas que não entendiam. qual é o trunfo? os miúdos a fingir que dormiam, os adultos a fingir que se importavam. o trunfo é copas.

 

[continua, como a vida.]

 

um tal de joão gaspar

despesadiaria às 07:00
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Segunda-feira, 2 de Junho de 2014

 

Os nomes dos personagens desta história foram mudados para preservar a identidade dos mesmos.

 

A Catarina é uma mulher prática. Um dia contou-me que perdera a virgindade para uma escova de dentes. Foi assim, entre duas passas de cigarro, que mostrou a mão que lhe vence a vida. Disse-o em resposta à terceira tipa que compunha a mesa, a que falava sobre os seus orgasmos com despudor, mas sem a eloquência para lhes fazer justiça. Ficava ali, a mexer o café com a colher até à náusea, repetia como era bom o sexo, quiçá a tentar convencer-se a si mesma da opinião que a fazia mais mulher. Já a Catarina, essa fizera questão de se foder a si própria com o cabo de uma escova de dentes porque se a sua primeira vez prometia sangue e dor, então preferia ser ela a desflorar-se, agachada no chão frio da casa-de-banho. Explicou isto na displicência de um encolher de ombros e eu não pude evitar perguntar-lhe se sabia que uma pila não era igual ao plástico colorido de uma escova de dentes. Ela riu-se e acendeu outro cigarro.

A história de amor entre uma rapariga e a sua escova de dentes de dureza média reduz-se a um caso de uma noite, algures na busca do controlo sobre si mesma. A Catarina não deixa que ninguém a conduza, mesmo que não saiba para onde deve ir. Lembro o dia em que nos encontrámos nas escadas de cimento que davam para o pavilhão gimnodesportivo da nossa escola secundária. Em vez de um produto de higiene oral feito dildo improvisado, a Catarina empunhava um teste de gravidez com duas riscas cor-de-rosa. Não quis que eu fosse com ela ao hospital ou que lhe segurasse no cabelo enquanto vomitava os efeitos secundários dos medicamentos que lá lhe deram. Pariu sozinha um feto desmembrado que ainda hoje recorda, mas fê-lo com a mesma resolução que a levara a espetar o cabo de uma escova de dentes dentro de si mesma. Uma pila pode ser o que tu quiseres, respondeu-me.

Após o desmanche, partilhámos a cama algumas vezes. Eu adormecia-a com promessas e festas no cabelo, depois de ouvir histórias sobre a mãe que estava no manicómio e o pai que estava longe. Impressionou-me sempre o relato metódico e objetivo destes e de outros episódios, como se a Catarina emprestasse a sua realidade a outra pessoa. Nas madrugadas em que o efeito do Inderal tardava, ficávamos aninhadas uma na outra. Ela falava, eu ouvia aquilo que soava a uma reportagem sobre um estranho cuja vida é uma pedrinha solta no chão, pontapeada ao acaso. Mas se eu sofria com os choques da pedra, perdendo um pouco de mim em cada lasca que se soltava na erosão brusca, ela respirava fundo e brincava com os meus caracóis.

A Catarina consegue amestrar a sua existência porque a tem cheia: essa é a única prenda que a vida lhe deu, o prémio de consolação pelos dias de inocência que lhe tirou. A dádiva passa-lhe despercebida e eu já perdi a conta aos cafés que paguei para a tentar explicar. Qualquer coisa é melhor que o vazio, Catarina. O vazio é a suma confusão, a amálgama desordenada de partículas e anti-partículas que se juntam no nada para formar coisa nenhuma, sem equação que descreva o que está a acontecer ou preveja alguma hipótese. As aulas de física nuclear ensinaram-me isto, viver ensinou-me o resto. No vazio, o tumulto é tal que a alma é assoberbada. A anedonia vai-se aproximando devagarinho, os seus passos a ressoarem no corredor, e este eco da desesperança faz vibrar todas as unidades fundamentais do ser numa dor tão estranha quanto intensa. Tento explicar à Catarina que existo como a concha vazia que a preia-mar abandona na areia. Sou a matéria, sou a anti-matéria, e não sei o que sou. Para mim, uma pila não chega a ser sequer uma pila, quanto mais uma escova de dentes.

 

S. White

despesadiaria às 08:24
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Domingo, 1 de Junho de 2014

 

(conto às prestações)

3. 

 

 A Srª Isabel olhou Sofia com desconfiança.

«Como não é nada disso? Não me vais dizer que…»

«Sabes, lembro-me que o papá uma vez comprou um livro do mesmo autor, mas disse-me que eu só podia lê-lo daí a uns an…»

«O teu pai é um irresponsável, Sofia. Sempre foi. Tu sabes. Não passa de um adolescente. Talvez ainda seja mais perturbado do que esse rap…»

«Mãe, estava apenas a tentar dizer que o mais provável é o livro não ter nada a ver com a conv…»

«O teu pai, claro… De algum modo, tinha de estar relacionado com isto...»

«Mãe, por favor.» Sofia levantou-se, abriu o frigorífico, fechou-o, olhou em volta, abriu e fechou duas ou três portas do armário embutido, e permaneceu, hesitante, no meio da cozinha. «Por acaso não há nenhum refrigerante por aí escondido?»

«Menina, podes voltar a sentar-te, descansada. Tudo o que temos está na mesa. Deixei de comprar essas porcarias cá para casa.»

«Ah! É verdade, ainda não te contei por quem passei hoje. Tenta adivinhar...»

«Eu sei lá! O que eu quero é que tu me expliques as razões que levam o teu amiguinho a dizer que vamos…»

«A Sara! Mal me cumprimentou, depois destes anos todos… Parecia até incomodada por me encontrar... Tinha companhia, se calhar foi por isso. Agora usa um daqueles óculos de massa em voga. Ridícula... Aposto que nem têm graduação. Ela nunca viu mal!...»

«Sofia, deixa a rapariga em paz. Há anos que não falas com ela…»

«Oh, cala-te, mãe. Eu sei muito bem no que ela se tornou desde que…»

«Será que me podes voltar a falar desse rapaz?! Já não basta andares por aí de noite, sabe Deus por onde e a fazer o quê, ainda o tens de fazer com um jovem cheio de flutuações de humor e… Sofia, come devagar!»

«Mãe, tu não percebeste absolutamente nad…»

«Da última vez chegaste a casa a dizer que de certeza que ele era bipolar, lembro-me perfeitamente... E agora, a primeira coisa que me dizes é que ele anunciou que vamos todos morrer, muito em breve... Não penso que haja muita coisa par…»

«Talvez se me deixares explicar…»

«O quê que há para explicar?! Esse rapaz está doente. É só isso. E pode ser perigoso andares por aí com ele a…»

«Mãe, ele não disse nada que tu já não soubesses!... O tempo passa muito rapidamente, logo a vida também. Para já, é tudo o consegui dizer...»

«Ah! Agora vais tentar convencer-me que essa é a grande novidade que ele nos deu, que um dia vamos todos morrer…»

«Eu não disse que era uma novidade. E, se queres saber, a forma como o dizes é precisamente o problema. Ou parte dele.»

«O que queres dizer com isso?»

«Talvez me tenha escapado alguma coisa, mas ele começou por dizer que, num primeiro momento, não compreendia, e, num segundo momento, lhe repugnava, a forma cobarde ou meramente idiota como as pessoas vivem a morte.» Sofia parecia recapitular, como se Pedro lhe tivesse dado uma aula e ela mesma ainda não tivesse assimilado bem a matéria. «Por um lado», continuou, «as pessoas sabem que um dia, como disseste, todos vamos morrer, e então usam esse belo saber para porem a morte completamente de lado. Esta atitude era, para ele, estúpida e totalmente incompreensível, até que um dia descobriu que estas pessoas sabem, mas não sentem, que vamos morrer.» Aqui Sofia fitou por momentos o relógio, absorta. Depois acrescentou: «Como uma criança de dez anos o sabe, no fundo.»  

A Srª Isabel parara de comer e mantinha-se quieta e em silêncio, aparentemente incrédula com toda aquela conversa.

«Por outro lado, temos as pessoas que verdadeiramente sentem que, muito em breve, tudo acabará. Não são muitas, segundo ele. Estas pessoas sentem que não apenas elas, como os seus pais e filhos e netos e bisnetos, a sua casa, a sua cidade, tudo o que, mesmo que remotamente, lhes diga alguma coisa, tudo isso muito em breve irá desaparecer e ser esquecido.» Sofia titubeou novamente, como se começasse ela mesma a sentir. «O problema dele com estas pessoas, se compreendi bem, é que não há praticamente uma única delas que saiba ou tenha sabido viver esse sentimento de uma forma honesta, com franqueza e seriedade. Acabam sempre, mais cedo ou mais tarde, de uma maneira ou de outra, por corrompê-lo, e isso repugna-lhe. A maioria, disse-me ele, procura abrigo numa Igreja ao acaso, na qual profundamente não acredita. Outros engendram filosofias redentoras e, com tempo, fundariam a sua própria Igreja. E por fim», terminou quase sem fôlego, «há os que se dedicam à arte parecendo acreditar que através da sua obra serão lembrados, quando tudo, mas tudo, desaparecerá e será esquecido.»

«Meu Deus, que conversa a dele!... Só de pensar que um dia te disse que ainda haverias de casar com esse jovem…»

 

(continua)

 

pmramires

despesadiaria às 16:51
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