"Instruções-exemplos sobre a forma de sentir medo" (olá J.C.)
Numa noite quente de Verão está sozinho em casa, de janelas abertas e persianas corridas. Todos os aparelhos com algum tipo de motor param de funcionar ao mesmo tempo. A ventoinha eléctrica, o frígorífico, a refrigeração do portátil (mas não o portátil), a máquina de lavar. Em simultâneo uma massa de som de movimento que perde velocidade. Até que pára totalmente. As lâmpadas no tecto continuam ligadas, o televisor ainda transmite. Mas no ecrã, jogadores e árbitros não correm, técnicos e público não gritam. Olham para a câmara - para si - parados, em silêncio.
Na sala de cinema, sem tirar os olhos do filme, dá a mão à sua esposa que entrelaça os dedos nos seus da forma especial a que se habituaram durante mais de vinte anos, mas sente a mão dela coberta de pelos, compridos, densos, por cima, no pulso, em todos os dedos.
Depois de um fim-de-semana a enviar sms aos pais, namorado, advogada, chefe e a, pelo menos, três amigos (sempre sem resposta), um dos colegas do trabalho confessa ter trocado todos os nomes dos contactos do seu telefone uns com os outros na sexta-feira anterior.
De manhã, na pastelaria, percebe que o café está salgado, não doce. Nada de anormal aparenta o pacote de açúcar rasgado no pires. Quando olha para o empregado este acena negativamente, preocupado e sôfrego.
Na repartição de finanças, o jovem funcionário despede-se de si tratando-o por Xuguinho como sempre fazia a sua avó, e beliscando-lhe as costas da mão, um dos vários hábitos irritantes da velhota de que inevitavelmente sentiu saudades mais tarde.
Gouveia
manual de iniciação ao tédio
nunca sei o que escrever. acontece-me amiúde ultimamente. deve ser da idade. chego aqui cheio de ideias, que a idiotaria não passa com a idade. mas depois abro isto e nunca sei o que escrever. como quando abrimos o frigorífico e ficamos especados a olhar sem saber o que íamos buscar (o george carlin fala sobre isso). acabo por apanhar sempre a garrafa de água, para não fazer figura de parvo perante o homem invisível (o george carlin também fala sobre isso). acontece-me o mesmo com estes textículos. eu tenho a certeza que vinha aqui, passada firme, para apanhar uma cerveja fresquinha (ou seria chocolate?). mas acabo a escrever o equivalente literário à água que se bebe sem sede.
um tal de joão gaspar
V
- Eu gostei muito, mas não respondeste à pergunta. Onde queres chegar com isto?
No espaço familiar atrás da praça de touros do Campo Pequeno - outra vez, como numa segunda-feira qualquer; as semanas sucedem-se no enjoo melódico da caixa de música, a repetir os mesmos tons ad nauseam. A janela aberta deixa escapar um raio de luz nua, estrada cósmica de pequenos corpúsculos, cadáveres, restos de almas. Estou sentada numa das cadeiras azuis, a que chia mais. Dou graças aos pregos desconchavados. Disfarçam o ranger dos meus dentes e o barulho metálico das pulseiras que tapam os rastos brancos dos meus pulsos. Roçam umas nas outras ao sabor dos nervos, ecos da culpa eterna e do medo. Estas tardes são as novas madrugadas, esburacadas por novas agulhas brilhantes. Não sei se sou uma almofada de alfinetes, ou uma esponja, ou um balão cheio de hélio e desejo de escapar rumo às gradações azuladas do infinito.
- O que é que aconteceu à Michele?
Fito a ganga escura que me cobre as pernas. Num piscar de olhos, mergulho no sulco escuro que as separa, uma fossa estreita rumo ao centro da minha Terra.
A mente navega até ao laboratório de anatomia; tal é a nitidez do cenário transmutado que a recordação se confunde com uma experiência extracorpórea. Sento-me numa cadeira de madeira, a terceira da primeira fila de mesas da sala. Tenho um monte de folhas à minha frente e, em cima delas, uma moela de plástico em forma de jota: um estômago cor-de-rosa desmontado. Passo as mãos pelas pregas no interior da barriga do jota. Imitam a textura enrugada dos dedos esquecidos na água, mas são mais rijas. A professora encosta-se ao quadro branco, riscado com o desenho das regiões topográficas do abdómen. Oferece o olhar sobranceiro aos seus alunos, entretidos a explorar os diferentes órgãos do tubo digestivo, e pontualmente partilha os seus ensinamentos.
O peguitoneu é a maiog e mais complexa membgana segosa do cogpo. A forma como a professora engasga os erres é hilariante. Convém aos alunos a abstração do pogmenog. Uns têm mais sucesso que outros; eu concentro-me nos apontamentos, tomo nota desta e de outras informações, com os erres no devido lugar. Na pressa de registar cada sílaba, a grafite rasga a folha sem preceito. A peritonite é a infeção do peritoneu. Das minhas mãos solta-se a caligrafia descuidada, os emes são linhas distraídas, os ós e os ás não se fecham. Paro para sublinhar a frase - arte é descodificá-la mais tarde.
No fundo da sala, alguém pergunta quais são os sintomas de uma peritonite, como se estivéssemos na antecâmara da clínica e as causas nos importassem realmente. Não vamos ser médicos. Questões desta índole servem para matar o tempo, ou ouvir mais um pouco da dicção hilária da mulher. Ainda assim, preparo o calo do dedo médio para uma nova carga de palavras.
Rigidez abdominal e febre, escrevo. Tende a ocorrer após uma intervenção cirúrgica, acrescento, e logo deixo a lapiseira escorregar pelos dedos suados e tremidos.
Numa tontura ácida, sinto o coração perder-se nos pulmões hirtos, onde o ar se esconde, assustado. As ondas suaves da memória rebentam em murmúrios nas margens da consciência. A moela esquecida à minha frente começa a expandir-se partindo do seu tamanho de punho fechado. Estica-se na horizontal e depois cresce em altura; muda de forma envolta numa neblina mística, como as do folclore celta. Num piscar de olhos, vejo a pequena Michele sentada à chinês na minha mesa.
Veste o pijama demasiado curto que lhe conheci, os seus tornozelos batem nas argolas do dossier verde. Sorri, o mesmo sorriso traquina que me saudou na noite em que nos vimos pela primeira vez. As pequenas mãozinhas agarram o lado direito do ventre e delas vai escorrendo um líquido vermelho. Não é sangue, é uma tinta lacada, um verniz rubro que escorre dos seus dedinhos inocentes para as minhas folhas, e daí para a mesa, para as minhas pernas, para o chão. E à medida que a poça de líquido cresce aos meus pés, a Michele vai-se desvanecendo no rasto espectral de uma história cujo final só agora, mais de dez anos depois, se desenha.
- A Michele morreu.
Os olhos da senhora doutora, hoje enfeitados com sombra verde, perfeitamente esfumada, saltam debaixo da franja de palha. Sabe que me perfumo de morte, todos os dias, antes de sair de casa, e o odor acre, uma podridão ténue e facilmente disfarçável - usando as pulseira barulhentas, por exemplo - mas que se mistura nas minhas moléculas odoríferas; os homens não sentem, os animais fogem de mim na rua.
- Os pontos devem ter rebentado.
Fito a parede à minha esquerda, murada rugosa, nua. Nela projeto um quadro de entranhas inflamadas, uma imagem grotesca. Chega a culpa, em novas vagas ardentes, a tão familiar culpa: deixei-me ficar deitada, petrificada pela ameaça de viver - e no fim, acabei por viver mesmo, protegida na natureza amedrontada e passiva.
- É isso que dói?
Também, também. ■
S. White
Bom dia, Vietname
A dada altura, durante um dos primeiros verões da minha adolescência, descobri que sentia um grande prazer em passear completamente sozinho e em observar atentamente a fauna na e da vizinhança. Era assim que me sentia, um explorador em terreno hostil, mesmo sem ter - admito-o, grande consciência das implicações do desempenho desse furtivo papel. O meu plano era testado e provado, simples e sempre o mesmo. Escondia-me nalgum sítio improvável, tentando fundir-me imóvel com o cenário e então ficava à espera de algo. Procurava de tudo mas sobretudo comportamentos, digamos assim, que não estivessem ainda registados na minha lista merntal de comportamentos. Uma vez detectado o “culpado”, chegava a passar horas escondido a observá-lo e a tentar compreender o porquê. Á noite escrevia e descrevia.
Certo dia, perto já do final das férias quando a minha pele escurecida facilitava a camuflagem na sombra, dei por mim deitado debaixo de uns arbustos mesmo em frente da paragem do 905, junto à passadeira que ligava o meu lado da rua ao bairro dos ciganos. Era um dos meus sítios preferidos, um dos primeiros que experimentei e me despertou o interesse para a “espionagem”, como então lhe chamava. Mas na verdade, não o visitava desde esse mesmo início, porque o considerava um tanto ou quanto perigoso. Os ciganos não iam gostar, pressupunha eu, de pessoas escondidas a observá-los. Mesmo que estas fossem crianças, coisa que eu, obviamente, já não era, nem queria ser.
Por isso, desta vez tinha tentado colocar-me um pouco de esguelha para o bairro, mais virado para a passadeira, a minha vista atravessando a paragem de autocarro. Ela era sempre um dos principais pontos de interesse e focos de não conformidades comportamentais, mas nesse dia a minha atenção foi momentaneamente desviada para a passadeira por uma cigana de formas opulentas que saía de casa apressada para fazer uma última compra no café deste lado da rua. Quase no exacto momento em que os seus seios e ancas entraram baloiçando no meu campo de visão, um pássaro preto desceu sobre a passadeira aproveitando a breve interrupção no trânsito. Era um pássaro pequeno, creio que um melro ou assim, mas como percebo tanto de pássaros agora como nessa altura, não posso garantir, nem interessa. Nesse sentido era, aliás, um pássaro perfeitamente vulgar, o que não era nada vulgar era o que ele estava a fazer.
Mal os longos e ondulantes cabelos da cigana deixaram a passadeira, o fluxo de carros resumiu o seu nervoso trajecto de fim de tarde. A esta hora a maioria das pessoas tenta apressadamente regressar a casa, fugir da loucura que lhes é imposta pelo mundo para a loucura que entendem porque lhes vem de dentro de casa. Seja como for, algo estava estranhamente diferente neste quadro todos os dias repintado: o raio do pássaro continuava na passadeira. Desviava-se, saltitando de um lado para o outro e evitando os carros que passavam, ora no sentido do shopping ora no sentido da escola. Sem nunca abrir as asas ou sair da passadeira, aguentou lá uns bons 5 minutos, e só levantou voo quando a mim me pareceu que a morte dele era certa, entalado entre o 905 e um camião de transporte de mercearias que acelerava sonoro desde a curva, avisando amigavelmente para que ninguém se atrevesse a atravessar agora.
Pela primeira vez, fui pra casa completamente hipnotizado e, tirando as rodas, nada me distinguia daqueles carros que regressavam também, a uma casa que não sabiam se era a deles, em piloto automático e com a mente vazia de tanto em que pensar.
No dia seguinte, voltei. Estava mais calmo e precisava de garantir que o que se tinha passado ontem tinha sido um sonho, e apenas isso. Mas passados poucos minutos de ter chegado e me ter posicionado, desta vez mesmo em frente da passadeira - que se danem os ciganos, o pássaro preto voltou a descer sobre ela, aproveitando desta vez a alegria de duas crianças que a atravessavam com uma bola nas mãos. A cena repetiu-se. E desta vez, o pássaro não só desafiava a morte como parecia ter uma leveza e uma graciosidade nos movimentos que me poderiam perfeitamente levar a descrever o que fazia como uma dança. Mas não o fiz, na altura não o fiz. Já tinha passado há muito a fase em que me era plausível os animais falarem e a escola já me tinha ensinado que um pássaro não podia ter, e por isso não tinha, uma consciência mais do que instintiva daquilo que fazia. Sempre tinha sido bom aluno e esta era a primeira vez que sentia que isso podia ser uma desvantagem.
A procura de explicação para este pássaro tornou-se assim numa obsessão.
Mal acordava, mal me vestia e mal comia, imediatamente me encaminhava para um dos esconderijos próximos da passadeira, e por lá ficava, o dia todo se preciso fosse, à espera do pássaro negro que dançava com a morte. E ele vinha. E ele dançava. E eu acabava a voltar pra casa ao final do dia, ainda mais confuso e perplexo do que quando tinha saído de manhã.
Na décima vez, mas também pode ter sido na vigésima porque a surrealidade destes acontecimentos dificultava a matemática dos dias, percebi e apercebi-me finalmente da razão para o estranho comportamento deste estranho pássaro.
Dessa vez, tinha decidido esconder-me num local diferente, e escolhi a montra do talho. O lado de dentro, claro está. De lá, podia observar toda a estrada, a paragem, a passadeira, o bairro dos ciganos, e até as árvores que dele irrompiam, oculto pelo reflexo da realidade no vidro da montra.
Após algum tempo de espera, maior do que habitualmente, os meus olhos treinados aperceberam-se de um movimento descendente fulminante, iniciado nas árvores e terminado na varanda do primeiro andar do Bloco C. Era ele.
Mas não descia, nem dançava. Ficou ali especado a olhar. A olhar de um lado para o outro, esperava. Tal como eu, parecia procurar algo. Foi então que percebi que me procurava a mim! Todo este tempo, todos este dias que passei a observar o pássaro para o compreender, ele estava a observar-me a mim. Compreendia-o agora.
A crueza da surpresa foi suficiente para me fazer soltar um pequeno guincho, a desculpa que o dono do talho estava à procura para me pôr de lá pra fora. Quando entrei ainda pensou que fosse comprar alguma coisa, mas entretanto já se tinha apercebido que eu não era um desses, ainda .
Apartir desse dia, fui substituindo a escrita que me ocupava as noites quentes pela masturbação, com a facilidade e a destreza de quem faz ambas com a mão direita.
O pássaro? Esse morreu.
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(Juvenilia)
Nobre Valentia
A serenidade da nobre valentia
Vemo-la no São Jorge de Donatello.
Jovem esbelto, distinto olhar de sonhador
De integridade imune à aleivosia
Apto à batalha com graça e sem temor.
Com os olhos nessa estátua em São Jorge medito
Ele faz parte da insigne estirpe que reivindico
A dos que erigem seus princípios e afirmam: − Não abdico!
Os que resistem à sensatez de cartomante
(Sempre envolvida em roupagem especiosa de ouropel, brilhante!)
E cultivam um generoso desprezo pela coragem curiosa
Dos que enviam os filhos para a guerra
E sofrem em casa de ansiedade nervosa.
De novo vindico a rectidão fragosa
Para a qual nem a pobreza nem a morte
Representam signos da sua sorte!
A pobreza, não me é aborrecida:
Tempo, tenho, para tocar a lira;
E a morte não é tão aterradora
Quanto uma vida aduladora
Que nos sugere a vil trapaça da acção
Sem o sanguíneo prazer da convicção.
Ó meu povo de eleição
Reaprende, com São Jorge,
A dizer não, não quero não!
pmramires
Quando terminei o nono ano, os meus pais mandaram-me estudar para a cidade de V., que dista da aldeia de N. cerca de 15 quilómetros. Durante os três anos em que frequentei o liceu apanhava todos os dias o comboio no apeadeiro da aldeia, demorando a viagem até à cidade nunca menos de 20 minutos (por vezes até mais de meia hora, dependendo das várias vicissitudes que afectavam diariamente a velha linha do Minho). Os comboios, esses, não passavam de velhas carruagens, compradas em segunda ou terceira mão à Itália ou à Alemanha (e hoje em dia a circular num qualquer país da América Latina), rebocadas pelas locomotivas cor-de-laranja a diesel da CP. Além do estrondo que faziam ao iniciar a marcha, lembro-me bem dos avisos “ATENÇÃO ÀS CATENÁRIAS – PERIGO DE MORTE” afixados de cada lado dos enormes motores das locomotivas, e cujo teor sempre li com estranheza (ainda hoje a linha do Minho está, na sua maior parte, por electrificar).
Lembro-me também das viagens de ida, pela manhã, com as carruagens à pinha, onde íamos todos silenciosos, sonolentos, apeados nos compartimentos das portas e das retretes. Uma merda que rapidamente compreendi foi a de que a retrete do comboio era um local a evitar.
Das viagens de regresso lembro-me sobretudo dos bêbados e das nossas brincadeiras (por natureza estúpidas). Há um bêbado em particular que recordo ainda hoje, especialmente por uma expressão que jamais esquecerei. Uma boa parte destes desgraçados regressavam da Galiza, onde teriam ido procurar trabalho nas obras, ou realizar qualquer biscate. Tresandavam a bagaço (quando não a bedum), expulsando todas as almas que se encontrassem nos lugares próximos, e davam origem às mais diversas confusões e desordens. Apreciavam a arte do canto (actividade que era incitada, e por vezes acompanhada, por nós ou outros grupos de estudantes), do disparate e da vozearia, de ir à retrete, e raramente eram detentores de título válido de transporte, com o que causavam uma carga de trabalhos aos picas de serviço. Devido certamente às excursões galegas, exprimiam-se num português curioso, pejado de asneiradas e expressões extraordinárias (particularmente quando se zangavam). Uma delas, proferido pelo tal bêbado, consistia no seguinte: “Me cague na hóstia de frango”. Não mais voltei a ouvir alguém expressar semelhante frase, ou tampouco parecida. Ainda hoje, passados todos estes anos, não sei o que raio significa. Porém, a cada passo recordo-a nitidamente, e não são poucas as vezes em que fico tentado a dizê-la publicamente (como que numa pequena homenagem ao bêbado do comboio da Linha do Minho). No fundo, creio que aprecio a frase “me cague na hóstia de frango”, seja pela sua estranha formulação ou pela maneira como soa.
EVN
Às dez da manhã no Centro de Investigação de Confins. Telefone-me quando estiver a chegar para lhe dizer em que sala me poderá encontrar.
Há uma planta traumatizante à porta do complexo onde se situa o Centro de Investigação de Confins. Tem muitas cores, números letras, círculos e quadrados em conjugação estudada. Vê-se que não foi feita por uma besta qualquer, mas como é desprovida de você está aqui, a sua utilidade é limitada.
Uma mistura de sorte com restos atávicos de navegação por orientação magnética (o meu bisavô paterno era albatroz) levou-me ao edifício do Departamento de Proximidade e Afins, que, na planta supra, me tinha parecido ser onde se alojava o Centro de Investigação de Confins. A porta de vidro deslizou perante mim (tenho este efeito sobre algumas portas), revelando um átrio vazio, iluminado apenas pela luz que tal como eu atravessava a soleira. Do outro lado do átrio, um balcão com secretaria escrito numa folha A4 atrás do qual estava uma cabeça de cera com secretária escrito na testa.
O eco dos meus passos atravessando o átrio infirmaram a tese da cera. A cabeça levantou-se, rodou ligeiramente, como que movida por um sistema hidráulico, quase confirmando a tese do imobilizado, e olhou para mim. Bom dia. Procuro o Centro de Investigação de Confins, onde combinei encontrar-me hoje de manhã com o Sim Significa Não.
O Centro de Investigação de Confins já não é aqui.
Esperei seis segundos por informações complementares. E é onde, agora?
A questão é complexa. No movimento de ir para outro edifício, o Centro de Investigação de Confins mudou também de nome, como se o antigo se tivesse perdido no percurso, um chapéu que o vento leva e ninguém consegue apanhar, uma moeda que cai e rola até à sarjeta.
Mais cinco segundos. Como se chama, então? E onde fica?
Olhou-me de alto abaixo, mantendo o movimento da cabeça sem irregularidades e sem se deter em nenhuma parte do meu corpo em especial, algo que me ofendeu um pouco. O Centro de Investigação de Confins chama-se agora Unidade de Estudos Telemétricos, mas toda a gente aqui continua a conhecê-lo por Maria do Rosário.
Oito segundos. E...
A menina sai por onde entrou, vira à sua esquerda e segue sempre em frente até não poder mais. A física encarregar-se-á de lhe resolver esse problema. Aí chegada, vira à esquerda. A Unidade de Estudos Telemétricos fica no Pavilhão 1. O Pavilhão 1 é fácil de identificar, uma vez que é, precisamente, o pavilhão que não está identificado como sendo o Pavilhão 1, da mesma forma que o Pavilhão 2 é aquele que não está identificado como Pavilhão 2 e por aí adiante.
O Pavilhão 1 era verde, tal como o Pavilhão 2 e por aí adiante. Lá, nada se sabia do Centro de Investigação de Confins, da Unidade de Estudos Telemétricos ou da mudança de nome e instalações. O Sim Significa Não não tinha ainda sido visto naquele dia, mas foi-me proposto que casasse com o filho encalhado da Maria do Rosário em troca de informações com substância. Preferi limitar as minhas iniciativas a telefonar, tal como combinado, mas sem resultados. Depois preferi enviar SMS, com idem aspas. Restando-me concluir que tinha faltado entender alguma informação essencial à prossecução do meu caminho, meti-me no comboio e rumei ainda mais a norte, onde param as ondas nesta altura do ano.
E.
It's the little differences.
Vega, Vincent
Cresci num hospital - emprego dos pais - e numa fábrica de gelo - emprego do tio. Como nunca fiquei doente em quase quarenta anos e nunca sinto frio, dir-se-ia que levo a sério a máxima de não se voltar aos sítios onde se foi feliz, mas pelo contrário. Ofende-me que os sítios vão à sua vida, ou, muito pior, a mudem.
Querem extremos?
Não gosto destas estações de metro de Lisboa, tenho saudades das que eram literalmente cinzentas com os intrigantes pontinhos brilhantes nas superfícies. Tenho inveja do metro de Paris, não por ser feio, mas porque se eu vir o Pickpocket, que é de 1959, está tudo na mesma. Não é uma resistência à mudança prática, portanto. É quase um reflexo hipster (coitados, eles têm coisas boas).
Outra situação.
Havia em Alcântara uma passagem pedonal que ligava a estação Terra à estação Mar (nomes bonitos), à altura os dois pontos mais próximos entre a linha de Cascais e restante rede a norte. Mil e duzentos metros de um túnel vermelho acima das nossas cabeças, quase em linha recta, com eficazes passadeiras rolantes, tudo inaugurado com orgulho pelas autoridades. Já era hediondo, mas pouco demorou (falo de meses) a que a decadência dos materiais e demasiadas exigências de manutenção tornassem o monstro ainda mais deprimente. O cenário piorava quando a ponte descia para baixo de terra, onde se podia assistir em directo aos efeitos do rio subterrâneo sobre a arrogância da má engenharia. Assim lá ficou, por mais de vinte anos. Há uns quinze que as passadeiras não funcionavam, os vidros outrora transparentes eram agora placas brancas, onde ainda existiam. Restava a dignidade de acabar com aquilo, e assim foi feito há uns dois anos, com resultados espectaculares, espaços verdes, casas e restaurantes passaram a ter luz directa pela primeira vez. Foi pelo melhor. Eu, por mim, fiquei um bocadinho triste.
Isto para dizer: já foram ao British Bar desde que reabriu?
Gouveia
ninguém tem paciência para um deprimido. muito menos outro deprimido. a depressão é como uma constipação mas com o botão da empatia desligado: acontece a qualquer um mas ninguém quer estar por perto quando um gajo espirra. e no fundo os outros acham sempre que a culpa é nossa se estivermos constipados. isso foi ele que apanhou chuva, ou não vestiu o casaco, ou esteve ao pé de alguém e não devia. se um gajo está deprimido é igual. a percepção alheia é, mais ranho menos ranho, a mesma coisa: daqui a uma semana aquilo passa-lhe, que o gajo é mas é malandro.
eneduá: não leiam nestas parcas e redutoras palavras qualquer crítica à insensibilidade social para com a depressão (ou a constipação, já agora). um deprimido é, regra geral, uma pessoa insuportável. santinho.
um tal de joão gaspar
IV
Na manhã do quinto dia, levantei-me. Finalmente! O soro continuava no pé esquerdo, a pequena extremidade resiliente. Sentia-o dorido, mas conhecia a alternativa e não gostava dela. Além disso, ouvira as enfermeiras dizer à minha mãe que faltava pouco tempo para mo tirarem dali. Para me tirarem dali. Resolvi então largar o conforto das almofadas, com a devida ajuda de uma enfermeira e o apoio moral de metade das funcionárias do piso. O momento em que os calcanhares conheceram o frio do linóleo ficou cristalizado como uma pontada aguda, mil alfinetes desejosos por se cravarem na carne limpa. Ao olhar para os meus pés, quando finalmente me tive em cima deles, vi a barriga empandeirada, cheia de vontade de fazer xixi. Mas eu não queria ir até à casa-de-banho; o destino mais importante era o quarto da Michele e a imensa saudade de estar sentada numa sanita não superava o desejo de surpreende-la.
Atravessei o corredor, inchada de mijo e de orgulho. A memória não o achava tão comprido e estreito, quase como um tubo, um canal para drenar vidas e escoar as lágrimas que se perdiam com elas. As paredes eram brancas, como as dos quartos, com uma faixa vermelha no meio. Branco e vermelho: as cores do hospital, as cores dos pensos e do sangue que os tingia.
O quarto da Michele não era muito diferente do meu. Duas camas, separadas por uma cortina bege, dispunham-se com as suas aparelhagens médicas na parede contígua à entrada. A que estava mais perto da porta pertencia a um pretinho de compleição muito delgada. Partira a perna ao confundir os baloiços do parque infantil com trapézios e por pensar que as meninas da idade dele gostavam de circo. Na outra cama, próxima da janela aberta para o parque de estacionamento, deitava-se a Michele.
Aproximei-me timidamente, arrastando os pés como uma velha - a estupefação fizera-me velha. Nunca tinha a visto a Michele deitada. Raios, achava mesmo que ela nunca se deitava! Dormia em pé, como os passarinhos, ou pendurada nos fios que escapavam do teto, nos canos expostos nas casas-de-banho, a fazer o pino como os morcegos. E mesmo obrigado ao descanso pela química milagrosa do ser, o corpo não sossegava realmente. Imaginava uma Michele sonâmbula, olhos fechados pelas pálpebras tremelicantes e corpo em frenesi. Via-a a dançar ao som de músicas sonhadas, para acordar de mente vazia e físico dorido - uma dor boa, o ténue pulsar que se sente quando deixamos o corpo esquecer-se dele próprio no chuveiro após uma longa caminhada.
Chegara a minha vez de enterrar o rosto entre as grades da cama. Os nós dos dedos embranqueceram da força com que agarrei as ripas de metal. Perguntei à Michele porque não se levantava, deitei a língua de fora e tudo. As Barbies estavam no meu quarto, era para lá devíamos ir, atravessando de mão dada o trânsito de macas que nos separava durante a noite. A verdade é que ali não havia mais nada além de um urso amarelo com um coração bordado na pança e meia dúzia de cartões equilibrados no ângulo agudo formado pelas suas metades - exibiam-se nos caixilhos brancos, gémeos da prateleira improvisada onde a minha coleção de bonecas não parava de crescer.
Dói-me a barriga. A voz sentida não mentia; só a vontade cega de desviar a solidão fazia nascer a dúvida. Como é que te dói a barriga, se aqui nos engordam com comida saudável, a saber a cartão? Os olhos, vitrais iluminados pela aurora de um dia quente, pediram-me que lhe tocasse no abdómen. A zona do ventre, especialmente a tapada pelo penso, estava dura como uma tábua. Em vez de dançar, a Michele fizera mil abdominais durante o sono.
Uma mão tocou-me no ombro e deu-me um choque. Desculpa, querida. A mãe da Michele passou por trás de mim para se sentar no cadeirão de sempre. Parecia estar com uma crise de alergias, olhos vermelhos, líquido transparente a escorrer do nariz para os cantos da boca, torcidos num esgar triste. Explicou-me com paciência que a Michele não podia brincar. Sugeri trazer as Barbies até ali, carregá-las a todas e construir uma pilha de caixas e cabelos loiros nos pés da minha amiga. Em resposta às minhas boas intenções, duas cabeças abanaram um só não. Fui-me embora, arrastando o peso de cem grilhões presos aos meus tornozelos e aos meus pulsos.
De volta à minha cama, desfiz-me em perguntas cuja resposta a minha mãe ou desconhecia ou tinha a piedade de não dar. Voltei a imaginar as brincadeiras; já não era a mesma coisa. Para começar, a Barbie Piloto permanecia fora da caixa, sentada no caixilho branco, com as pernas de plástico esticadas e os saltos dos sapatinhos cor-de-rosa a apontar para o corredor. Não conseguia parar de fitar aqueles pauzinhos de plástico, as setas inequívocas do fluxograma das recordações - uma pescadinha de rabo na boca.
No final do dia aconteceram duas coisas.
O enfermeiro-chorão apareceu no quarto pouco depois da travessa do lanche. Bateu na porta aberta para se fazer anunciar. Os dois batuques consecutivos acordaram-me do devaneio doce onde eu e a Michele brincávamos às escondidas na sala-comum da enfermaria.
A claridade tardia deixava-me ver-lhe os traços com nitidez. Percebi logo porque chorara ao torturar-me os vasos escorregadios. O homem tinha o ar de quem chorava se sentisse o cheiro a sardinhas soltar-se do quintal do vizinho ou se deixasse cair uma melancia insertada à beira do frigorífico - e as razões transcendiam as frivolidades da tristeza como eu a conhecia. Por trás das lentes retangulares, mal equilibradas no nariz estreito, o vazio das orbes esverdeadas desarmava quem nelas se demorasse.
Quando se aproximou da minha cama, agarrou no meu pé e tirou de lá a agulha, o alívio que vi relaxar-lhe os ombros superava o meu. Já não vais ser mais picada. Um sorriso mascarado fez o anuncio solene. Retribuí. Ambos mentíamos, o enfermeiro por lhe faltarem as forças para sentir coisa alguma, eu por agarrar as mechas loiras da Michele entre as mãos perdidas no colo.
A Michele. A segunda coisa que aconteceu nessa tarde foi levarem-na da enfermaria.
Um grupo de fantasmas aprumados encheu-lhe o quarto; apinhavam-se até à entrada e tapavam-me a visão. Não sei o que se passou lá dentro, ouvi apenas os soluços soltos da mãe da Michele, o sonoro ponteiro do desespero. Minutos passaram, e eu mergulhada na sombra sufocante da incerteza. Os abutres escoltaram a maca da Michele dali para fora. Colados às grades, ergueram em torno da miúda um muro caiado. Foi esta a última vez que vi a Michele, sem a ver realmente.
S. White
Caderno marinho, 02 (não-ficção)
Chove. O bólide acabou de girar. Na proa, debaixo de um mesmo guarda-chuva, dois homens em pé, duros como acessórios de teatro. Outros dois, afastados, usam capas. Não gostaram de mim, e eu correspondi. A água está mosqueada: papéis, folhas, beatas. Vira para um lado e outro com movimentos de mulher gorda que dorme. Não pára de se franzir, de se desfranzir, como uma grande gola amarrotada. Agita-se. Arqueia as costas, cheias de pústulas e malhas cobertas por uma penugem urtigante. Desenruga-se, mas sem soltar a mão dessa sua vontade canelada em espiral. Estica-se. Lambe, aderente à pantorrilha da pilastra. Beija-lhe a casca farinhenta e se escalona acima do lixo cremoso que ondula. É uma pequena vibração que sobe como um galope em câmera lenta pelos flancos do barco e se comunica ao deque. E então borbulha, escamosa, e salta como um animal em direcção ao movimento convencional que a contraria. Envia uma saraivada de salpicos contra os degraus mais baixos do trapiche. Turbilhona; massa loura e fermentada que, iluminada apenas pelos reflexos do seu gume diagonal, rompe a tela de espuma por onde se atira como um milhafre, bico à frente, e cola suas ventosas. Ouço suas sucções, seus chupões nas vigas de madeira. Cada lúnula, cada arteríola corrediça, reduzida a uma espécie de alfabeto inútil a dar com a coisa ou o lugar; aproximando-se, de quique em quique, a um panorama de astros vazios, descabeçados, desligados de qualquer projecto. O mar inteiramente engolido, e incapaz de servir neste mundo, em qualquer mundo.
Peor
(Juvenilia)
Carta Aberta a Cesariny
Meu caro Cesariny,
Hoje vesti fato e gravata
E tenho de lhe confiar a deferência
Que se abateu, como uma bênção,
Sobre a minha desmiolada cabeça!
Eu nem lhe conto
O respeito, o temor, o Sr. Doutor
A bajulação descarada
Dos que procuram editor!...
E eu que em vão busco um
Um leitor, conhecedor,
Com quem possa partilhar
A folha trabalhada −
Resíduos de dor
Resíduos de amor.
É pois de fato e gravata que lhe envio
Da sua sede vacante
(Esperando que não haja desvio
Ou chumbo retumbante)
Este poema − esguio
Porque escrito num instante.
E caso o aprecie
Caso nele veja
A centelha do poeta
(E não meras figurações de esteta!)
Por mais mágoas que tenha de carpir
Para sempre ousarei sorrir.
pmramires
- Não é hoje o teu dia de escrever?
- Sim, é hoje mesmo, e não outro dia.
- E então, por que não escreves nada?
- Nestes dias lembro-me sempre daquele verso de Alcides, n’O Misantropo, em que diz que devemos pôr freio nas comichões que temos de escrever, sob pena de, se o fizermos, expormo-nos a tristes figuras.
- Não conheço esse verso.
- Claro que conheces, até o Bloom o cita n’O Cânone Ocidental.
- Não me lembro, mas sobre esse assunto creio que já li algo em Camus.
- Penso que sim, n’O Mito de Sísifo talvez; há uma nota em que explica a mediocridade e a massificação que invadiu a literatura.
- O Faulkner também diz uma merda qualquer sobre tudo isso: de que não há mais nada de novo para se escrever, ou o raio.
- Essa é, na verdade, a razão e a natureza do modernismo.
- O Joyce escreveu aquela que é a maior obra do século XX, começando com um gajo a barbear-se; não haverá cena mais banal e sem interesse, e no entanto…
Porra!, já me cortei; tenho de deixar-me destes disparates enquanto me barbeio.
EVN
Perguntaram-me o que queria dizer alavancar e a definição que apresentei provocou risos entre outros circunstantes. Gargalhadas. Alguns urinaram-se, outros tiveram que passar pelas urgências, provavelmente por conjugação de fatores. Uma ida ao dicionário, confirmou: não queria dizer nada daquilo. Depois do que foi preciso passarmos para que alavancar se popularizasse, isto. Voltarão os anos de chumbo a comer palavras de níquel, jargão geotécnico em inglês de praia, aquela lingua que escurece os dias e convoca pragas de locustas. Já que me ficam com tudo, podiam ao menos não deixar nada.
E.
#4 (de 4) :: sete e trinta e cinco da manhã ::
Olhou com atenção para os livros nas estantes e na mesa, e seguiu para o quarto. Mais do que a cama feita, surpreendeu-o não haver qualquer livro na cabeceira. Demorou algum tempo, subiu a um banco e espreitou por cima do roupeiro. Não encontrando nada, ou pelo menos nada do que procurava, deixou-se ainda um pouco, com olhos que focavam distâncias específicas, mas já não examinavam. Antes de sair espreitou debaixo da cama sem convicção, e entrou na cozinha, abriu o frigorífico de onde tirou café de um saco com fecho de plástico. Não concordava nada com este procedimento para armazenar o café. Disse-o tantas vezes. Cafeteira ao lume, sentou-se num banco baixo enquanto esperava que fervesse e repetiu o exercício do quarto. Tudo aparentemente na mesma. De chávena na mão, sentou-se no único maple da sala, esperou, adormeceu, e acordou não sabe quanto tempo depois com o som da chave na porta.
Marlene entrou de olhos nos papéis de publicidade que trazia, e foi menos ela do que o susto que disse Foda-se!, Nuno... Ele disse Olá, Marlene, e ajudou-a a recolher os papéis que tinha deixado cair. Ela achou por bem despachar o que quer que se passasse, sublinhou a inconveniência de ele ainda ter uma chave, entrar sem aviso, fazer-se em casa, perguntou o que se passava, fez o possível (patético) para ser desagradável. Precisava do skate, vim buscá-lo, disse ele a sorrir, Precisavas do skate., respondeu ela a tentar não o fazer, Nem eu nem os teus amigos alguma vez te vimos em cima daquilo, mas precisas?, sublinhou melodicamente "precisas". O sorriso dela aliviou-o, quase riu, Enfim, não preciso, gostava de o levar. Marlene desculpou-se sem arrependimento Dei-o ao puto lá de baixo, não foi por despeito, mas foi a única coisa que deixaste, assumi que, enfim, era um Zero, sabias?, o miúdo identificou logo.
Estaria Nuno deslumbrado ou confiante com o seu sorriso permanente (mas genuíno, reconheça-se), com os olhos pregados fundo nos de Marlene? Sem lhe tocar aproximou-se, preparou os lábios, inclinou devidamente a cabeça, preparou-se para cerrar os olhos. Sem lhe tocar, Marlene baixou os olhos, não se mexeu, e disse-lhe com a interjeição possível que não
Hm-hm!
Ele respondeu com a mesma fluência
hm-hm?...
Ela confirmou que não, com alívio
Hm-hm.
Despacharam os assuntos que restavam, o dia estava a começar tão bem para ele quanto mal para ela. Caso amanhã, disse Nuno revelando o que ele achava ser um certo tipo de coragem. Bem sei, não é possível ligar a puta da televisão sem vos ver, há quatro meses ainda aqui estavas. O encolher de ombros dele teria de chegar como pedido de desculpa. Entregou a chave, preparou-se para sair, perguntou pela cama feita.
Saíste cedo?
Não dormi.
Cá?
Em lado nenhum.
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Marlene tirou a cabeça do vidro a duas paragens de chegar. Às vezes, no autocarro, quase dormia, se calhar dormia, enfim, eram vinte e cinco minutos. Não se lembra da última vez que fez o percurso sem repetir mentalmente a manhã do skate (dois anos, em Setembro), ou a pensar no facto de repetir mentalmente, ou etc. Forçou-se a divagar, mas só tinha um taberneiro simpático e o anormalzinho do autocarro que parecia convencido ser possível ela não reparar.
Gouveia
haverá mil e uma expressões e frases feitas na língua de camões dignas de registo. desde que esta linha começou, conto pelo menos duas. mas poucas assumem a importância sócio-económico-linguístico-filosófica de um mui clássico «agora mete-se o verão.» desculpa inexplicavelmente aceite para isto a que se convencionou chamar "a sociedade" ser substituída pela preguiça. é como se disséssemos as palavras mágicas, uma espécie de cartão livre da prisão da vida, que podemos apresentar em caso de algum pedido ou responsabilidade. não mando o mail, não mando a carta, não respondo ao telefonema, não vale a pena insistir, não vai dar, sabe como é (sabemos perfeitamente como é), porque agora mete-se o verão. e o verão lá se mete, sabe-se lá aonde, o espaço-tempo às urtigas, os portugueses (apesar da crise, claro, como fará questão de noticiar o jornalismo) às praias. coçar o escroto, inundar os areais outrora desertos, ouvir música tenebrosa, fazer ultrapassagens perigosas, devorar a fauna pelágica, fotografar o efeito de rayleigh. tudo com o beneplácito do utente. e devidamente actualizado no facebook (se não, não conta). estranhamente o free pass profissional não funciona nas funções caseiras. hoje não faço a cama porque agora mete-se o verão - pelo menos em minha casa - não é dispensa válida.
enfim, o pior é que já vamos no segundo mundial seguido em que ganha «a melhor equipa». isto assim não se aguenta.
um tal de joão gaspar
III
A Michele era a miudita loira do quarto em frente. Tinha mais um ano que eu e uma cicatriz com menos três pontos que a minha. Quando deu entrada nas urgências pediátricas, já quatro sóis em miniatura se preparavam para me alumiar as tripas, expostas na mesa de operações. Ao contrário de mim, cujo diagnóstico incerto fizera suar a equipa de médicos de serviço no turno da noite, um primeiro olhar à ficha clínica da Michele lançara de imediato o alerta. Dobrada pelas dores, agarrada à fossa ilíaca direita, com as últimas refeições vomitadas num alguidar e olhos febris a pedir clemência - caso óbvio de mais um apêndice pútrido, mal tão comum nos petizes.
O choro do enfermeiro fora de tal forma histérico que atraíra a atenção da Michele. Nada de extraordinário aqui. Caso semelhante, em que os lençóis pintalgados a sangue fresco não fossem os meus, também seria alvo do meu reparo. Os músculos doridos, a cama desconfortável, a almofada estranha, tudo contribui para a insónia do internamento, mesmo quando se fala de crianças. A Michele estava tão acordada no seu quarto quanto eu; a mãe fora derrotada pelo cansaço: dormia no seu cadeirão, com as costas tortas e a promessa de um torcicolo. Enquanto a mulher sonhava estar noutro sítio que não aquele, a filha bisbilhoteira levantara-se, abrira a porta com cuidado para as dobradiças não gritarem muito, e acabara ali, a ver a outra mãe conversar com o enfermeiro piegas. E a ver-me a mim, que a vi a ela, até um sorriso maroto me desejar boa noite e a porta se voltar a fechar.
No dia seguinte, cumpriram-se as formalidades: logo antes do almoço, a Michele apareceu no meu quarto, apoiada no poste onde pendurava a sua medicação. A minha mãe admirou a rapidez com que a pequena se levantara da cama. Não gosto de estar deitada. A desenvoltura desta e de outras respostas deixava-o bem claro. Eu encontrava-me no extremo oposto do espectro. Estendida naquela cama há três dias, e mesmo detestando as arrastadeiras, mais o cheiro nauseabundo que a urina concentrada deixava no quarto, ainda não obedecera às ordens das enfermeiras, dos médicos, de toda a gente. Muito era o medo de me mexer, quanto mais de voltar a andar. Não queria passar mais noites a ser picada - além disso, como é que se caminha com o soro no pé? Mas se te levantasses podíamos brincar. Brincamos assim, disse a minha boca, inundada de mimo.
Assim, a olhar? A Michele estranhou a minha infância contemplativa, falhava em entender o lugar onde as experiências resultavam de exercícios conceptuais e do muito que se lia. A bronquite crónica e as otites agudas impediam-me de ter peluches a enfeitar a cama ou de retirar as Barbies das caixas; aprendi a imaginar que tinha uma amálgama de pelúcia furta-cores a tapar a colcha e que os cabelos platinados das Barbies brilhavam quando brincava com elas. Estas ideias saciavam-me a traquinice. Na altura, não o sabia explicar desta forma - e com as mãos cravadas nas grades da minha cama, a Michele só abanava a cabeça. Devias sair daí. Eu encolhia os ombros às acusações de preguiça, mostrava os dentes à indignação. Havíamos de nos dar bem à nossa maneira. Eu era a cabeça, ela era o coração.
Notei que os tornozelos da Michele escapavam das calças do pijama. Lembravam canas jovens, frágeis talas de um verde ligeiro e doce, mas com força suficiente para rebentar o mais compacto tapete de alcatrão. A pequena explorou todo o quarto empoleirada nos finos caules, de raízes guardadas nas pantufas felpudas. Contou as rachas da parede sem esquecer nenhuma, estudou os padrões gastos do linóleo que forrava o chão, leu-lhes as histórias e aprendeu o nome de cada mancha. As nossas mães trocavam dicas, discutiam as melhores posições de descanso nos terríveis cadeirões vermelhos. O súbito reboliço armado no meu aposento de campanha deliciava-me.
Não tardou muito até a Michele colar o nariz ao plástico transparente das caixas das Barbies. Gabou a coleção-cápsula que o mecenas, meu pai, montara ali em tão pouco tempo. Os seus olhos devoraram cada detalhe da princesa, da tratadora de golfinhos e da pasteleira, e não pôde evitar fazer da boquinha um buraco muito redondo ao descobrir a Barbie Piloto de Aviões. Foi essa a boneca que pedi à mamã para tirar da caixa, exceção feita para aplacar as dores e manter a companhia. A Michele fê-la saltitar sobre as minhas pernas cobertas de branco. Juntas contámos a história da viagem de Bárbara, a rainha dos cockpits cor-de-rosa, às escarpas níveas de uma Courchevel imaginada.
Quando precisei de fazer xixi, a Michele aproveitou para participar numa corrida com as macas - ganhou. Voltou depois para junto de mim, cansada e com os tímpanos fervidos nas reprimendas da mãe. Entre expirações aflitas, falou-me das saudades de andar de bicicleta, de brincar à apanhada com os vizinhos, de jogar à bola com o irmão mais novo. O miúdo, cujo nome jaz debaixo do nariz torto que me lembro de lhe ver, tinha a minha idade e aparecia todos os dias para a visitar. Venho cá com ele, prometeu.
Nesse dia, o sol de Novembro foi mais rápido na partida do que recordávamos. Almoçámos no meu quarto, a senti-lo escaldar-nos os braços pelas vidraças, tão entretidas nas nossas confabulações que nem notámos a falta de sal no arroz. Depois chegou a hora do jantar, peixe cozido com batatas servido em tabuleiros de plástico cinzento. A Michele despediu-se de mim com os seus modos despachados quando reparou que a sua posta de pescada arrefecia ao som as ordens arreliadas da mãe, mas voltou no dia a seguir, bem cedo, ainda a mastigar o pão com manteiga. E no outro.
Depois de dois dias e meio de folia, a Michele insistiu em apresentar ao irmão a nova amiga, a menina rechonchuda que não se queria levantar e à qual tinham tirado o mesmo bocado de barriga, mas deixando uma cicatriz muito mais feia. Mostra-lhe!, pediu. Aproveitando a distração dos meus pais, ocupados a receber os primos em terceiro ou quarto grau que iam aparecendo no hospital, mais por educação que por cuidado, levantei uma ponta da compressa. Os centímetros dianteiros daquele caminho sinuoso, terra lavrada de fresco, pintavam-se com um púrpura inflamado; os três primeiros pontos da cicatriz, que latejaram durante anos em antecipação às primeiras chuvas do Outono. Aqueles três pontos extra que a Michele não tinha.
- Ficaram amigas depois de saírem do hospital?
- Não.
- Porquê?
S. White
Epigramas
A seiva expectante coagula
No dia morno que fenece
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O amor é a enigmática vontade de morrer
Sob os plácidos raios de sol do entardecer
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Tens razão
Já é tarde
Não vale a pena
Não vale sequer
Um poema
pmramires
Eis o que descobri, um dia desses, em Colima: a distância dos objectos não é a mesma quando um gajo está com raiva do que é em hora de calma. Assim, para mim, Colima não tinha arredores porque já não podia perfazer com ela uma noção negativa do peso vencido. A floresta, a cinquenta metros da estrada, era uma espécie de tufo desconhecido. Cinquenta metros são suficientes para deixar um sítio fora de alcance. E depois de dois dias de caminhada na chuva, até uma ameaça de pneumonia equivale a um recuo para dentro do maravilhoso. Uma marcha atrás capaz de reduzir o corpo forte a uma caleça esquecida entre sálvias e canas, onde uma camada fina de autismo empoça as rodas e enxovalha com elas uma coroa de flores tubulares, minúsculas e brancas, protegidas na haste por um esvoaçante cachecol penugento. Neste mundo existem caminhos penosos e graves; em seguida, cenários.
Peor
foram vultos do cinema da envergadura* de uma gina lynn, de uma carmen luvana ou de uma veronica zemanova (isto só para fazer justiça a alguns nomes, sem querer correr o risco de maçar o leitor), que contribuiram de forma decisiva para que, hoje em dia, o mundo encare a manobra de heimlich, na sua variante sem calças, como uma das actividades mais gratificantes de que há memória. era nisto que eu estava a pensar, quando me encontrava no pingo doce para comprar um quilo de maçãs-reinetas, visto que me comprometera a fazer um puré das ditas para o jantar. não sei se pessoas como o meu caro leitor, que talvez não esteja habituado a comprar maçãs-reinetas, fazem a mínima ideia do que significa meter-se na fila das pessoas que vão comprar maçãs-reinetas. é que nunca é demais relembrar que a maçã-reineta é um daqueles frutos perante os quais uma pessoa de bem não se pode dar ao luxo de querer ser como a suíça. quem não está a favor da maçã-reineta, está-se a pôr a jeito das hordas de adoradores desse fruto malquisto. a maçã-reineta é um fruto tão incompreensivelmente feio que tenho a certeza que, se a livros do brasil fizesse um fruto, publicava uma maçã-reineta. e assim como há leitores para os livros da livros do brasil, também há comedores de maçã-reineta. conheço até histórias de gente que compra maçãs-reinetas e as guarda em esconderijos, longe da cobiça dos familiares, atrás de alguns volumes da colecção dois mundos.
regressemos, porém, ao pingo doce, àquele exacto momento em que eu, a postos, já com o saquinho de plástico na mão, pronto para ensacar uma meia-dúzia de maçãs-reinetas, me vi bloqueado por uma dupla de centrais experientíssima (à esquerda, uma velhinha de casaco de malha e, à direita, um quarentão de bigode e maus modos), que se aperceberam da minha falta de traquejo na alta-roda do ensacamento de maçãs-reinetas e decidiram fazer o que o luisinho e o venâncio fizeram ao klinsmann em alvalade, circa 1991. houve agarrões na camisola, cotoveladas e uma entrada assassina a pés juntos**. a tudo, o árbitro fez vista grossa. e porquê? a minha teoria, caro leitor, é que só pode ter a ver com fruta.
quando, finalmente, consegui abeirar-me da caixa das maçãs-reinetas, já só restava uma. era uma maçã-reineta particularmente tosca, quase capaz de inspirar a minha compaixão. mas eu estava demasiado dorido e humilhado para me dedicar à prática do bem, pelo que encolhi os ombros e acabei por também eu voltar costas àquele fruto, votando-o para sempre a uma hedionda solidão. afinal de contas, paciente leitor, eu nem sequer gosto de puré de maçã.
*errata: onde se lê “foram vultos do cinema da envergadura de…” deve ler-se 'foram vultos do cinema da verga dura, tais como...'.
** atenção: o luisinho e o venâncio não fizeram nada disto. mas confirmo o dado histórico que diz que o klinsmann esteve tão longe marcar um golo nesse jogo como eu, que estava sentado atrás de uma das balizas, no topo sul, do velhinho alvalade.
- azeite
A Ram Sam Sam
Durante muito tempo foi apenas conhecida como Dona Ju; e, na verdade, só passados vários anos após ter terminado a quarta classe é que tomei conhecimento do seu verdadeiro nome: Juvelina. Agora que penso nisso, Juvelina até é um bom nome para professora primária. Ermelinda (a velha professora da outra turma, de onde saíram todos burros, excepto um ou dois por mérito próprio) também não é mau, mas ainda assim prefiro Juvelina. Há qualquer coisa de autoritário, de formal, de justo, que ressoa e me agrada no nome. Naturalmente que com o diminutivo Ju, como era tratada naquele tempo, nenhum daqueles indícios sobrevivia.
Havia uma altura do ano em que a Dona Ju obrigava-nos a dançar e a cantar o A Ram Sam Sam, logo pela manhã, e isso uma ou duas vezes por semana. Ainda hoje vivo horrorizado com essa experiência, e acredito piamente que a minha completa inaptidão para a música e para a dança provém daí. Também é verdade que não ajudava para amenizar a situação o facto de calhar quase sempre com a Anabela (a dança era realizada aos pares). Uns bons anos mais velha do que a maioria dos alunos, Anabela não primava nem pela higiene nem pela sociabilidade. Além de cheirar mal (e a cada passo aparecer com piolhos), não eram raras as vezes em que nos batia com uma cana que trazia de casa. Curiosamente, a sua natureza algo canastrã conferia-lhe uma falta de destreza para o A Ram Sam Sam inteiramente coincidente com a minha. Segundo me constou, está hoje “bem na vida”: emigrada na Suíça, com um rancho de filhos, vem no Verão à terra por altura da festa de São Sebastião.
Um gajo que fazia muito bem o A Ram Sam Sam era o Avelino. Nunca mais soube nada dele, até que há tempos ouvi que tinha morrido de mota mais uma moça, mas não cheguei a confirmar a veracidade desta informação.
EVN
Encontraram o meu email. São as vantagens de ter tudo arrumado, organizado, catalogado, indexado, numerado. Até me conseguiram dizer por que razão esperava resposta há três meses: a pessoa que o recebeu já não se encontra ao serviço e a correspondência seguiu-lhe o caminho. Reformou-se, morreu, despediu-se, não sei, não perguntei. Detetada a falha, o email foi então trazido de volta ao mundo que ainda se encontra ao serviço e reencaminhado para mais alguém, com a garantia de que desse reencaminhamento para mais alguém resultará um contacto. De quem? Não sabemos. Quando? É uma questão de esperar. Um corvo grasnou a coberto dos pinheiros que já não o são. Uma corrente de ar acabadinho de chegar do ártico circulou por frestas até então desconhecidas. A noite caiu a desoras sem data para se levantar.
E.
temos é que viver a vida com calma, dizem eles, os médicos de bancada, psicólogos de pacotilha. viver com calma e comer bem. morrer saudável, parece ser o mantra. comer merdas verdes e roxas, pouca merda de cada vez, muitas vezes merda ao dia. a nova gente foi gente que lhes disse que os alimentos vermelhos têm antioxidantes, e dantes é que era bom. têm a cabeça oxidada, reduzida a escombros. muito cuidado na alimentação, mas quer a ironia que engulam qualquer coisa que a tv lhes dê para papar. cuidado com a diabetes, cuidado com o colesterol, cuidado com a linha. páre, escute e olhe, antes de comer. cozer em água e com pouco sal. banha só da cobra, que a de porco engorda. fritos, só em sonhos. e as rotinas, ai rotinazinhas é que é bom. deitar cedo e acordar ainda mais cedo. deus nos livre de faltar ao jogging do sétimo dia. café só depois do trânsito, e com adoçante. refeiçãozinha ligeira a fazer as vezes do almoço. são uns condes de contar calorias, mesmo das saladas frias. essa barriguinha sempre lisa, ora meio vazia ora meio cheia de fome. cuidado com o bikini. yoga das seis e meia às sete, e depois do jantar a caminhada. rumo a nenhures e sempre de regresso à mesma porta. às portas da vida. amanhã há mais, depois da novela. meia dúzia de páginas de um qualquer novel escritor do tope dez antes do sono agendado. os cremes de beleza alheia, a almofada ergonómica, colchão de espuma ajustável à coluna sempre em forma. malta às direitas. e eu aqui todo torto, a fazer troça. pode ser que me foda.
um tal de joão gaspar
#3 (de 4) :: oito da manhã ::
Quando faltam quinze minutos para as sete, à semana, a primeira paragem é ponto de encontro de pessoas que viajam juntas diariamente. Parte delas conhece-se do bairro, umas desde a infância, outras do café, outras apenas da espera. Mas a maioria, como André, limita-se a reconhecer caras, e a cumprir os seus hábitos durante aqueles dois ou três minutos. Para outros são o telemóvel, o Record, ou, como a senhora que chega sempre primeiro, uma arrumação exaustiva da mala de mão. Para André é um cigarro, enquanto confere as capas no quiosque.
Dentro do autocarro os lugares estão tacitamente marcados. Levou algum tempo a percebê-lo, mesmo sentando-se sempre no mesmo sítio. Só quando um fedelho se sentou no seu, arrastando o avô atrás de si, é que, olhando em volta pela primeira vez, reparou que havia uma ordem e que, mesmo estando ainda pessoas para entrar e bancos livres, não podia sentar-se onde quisesse. Que sociedade magnífica, pensou, foi para isto que criámos a civilização, e acrescentou sem ironia como se estivesse de facto a falar com alguém.
À terceira paragem o autocarro enche, e só André, agora com excesso de consciência, repara que a ordem se mantém. As duas amigas adolescentes junto aos lugares dos velhos, o rapaz com auscultadores excessivos no corredor dos bancos de trás, o homem com a pasta castanha à conversa com o motorista. À medida que as paragens ficam para trás, também a previsibilidade se vai reduzindo, mas André ainda sabe em que paragem entra Marlene, às sete e dez, na 24 de Julho. Não entra todos os dias, mas, apesar disso, com frequência. Tem uma mochila desportiva, óculos escuros, cabelo apanhado em cima, e quase sempre o mesmo casaco de couro preto, que lhe dá pela cintura, fechado até ao pescoço, deixando apenas espaço para o fio dos auscultadores que tem nos ouvidos. Fura lentamente entre a população do autocarro até se encostar ao vidro oposto à porta de saída. Fica a centímetros de André, que está sentado no primeiro dos bancos de trás. Não pode saber que ela não está a acordar como os outros e portanto fantasia que emprego terá, o que terá na mochila, ou onde vai sair. Gostava de a poder impressionar, de dizer alguma coisa, de ter a facilidade de assunto dos outros utentes do bus, mas não é desse material que é feito.
Quando sai, ela continua, e André ainda procura prever a restante viagem que já não fará enquanto entra no edifício, quando atravessa a parede do ar condicionado que sente na nuca, dentro do elevador e por fim à secretária. Quando liga o computador já não está no autocarro. Encaixa na cabeça o auricular para o primeiro telefonema do dia. Há um espelho em cada mesa, ali colocado pelo departamento, de forma a que o operador saiba que está a sorrir quando fala com o cliente. Eles sentem, estava escrito na idiota circular. André veste o sorriso e enfrenta o reflexo. Por Deus, sou o vendedor mais socialmente incompetente da história. Controla o risinho provocado pela conclusão e diz o primeiro bom dia da manhã.
Gouveia
Meditação em Lagunitas
Todo o pensamento novo é sobre perda.
Nisto se parece com todo o pensamento antigo.
A ideia, por exemplo, de que cada particular apaga
a luminosa claridade de uma ideia geral. De que o pica-
pau boloteiro sondando o esculpido tronco podre
daquela bétula negra é, pela sua presença,
algum trágico detrito caído de um primeiro mundo
de indivisa luz. Ou a outra noção de que,
porque neste mundo não há coisa nenhuma
a que o silvado da amora corresponda,
uma palavra é elegia daquilo que significa.
Falámos sobre isto ontem noite dentro e na voz
do meu amigo havia um fino fio de dor, um tom
quase lamuriento. Um pouco depois percebi que,
falando assim, tudo se dissolve: justiça,
pinheiro, cabelo, mulher, tu e eu. Houve uma mulher
com quem fazia amor e eu recordava como, segurando
por vezes os seus ombros pequenos nas minhas mãos,
sentia um violento fascínio na sua presença
como uma sede de sal, do meu rio de infância
com os seus salgueiros ilhéus, música parva do barco de recreio,
lugares lamacentos onde apanhávamos o pequeno peixe laranja-prata
chamado pumpkinseed. Pouco tinha que ver com ela.
Saudade, dizemos, porque o desejo está cheio
de infindas distâncias. Devo ter sido o mesmo para ela.
Mas lembro-me de tanto, da forma como as mãos dela desmantelavam pão,
da coisa que o pai dela dizia que a magoava, com o que
ela sonhava. Há momentos em que o corpo é tão numinoso
como palavras, dias que são a continuação do corpo justo.
Tanta ternura, aquelas tardes e noites,
dizendo amora, amora, amora.
Robert Hass
tradução de Belmiro Oliveira
II
Tive uma apendicite quando faltava apenas um mês para o meu oitavo aniversário. A minha mãe culpa o excesso de pão de forma que comi no Verão desse ano. Torcida no cadeirão vermelho, chiando à cabeceira da cama de hospital, muito praguejou contra os americanos e o seu pão de brincar. Na Flórida devoravam-se fatias quadradas de goma sensaborona e brioches luzidios, recheados com doce e agentes inflamatórios. Nas esquinas dos arranha-céus cinzentos, montanhas adiposas movimentavam-se com dificuldade depois de acompanharem o bagel cheio de queijo-creme com litro e meio de coca-cola. Passando por espanholita rechonchuda, em duas semanas experimentei manteiga de amendoim barrada em toda a variedade de glúten enformado. Poucos meses depois, uma lombriguita, esquecida entre vísceras mais importantes, gritava por atenção.
A cicatriz que sobrou dessa história tem outras histórias dentro dela, é uma matrioska desfeita nas réplicas cada vez mais pequenas de si própria. Descasca-se como as cebolas brancas mais carnudas, as que avermelham os olhos do seu carrasco a cada golpe, enquanto o azeite fervilha de antecipação no tacho.
- Lembras-te da primeira vez que pensaste nisso?
- No quê? Na vida que dói?
- Sim. Nunca tinha ouvido isso. Como é que a vida pode doer?
Durante a semana que passei no hospital, o cateter da medicação parecia um sapinho irrequieto. Saltava das mãos para os pés, e de novo para as mãos, não esquecendo a passagem pelos antebraços e interior dos cotovelos. As minhas veias não paravam de dançar ao som das rodas das macas a cortar o corredor. Sem aviso, a zona onde tubo de líquido transparente se unia à pele empolava. Marés rebeldes de soro fisiológico e medicação encharcavam as compressas que ajudavam à fixação do cateter. A minha mãe praguejava em surdina e tocava no botão vermelho por cima da minha cama; eu ficava muito quieta entre as grades brancas, tentando adivinhar que parte do meu corpo traria mais conforto à agulha.
Na segunda madrugada que passei no hospital, o badalejar urgente da campainha fez-se ouvir de novo. Ao meu lado, sobre os lençóis estampados com o logótipo da unidade hospitalar, a minha mão inchada tinha honras de pequeno monstro, a chapinhar no lago de eletrólitos.
Como sempre, um enfermeiro apareceu prontamente à porta do quarto. Parado na ombreira, a silhueta recortada pelas luzes do corredor tinha a aura dramática de um super-herói. Chegou de estojo na mão, cheio de agulhas, seringas e emplastros, garrafinhas com álcool, líquidos acastanhados, éter. Sentou-se num banquinho ao meu lado e, sob o escrutínio impiedoso da mãe-galinha, agarrou a extremidade intumescida. Armado com o método do ofício, aproximou a mão às lentes retangulares dos óculos, arrancou a compressa que prendia a tubagem à pele e retirou a agulha brilhante, deixando uma almofada vermelha no seu lugar. Sentindo a ameaça de outras campainhas, logo começou à procura de um novo local onde fosse seguro ancorar.
Vi-o pressionar o metal oco contra a minha pele, primeiro fazendo uma cova redonda, perfeitamente simétrica, e depois, finda a resistência do tecido, abrindo um buraco por onde parte da agulha desapareceu. Fechei os olhos com força para me esquecer da dor. Pensei nas Barbies que ganhara desde que me tinham tirado o apêndice, todas dentro das suas caixas coloridas. Estavam expostas sobre os caixilhos brancos por onde passavam os fios da parafernália eletrónica à volta da cama.
Para frustração de todos, a veia não aguentou nem um minuto inteiro sem sapatear dali para fora, deixando a agulha a espirrar soro para o nada. O enfermeiro procurou outra, repetiu o processo todo. Uma vez, duas, três. Passou para a parte interior dos cotovelos e daí para os meus pés. Uma almofada de alfinetes: era a esse papel que o meu corpo se oferecia. Comecei por contá-las, às ferroadas que me iam esburacando a derme, um passatempo masoquista que depressa larguei. A minha mãe acariciava-me a face, limpava-me as lágrimas silenciosas com o polegar. Num sussurro cansado, perguntei-lhe o que tinha eu feito para estar ali a ser picada assim. Doía tanto!
Uma fungadela ressoou pelo quarto. O enfermeiro estava a chorar.
O meu corpo latejava, as células pulsavam em uníssono. A dor que me unia partia aquele homem em mil pedaços. Na altura, não percebi porquê. Tentei pedir desculpa ao enfermeiro, num murmúrio tímido e ruborizado, mas as lágrimas gordas que lhe escorriam pela face multiplicavam-se. Saiu a correr do quarto para o corredor comprido, onde as luzes zuniam como insetos elétricos, à espera da próxima corrida de macas ou do próximo cadáver minúsculo coberto por um pano negro. Fiquei por alguns minutos a ver as costas curvadas do homem oscilar a cada soluço. Quando voltou, deu-me um beijinho na testa em jeito de desculpa, desembainhou uma nova agulha e atirou a estocada definitiva no meu pé esquerdo.
A minha mãe acompanhou o enfermeiro à porta do quarto com um sorriso triste, cheio da mesma culpa que alagava os olhos do homem. Os adultos e a sua culpa, tatuada em tons lúgubres num espacinho colado ao coração. Trocaram entre si palavras cansadas. Comecei por tentar ouvi-las, chamando a mim a audição especial que os efeitos secundários da medicação me podiam ter dado, mas logo me distraí com outro sentido: atrás da conversa de crescidos, do outro lado do corredor, um par de olhos muito escuros fitava-me com curiosidade. A mãozita que segurava a porta do quarto em frente não era maior que a minha e dela também espreitava um cateter enrolado em compressas.
- Não percebo. O que é que dói aqui? Ver o enfermeiro a chorar?
Não. É a Michele.
(I)
S. White
São Pedro
Faço parte de uma tradição inventada por quatro amigos de faculdade. Todos os anos, no dia de São Pedro, subimos ao parapeito da ponte mais alta antes do oceano levando connosco uma garrafa de tequila e quatro copos. Dispomo-los no corrimão, em fila, para que quando o sol se aproxime do horizonte conseguirmos ver através deles o mar destilado em luz vermelha. Nesse instante decisivo, sustemos a respiração e mergulhamos no shot, a setenta metros de altura. Brindamos à promessa de alguém que nos leve para longe, o mais rápido, o mais longe possível, e por isso bebemos sempre em tom de despedida. Depois deitamos os copos ao rio e vemos como se transformam nos barcos dos pescadores que nesse dia saem em procissão pela barra. Pedem ao seu padroeiro a bênção de mais um ano de trabalho e de bonança. Calados, ficamos a vê-los enquanto navegam para o mar; vão lá pedir o mesmo que nós. É já de noite quando finalmente deixamos a ponte e corremos à pressa para os bailes da cidade em festa.
No quarto ano de faculdade, o João foi o primeiro a faltar à tradição. No verão anterior tinha anunciado a mudança para a capital, onde continuaria o curso. No dia em que nos abeirámos do parapeito, dispusemos na mesma os quatro copos e lemos a mensagem que nos enviara: «Sem mar que me levasse, tive que ceder à ambição de mudar, ao menos, de ponte: de parapeito de onde avistasse o horizonte – será outra ou a mesma linha, ainda não sei dizer. De olhos postos no sol não víamos a desolação dessa cidade atrás de nós, mas ela continuava a sufocar-nos o resto do ano. Não vos esqueço, amigos, e tenham a certeza que quando brindarem também eu mergulharei convosco neste rio, mais largo mas menos fundo que o nosso». Contentes por ele mas ainda angustiados pela separação, bebemos os três shots e lançámos o restante, ainda cheio, para que o rio o tragasse.
No ano seguinte o mar cumpriu a promessa e levou o Rui para os antípodas do mundo. De lá, ia-nos falando de uma metrópole de milhões de pessoas e prédios altíssimos, e dinheiro que chegava para todos os luxos que ocorressem à imaginação. Sem pontes por perto, subiria nessa tarde de São Pedro ao prédio mais alto e brindaria também, seguro que nos avistaria ao longe. Bebemos os dois por ele; mas desta vez, como afronta ao mar, num ridículo desafio, cada um bebeu quatro shots de fiada. Atirámos os copos vazios ao rio e logo o peso do álcool fez deitar-nos no chão. A poucos metros de nós os carros passavam na auto-estrada a uma velocidade estonteante, fazendo vibrar o cimento do chão… mas logo se tornou num remoto zumbido. Num instante adormecemos os dois com o sol do fim de tarde, embalados pelo calor sublimado da tequila.
Acordei com o barulho de estrelas que rebentavam no céu: os pescadores lançavam foguetes e davam início ao baile na rua. Vi então o André demasiado inclinado sobre o corrimão da ponte, de olhar fixo no luar reflectido pelas ondas. Tinha na mão a garrafa de tequila, vazia. Aproximei-me e vi-lhe na cara dois traços cavados de lágrimas. Tremia muito, mas nos seus olhos não havia vida, uma centelha que fosse. Pus-lhe a mão no ombro. Acordou daquele transe e sorriu. Disse-me: «siga para a festa», e segui atrás dele.
Nessa noite entrámos num dos bares mais concorridos da cidade e logo o perdi na confusão. Fui puxado por outros amigos, deixei-me levar por eles. Dancei e bebi até de manhã. Ao romper do dia fui encontrar o André num beco próximo do bar, sentado no chão, adormecido nos braços de uma rapariga singularmente bonita: não era desta terra, tinha a cor exótica e a beleza dos ventos quentes do outro lado do mundo. Imperturbados pelo alvoroço da noite que destroçara os corpos e a cidade, dormiam sorrindo serenamente: embalados por um barco que (quis acreditar) navegava já em alto mar, rumo ao sol nascente.
Amory
às vezes usamos comprimidos
outras vezes mitos gregos
uma morte sem penas
e poucos perigos
porque com inimigos destes
mais valia ser boa pessoa
[]
A chuva foi inteiramente engolida pela terra. Era, no fundo, uma cólera de pássaros. Um turbilhão pastoso, adocicado e enjoativo, a escalar essas pequenas dunas de piados e plumas negras. O matagal puxou sobre si o cobertor, enrugou uma paisagem até rebentar numa inércia vaga e vitrificada. E no dia seguinte ainda era mais uma vibração do que um sólido. Um pouco demais à direita. Um pouco demais à esquerda. Na parte horizontal de uma cruz plantada no meio do canteiro, foi desenhado um constelado de estrelas e luas que os anos ensebaram. Ao lado, uma cabeça de abóbora refastelada entre as hortaliças. De mais perto a cabeça movia-se, tornava-se um emaranhado de larvas a enovelar sem dobadoira. Olho para cima, o vento... o céu está encamisolado de amarelo e preto. Ainda posso sentir o chão mexer um pouco. E não só à minha frente. Por toda a parte. Espalmo o tronco de uma árvore e recomeço a babar, a tossir. A coisa cai, mistura-se ao capim e areia. Respiro o cheiro da serragem. Continuo a babar como uma lesma. No chão respingam sobre o arroz espessas vírgulas de gema de ovo. Ergo toda a cabeça. As espumas rendadas do céu foram embora. Deixaram apenas a lua como um grande coque de sangue. Depois da ravina, os gajos em volta do fogo, a comer carne de lata. As caras até vermelhas por causa do calor. Melhor ficar quieto. Se alguém abrir a boca, os outros entram dentro. E do outro lado da cratera, outro grupo de gajos. Esses empurram uma espécie de baldaquim onde desce um chanfro semi-encoberto de anáguas, muito parecido à cana do nariz de um cavalo. Deixaram abertas as portas da camioneta, e o rádio alto para os fazer dançar com as cabeças como bilboqués soltos. Entre eles as folhagens eram echarpes transparentes. Folhas de zinco pintado e lianas de papel-alumínio. Vou de atalhado. Antecipando as minhas perguntas, um gajo barbudo põe o cigarro entre os lábios e aponta-me uma escada que se enfia no chão. Passo sem olhá-lo, um pouco incomodado, como um cliente de bordel diante da puta que preteriu. Lá embaixo, quebradiços, os degraus têm essa vida baça de unhas e pêlos que continuam a crescer depois da morte. Impacientes e friáveis, mal são tocados partem-se em filamentos que se enrolam e, como molas, projectam os degraus seguintes para longe. Nesses relevos apodrecidos, submarinos, o chão de areia abre-se num fervilhado de lascas e tumores. Depois se retrai. Foge desse revestimento duvidoso, áspero e liso. No fundo e à direita, há uma enorme boca aberta na parede. Lá dentro, sem barulho, o arcanjo Miguel esmaga a cabeça do Diabo. Este a rir. A língua para fora, como um trampolim para o satori. Uma labareda sinistra e gratuita que se contorce nela mesma, a se desfiar em vapor. O Diabo é um formigueiro incandescente. Lama viva cheia de bichos revirados. De vapores. Esse bloco solar tem forma de queijo suíço para alojar nessas galerias uma multidão enfeitiçada. As formigas substituem-se sem prejuízos, são como o reflexo de um reflexo. Sobre a carne ulcerada fazem uma sobrepeliz trêmula e sedosa. Pode-se ver o frisson que as afaga. A obstinação delas livra-nos de nossos remorsos. A carne corre de lado e libera as favas que se escondiam nesse bolo de carniças. Fecho bem a boca e enfio as mãos nos bolsos. Mas as minhas narinas se dilatam e a paisagem toda entra por elas. Tenho uma gaja morta a entrar pelo nariz. 4 mil Novembros sobem por um halo calcetado de vértebras. São um cordão de odores sobre esse amontoado de achas que foi uma mulher. Posso vê-la a correr de quatro farejando a terra para desenterrar os 4 mil um a um. O clitóris transformado num rubro tição. Pequena concha febricitante que se incrustou à entrada do Valhalla. A riscar um disco de gelo azul. Tufos de macarrão saem de suas órbitas. Morre para que possamos nos encantar com a sua ausência e para que ela esvazie tudo. Os ossos abertos em leque. Como os raios de uma roda. Feixes de tíbias e perónios suspensos no tecto por correntes. Rocalha de guizos. Fêmures que planam. Um esqueleto completo. Não sei se nada ou voa, naquela poça marinada de peles mortas. O ar se coagula em uma inquietante e rósea gelatina. É um ódio moderado e profundo a antecipar tudo o que eu ia dizer, como um eco que vem à frente.
Peor
Tanatose Crónica
“O tungo-de-nariz-alongado (tungus mortuus), também conhecido como rato-mortiço (ou, em certos locais, simplesmente mortiço), é um animal singular em toda a fauna ibérica. Aparentado aos marsupiais da Australásia (crê-se que chegaram à costa portuguesa há 50.000 anos, a bordo de jangadas naturais de emaranhados de cocos), este pequeno roedor partilha de uma característica defensiva comum a outros animais: sempre que pressente um predador finge-se de morto. Porém, e no que é único em todo o reino animal desta era geológica, além de se fingir de morto perante o perigo, o tungo-de-nariz-alongado morre mesmo. Isto é, fingindo-se de morto, deixa-se morrer efectivamente: permanecendo num estado de acinesia profunda, e que pode durar até vários dias, acaba por perecer. É esta, aliás, juntamente com a ameaça humana e a perda de habitats naturais, uma das causas que levam à diminuição do número de espécimes, estando actualmente classificada como espécie em perigo de extinção (…)”.
Ainda mais absurdo do que este espantoso e pequeno mamífero é o ser humano: fingindo viver, morre efectivamente.
EVN
Houve tostas
-de queijo-
-de fiambre-
-de presunto-
-mistas-
Até já houve de frango e de atum, mas como não existe uma memória viva dos factos optámos por não as referir. Se alguém nos viesse perguntar como eram, não lhes saberíamos responder, não temos uma fotografia sequer para lhes mostrar. Eu sou o mais antigo na casa e quando cheguei já não havia a de frango. Nem sequer me lembro de na altura se falar dela. Só uns anos mais tarde fiquei acidentalmente a saber, numa discussão acerca de fungicidas, que elas tinham feito parte da oferta. Da de atum sim, mas só me lembro de que dava muitos problemas com o pão de forma. Tudo dá problemas com o pão de forma, mas a pasta de, digamos, atum dava-os em demasia. E como vendiam mal, suponho que por não saberem bem, são dispensáveis ao processo de construção da nossa nova identidade enquanto instituição de crédito.
E.