Olhava o espelho sem se ver quando bateram à porta do camarim. Faltavam quinze minutos. Há quantos mais estaria ali, estático e apático, a parasitar as luzes concebidas para fazer o acompanhamento da maquilhagem? A ele, que não a usava por razões religiosas, serviam para realçar as imperfeições, os pontos negros na ponta do nariz e os buracos na linha do maxilar inferior em que que adolescência se tinha deixado ficar. A escassez interrompeu as perguntas. Era o tempo de se vestir, verificar o conteúdo da mala e seguir para o palco, não o tempo de fazer contas ao tempo. A ansiedade do ilusionista que apresenta os seus números a uma plateia que lhes conhece a mecânica não é nada quando comparado com o dilema da plateia, de quem se espera que reaja, a mais ingrata das atividades humanas. Para ele, espremido dentro do fraque de um outro número que lhe servira até há pouco mais de um ano, não havia um vestígio de fúria ou de vergonha, apenas a conformação que, se tudo não correr mal, está para a angústia como a crisálida para a lagarta.
(...)
A cortina fechou-se, deixando a pomba a esvoaçar pela sala, abalroando as luzes que se iam acendendo enquanto largava penas e dejetos sobre os espectadores que, ao subir do pano, bateram palmas diligentemente. Ele fez a vénia que se tornara reflexo e o pano caiu. As palmas continuaram e o pano subiu novamente para revelar uma plateia de pé. Há gente para tudo, até para fazer um serviço até ao ponto final. Mais uma vénia apesar das cruzes, nova descida do pano e então finalmente os passos e o silêncio. Permaneceu estático e apático em frente ao tecido negro, a parasitar o silvo sincopado da respiração da pomba, que continuava a sua deambulação excrementícia pela sala entretanto regressada à escuridão. Quem se portou mal, afinal, fê-lo sem exceder os limites aviários: a ausência de culpa limita a expressão do ressentimento. O pessoal da limpeza, que por certo teria dificuldades em sentir esta avaliação como sua, encontrou-a morta, de exaustão e politraumatismos, entalada entre o encosto e o assento recolhido do número doze, fila H.
E.
Foi na viagem para casa, em plena auto-estrada, que foi tomada pelo pânico de uma repentina, violenta, amnésia. Total. Encostou à berma, arrepiou-se com o arranhão da segunda mudança quando reduziu, e olhou em volta. Alfa Romeo, dizia no centro do volante. O ambiente lá fora era todo novidade, se tinha um destino não sabia dizê-lo, devia ter um nome, pai e mãe, colegas, se calhar um namorado (filhos?), mas não conseguia. Nada. Começou, naturalmente, a chorar. Da mala tirou o telemóvel, a última chamada dizia Mami, achou má ideia ligar-lhe neste estado. A seguinte dizia Tó. Ligou e esperou em silêncio.
[o leitor pode agora optar entre um destes Tós, o final não será influenciado pela escolha]
Tó 1 - Então, caralho?! Estou à tua espera cheio de fome há horas. Onde é que te enfiaste?
Tó 2 - Olá, môr. Tás onde? Que tal o dia?, bem, já me contas, começo o jantar?
[continuemos]
Desligou o telefone sem dizer nada e ligou o carro, um Sprint vermelho que o pai lhe tinha oferecido quando fez dezoito anos. Arrancou, deu o jeitinho que a segunda precisa para entrar e seguiu para casa. A memória voltou com a voz do marido, mas sem estrondo, sem choque, sobressalto ou qualquer sensação transcendente. Chegou a duvidar do que se tinha passado. Fez o caminho sem sorrir e tentou descobrir se existiria alguma forma de, reincidindo, aconselhar-se em antecipação (uma nota na carteira, uma mensagem escrita no telemóvel, alguma coisa) a não deixar fugir a oportunidade, não fazer perguntas, e ir embora de vez com a benção de um reboot.
Mas nada sequer parecido voltou a acontecer em toda a sua vida.
Gouveia
aconteceu-me uma coisa engraçada esta semana. aliás, duas. a primeira foi um suicídio. já é o quarto no que levamos de ano. falei com o meu médico e ele disse que se calhar é melhor ir fazer análises. a ver se marco isso para a semana. a outra, é esta que aqui vai. começou há seis anos, quando vivia em múrcia. todos os dias passava por um alemão sem aspecto de alemão que vivia na rua. cabelo andrajoso, barba de quem é alemão e vive na rua, bicicleta empurrada a braços e carregada de roupas e livros. sentado à entrada de lojas nas horas da siesta do patrão, ou nos bancos em horário de expediente, mas sempre na mesma rua, que era a rua onde vivia o alemão sem aspecto de alemão. a nossa relação passou pela fase da desconfiança mútua, depois pelo aceno mútuo e finalmente pela conversa mútua. nunca lhe soube o nome. das primeiras vezes que falámos peeguntei-lhe donde vinha. num castelhano manhoso respondeu-me: alemán. depois perguntei-lhe o nome. devolveu-me o: alemán. e foi assim que sempre o chamei: alemán. amiúde fazia a paradinha e saía-me um allez, man, ao mesmo tempo do aceno. e ria-me sozinho. nunca me pediu nada. uma noite disse-me: tengo hambre. fingi que não tinha jantado e pedi duas sandes de lombo com queijo ali ao rapaz dos kebabs. o alemán corrigiu-me - não gostava de queijo. há uns dias falei no alemán, por ocasião de uma discussão familiar sobre pessoas que vivem na rua e sobre como é feia (e errada) a expressão sem-abrigo. e ao falar nisso lembrei-me do alemán, do vila-matas que partilhámos, de como está sempre calor em múrcia, de como é possível ser estrangeiro sempre, dos suicídios exemplares, dos kebabs deliciosos e da espanha do aragonés. e pensei no alemán: terá morrido, que livro andará a ler, estará calor em múrcia (está sempre). e onde é que está a coisa engraçada? aqui: ontem, entre os caprichos do tédio e do tinto, encontrei o alemán no google street view. há-de ser feita destas coisas, a literatura.
um tal de joão gaspar
A nogueira centenária e o Cotovelo: notas sobre duas memórias do Oeste
Três sacas de nozes (um interlúdio)
Ainda as lágrimas fáceis se lhe penduravam nas maçãs do rosto, balouçando quais pingentes de um candelabro datado, quando a minha avó abandonou o casal. Levou consigo o minúsculo canário amarelado, cujos trinados me mantinham acordada durante as visitas, a velha Singer de pedal herdada da mãe, as bolinhas de naftalina e todo um conjunto de traquitanas inúteis: recordações, justificava, precisaria de todas e das mais que deixara perdidas nas arcas bafientas do casal. Amontoou os cacaréus à trouxo-mocho num dos quartos do novo apartamento, um rés-do-chão no novo condomínio privado, equipado com piscina, portões automáticos e jovens famílias pretensiosas. Ali, frente à praça da pequena localidade suburbana com acesso direto à autoestrada número um, tentava recriar o caus da querida cova decrépita, lar que a solidão enojada a obrigara finalmente a abandonar.
Por ideias legais, culturais e outras que tais, a maioridade libertava-me da constrição - visitas, quais visitas; no momento em que os dezoito rastilhos incandescentes se fizeram linhas de fumo escuro, trepando o ar sobre o bolo de chocolate rumo ao teto branco da sala, soltaram-se os grilhões com pancadinhas nas costas e beijinhos de parabéns. Mas as visitas mensais mantiveram-se graças a artimanhas várias, explorando os meus desejos, troçando das minhas esperanças despudoradamente. Um ano houve em que eu queria muito ir à Feira de Outubro: chegada ao meu décimo-nono outono, na carteira guardava um orgulhoso cartão rosado que me dizia apta para conduzir os automóveis da garagem e a minha mãe prometera emprestar-me o mais velho se eu fosse com ela visitar a minha avó.
A figura acatitada da minha avó, enrolada num casaco de malha preto, fazia-me lembrar um fósforo ardido, negro e curvado na forma de gancho sobre o seu corpo findo. Abriu os mil trincos da porta e encaminhou a filha e a neta para a sala sem cerimónia, as mãos encarquilhadas apontando para a porta envidraçada como se varressem do ar um cheiro imundo, funesto intruso entre as correntes de naftalina evaporada que vogavam pelo apartamento. Deixei-me afundar no sofá de couro. Remirei as cortinas, velhas amigas adejando ao sabor do vento que entrava pela janela entreaberta, e nelas me fixei enquanto ouvia a conversa à minha direita.
- O marido da Isabel apanhou as nozes todas - a frase foi jogada ao acaso, sem entoação óbvia ou contexto; costume da minha avó, o de atirar insinuações misteriosas, vindas de nenhures, obrigando o interlocutor a redobrar a atenção por medo de lhe ter escapado algum detalhe da conversa. Ao meu lado, a minha mãe estudava o padrão intricado de uma renda.
- O que é, mãe?
- O marido da Isabel - a avó arrastava as palavras, como se ensinasse a filha a falar de novo - foi até à nossa nogueira e apanhou as nozes todas. Tu e o teu irmão não quiseram ir lá apanhá-las…
A renda da cor do marfim tombou no colo exasperado da minha mãe. Uma das agulhas rolou pela coxa esquerda e caiu na tijoleira escura com um retinir nervoso.
- Ó mãe, eu e o mano trabalhamos e temos família! E nenhum de nós se ia meter lá, no casal, assim de corpinho bem feito para apanhar nozes. A mãe já viu a altura das ervas? Já imaginou a quantidade de carraças que lá deve haver?
- O marido da Isabel já as apanhou, pronto. Três sacas: - esticou três dedos enrugados e deixou-os frente ao cenho franzido da minha mãe, quais espectros bruxuleantes - uma para ti, - baixou o anelar -, outra para o teu irmão - baixou o dedo médio - e outra para a Isabel, já que o marido teve aquele trabalho todo e eu não quero ser ingrata - disse isto de olhos fechados, abanando a cabeça num vaivém dolorido até encostar o queixo ao peito, com uma solenidade despropositada.
A minha mãe olhou para mim, deitou a língua de fora, fez uma careta. A avó acordou do curto transe para arriscar uma ordem.
- Não te demores é a ir lá buscar a saca.
- Ó mãe, já lhe disse que isto não pode ser como e quando a mãe quer!
- Então e a miúda, não pode lá ir?
As duas gerações, profecias do meu destino num espelho turvo, remiravam-me de alto a baixo; ou ver-me-iam pela primeira vez, menina-dona, espinha longa para chegar às panelas da última prateleira e ancas parideiras.
Fui buscar as nozes na véspera das primeiras esperas de touros da feira.
S. White
Ask me. I won’t say no.
Não te vais calar, pois não? Isto vai durar a noite toda sem que tenhas coragem de sair, abruptamente, sem aviso prévio. Sem que recorras a uma conveniente ida à casa-de-banho. Ou sem que lhe digas, olhos nos olhos, “se te calares neste preciso momento, durante dez minutos - não é pedir muito, dez minutos, pois não? – prometo não gritar CAAAALA-TE!” És demasiado educado. Ou, apenas, educado. Ou demasiado cobarde. Sempre foste um tipo certinho, tu. Incapaz de levantar a voz em público. Lembra-te que não estás sozinho com esta criatura. Estás num bar merdoso, numa zona merdosa, a beber um gin manhoso espanhol, daqueles fabricados num subúrbio madrileno. São onze da noite. Só aceitaste estar ali, com a criatura, porque esperavas poder vê-la. Ela costuma ir ali, às quartas. Hoje é quarta. Mas hoje não. O que é que ele está a dizer, agora? Ah, fala de jazz. “Já o disse várias vezes: o Coltrane obliterou o Webster”. A sério, meu estúpido de merda? “Obliterou”? O grande Webster? Exercício lúdico: imagina, de forma educada, claro, o travelling do teu punho na direcção daquela cara. Uma pancada seca capaz de lhe obliterar transitoriamente o dom que Deus, em momento desinspirado, lhe concedeu: o de poder exprimir aqueles fantásticos pensamentos pela palavra. Pow. Lindo. Estás a querer enganar quem? Serias incapaz. Não é o teu “estilo”. Há um “estilo”, está a ver?, e esse não seria o teu “estilo”. “É a vanguarda que rasga, que redefine, que agita. Eh pá, que revoluciona!”, prossegue a criatura. Qual é o tema, agora? Deve ser cinema. Ou “literatura”. Ou o diabo que o carregue. Desvias o olhar do balcão. Olhas para a porta, que está aberta. Está calor. Lá fora, o vai-e-vem de noctívagos. Uma vaga habitualmente densa àquela hora da noite. Ela acaba de entrar. Caramba: tão bonita. Vai dar início ao jogo “não-quero-que-ela-repare-em-mim”. Vai correr bem. Ela não vai reparar em ti. A tua timidez congénita não te vai deixar ficar mal, meu querido. Até a presença do anti-webster te vai parecer útil. Acabaste a bebida? Pede outra. Tenta outra mistela. Ela está a falar com alguém. Um gajo qualquer. Sentou-se ao seu lado. Tudo bem, calma. “…e é assim, percebes?” “Assim como?”, perguntas. “O verdadeiro cinema, pá. O cinema de autor. Não estás a ver?” Não, não estás a ver. Não queres ver. A única coisa que queres ver está sentada com um gajo, a uma mesa. Estão a rir. Chegou a tua bebida. O primeiro gole. A mistela é uma mistela, mas é uma mistela fresca. Está calor, sabe-te bem. Voltas a observá-la. Reparas que ela se levantou e parece vir na tua direcção. O teu ritmo cardíaco. It don’t mean a thing if it ain’t got that swing. Espera: estás no percurso que conduz ao duplo vê cê. Ela passa por ti. Será que ela alguma vez reparou em ti? “O cinema português… o Costa, a Villaverde… agora a Varela, estás a ver?” Perfeitamente. Ela regressa. Volta à mesa. Reparas que ela colocou a mão sobre a perna dele. Ele sussurra-lhe qualquer coisa, que a faz sorrir. Levantam-se e saem, de mãos dadas. Bebes o resto da tua bebida, de um só trago. Não te estás a sentir bem. “Pá, em boa verdade, o que era o cinema antes do Scorcese ou do Coppola?”
Pow.
MacGuffin
O amor é uma desculpa para tudo
Sabem quando acham que tiveram uma grande ideia e investem nela tudo quanto possuem?
É assim, quando as coisas começam a correr mal, os avisos dos amigos transformam-se em "bocas" de invejosos, as evidentes deficiências de concepção e/ou implementação são afinal idiossincrasias fundamentais, insusbtituíveis e "que adoramos", e os primeiros insucessos são imediatamente atribuídos à má fortuna ou a teorias da conspiração e da incompreensão. Tentamos sempre uma outra vez, mais uma vez, agarrados a uma esperança infantil qualquer. E quando, por sorte ou força de vontade, tomamos consciência do erro em que incorremos, é muitas vezes demasiado tarde para o reverter.
Nunca é demasiado tarde? Deixem-me rir. Todas as teorias sobre como fazer amigos e influenciar pessoas, ou o que nos dias de hoje passa por sucesso individual, omitem o factor tempo por conveniência argumentativa. O tempo é entropia, e estabelece momentos apartir dos quais é necessária demasiada energia para, ou em que é mesmo impossível de todo, voltarmos atrás.
Ora, o amor é tal e qual uma grande ideia, e o texto que eu queria publicar em vez deste também era.
r0w74g
(...) Quando o mal e a beleza por ele criada se conjugam numa esterilidade excepcional já não há como dissociar o princípio da exclusão do princípio da entrega, dessa mancha vincada que nos afasta do mal unicamente para melhor sucumbirmos a ele. Por isso o mal é mais transparente e apesar disso menos eficaz na loucura e na infância, entre as crianças e os perturbados, entre o mal que se dissipa e o que se economiza. (...)
(...) O mal, considerado desde uma perspectiva puramente formal, é só a ligação entre objectos de modo que um deles ponha à mostra o intervalo e não simplesmente a ligação. Mas só a morte é uma higidez que rompe a evidência inteira pela totalidade mesma dessa evidência. Por isso Hitler não é mau por um mal capaz de situá-lo, é antes a submissão a uma tendência como tendência. Para Hitler, ao lado do conjunto dos nibelungos deve existir o conjunto dos cadáveres, e a este devem afluir não só os indecisos, mas as indecisões. (...)
(...) O mal é o que permite aos homens levar adiante uma vontade, sem que nenhum deles a tenha tido. Mas a base cómica do Mal está em que as oportunidades de um mal concreto diminuem a medida que o desejo de um mal concreto cresce. (...)
Peor
Noite de verão
Desci as escadas até à porta entreaberta da casa de banho. Entrei e vi que estava sozinho. Pensava na rapariga do café; contei novamente as instruções a seguir nessa tarde, os passos do plano meticulosamente engendrado durante semanas – o livro, o postal, o guardanapo, a deixa largada ao acaso, a atenção dela. Pensava em todos as coisas como se as visse naquele instante… O estado de concentração que temos quando estamos a mijar é tão absoluto como o sono, pensei, baixando os olhos para o urinol. Então senti uma mão que me agarrava a parte de fora da coxa e, instintivamente, virei-me e vi um rapaz alto e moreno com uma mão dirigida a mim, a outra acariciando a virilha. Os seus olhos chispavam, sedentos; aterrorizaram-me. Gritei um “questamerda” como pude, atrapalhado e idiota, mas bastou para ele se afastar. Compus-me de qualquer jeito e desatei a correr escadas acima. Lembro-me que ainda o tentei empurrar, mas não passou de uma placagem simulada – tive medo que, ao fazê-lo, ele me agarrasse com aquelas mãos e com aqueles dedos.
Era o prelúdio do meu outono de romantismo. Tinha ouvido rumores das casas de banho do shopping, nos quais nunca acreditara. Com o movimento que lá havia era impossível acontecer tal coisa. “Impossível”, repeti alto, e revi a cara dele deformada pela tusa, os olhos desgovernados, a língua contorcida, nojenta. Quis ter o mar à minha frente para mergulhar no rebentar das ondas e lavar-me daquilo tudo. Mas estávamos já em Outubro, o tempo dos dias de mar acabara. Era agora o tempo dos dias perdidos em aulas e outras frustrações. Fiz por esquecer aquele episódio.
Andava desde o ano passado atrás de uma rapariga que se sentava sempre com uma amiga a estudar num café de Cedofeita. Estudava Direito. Tratava os códigos de forma bruta, mas aos livros que lia nos intervalos dedicava uma imensa ternura. Gostava dos novos autores africanos e brasileiros, reconheci pela capa dois romances do Chico Buarque. Era morena do sol de verão e dela própria. Tinha um ar de índia americana e o riso vivo e franco, sempre à espreita por entre um sorriso gentil. Da amiga nem sei que dizer, mal a via naquela mesa junta à minha
Apesar de todos os planos esboçados com minúcia, nunca tentei sequer um gesto ou uma frase para a conhecer. Bastava-me passar ali o meu tempo. Ia lendo e estudando, como ela, mas nunca pedia chá: ela tomava sempre verde, ou de cidreira, gelado no verão. Eu pedia café, e ouvia canções do Chico Buarque na esperança que a frequência privada dos meus auscultadores capturasse a atenção dela: sonho de mulher em noite de verão / por que é que você veio me perder / quer se divertir fingindo me adorar / ou fingir se enganar me amando pra valer.
Nada acontecia e o acaso, com a sua fama salvífica, tardava em dar o mais parco sinal de ajuda (nem sabia bem o que esperar dele, na verdade). Os dias passavam e o romance idealizado, apesar de bálsamo do espírito, só tem graça em modestas doses diárias. Um homem tem outras necessidades, motivações e privações, como diz a canção. A espera é contra-natura.
Certo dia, uma rapariga da minha turma chamou-me, cantando baixinho mas com claríssima nitidez, ao engate. Nunca me despertou a paixão consagrada que sentia pela índia. Mas era perfeitamente adequada, fora isso, e até bonita. Namorava com um rapaz da faculdade ao lado, estavam juntos há três anos. Esse facto, porém, não a condicionou. Foi até mais fácil do que ao início me pareceu – ela tinha já alguma experiência, adquirida de outras tantas canções. Trocámos número de telemóvel a pretexto de um trabalho que nenhum de nós faria, sabíamo-lo. Dei início à troca de mensagens da praxe e, numa tarde, já acertávamos os detalhes da operação.
Mesmo estando já acostumada, ela insistia em percorrer todos os clichés protocolares (ou, melhor dizendo, anedóticos) deste tipo de coisas. Fui buscá-la a uma paragem de autocarro a meio caminho entre a casa dela e a faculdade, às onze horas em ponto. Trocámos algumas histórias circunstanciais para que ela, com calma e destreza, aproveitasse para me explicar “a situação”, garantindo assim meu inviolável compromisso para com o segredo daquela noite. Tranquilizei-a enquanto seguimos para a Via Norte, rumo ao motel mais foleiro dos subúrbios, que ela insistira que escolhêssemos. Naturalmente, fui eu que paguei. Caminhámos em silêncio para o quarto. Ela entrou primeiro, acendeu a luz. Eu fechei a porta, trancando-a com duas voltas.
À vinda as palavras eram mais fáceis pelo torpor dos corpos saciados. Deixei-a a uns quarteirões de casa. Pediu-me um beijo final, demasiado demorado para o que seria o protocolarmente previsto. Quando a vi dobrar a esquina voltei a saborear o momento em que fechara a porta do quarto na certeza de, mesmo que só por umas horas, mesmo sem a solenidade do romance, a nossa enorme insegurança, compartilhada e compreendida pelo outro, permitiria que do cumprimento habitual do desejo provássemos um instante de calor sincero. Nessas duas ou três horas, a maresia de Junho brotou naquela noite fria, cumprindo também desta vez a promessa que lhe fizera.
Lembrei-me de como, umas semanas antes do verão, a índia desaparecera de Cedofeita sem deixar um qualquer aviso, mudando-se com a amiga para uma praia da Foz ou de Leça. Aproveitei para dar férias ao café da rotina e mudei-me sem ainda ter novo pouso – erro grave a meio de uma época de exames, diga-se.
Felizmente, numa das tardes mais longas do ano, uns amigos decidiram improvisar um lanche nos jardins do Palácio. Levei alguns bolos, ainda quentes, de uma confeitaria perto de casa que eu fazia por manter em segredo do mundo. Encontrei-os sentados no chão relvado junto ao miradouro. Foi aí que a conheci.
Eles não sabiam pronunciar o nome dela, chamavam-lhe “a croata”, e ela não se importava. Por mais que esforce a memória, nunca se tornará nítido o semblante dela sem o banho de luz do sol poente que, reflectido pelo rio, derramava sobre nós a sua calda dourada. Nela, com a tez das mulheres mediterrânicas, o resplendor era magnífico. Nervoso e não me sentindo preparado para a contemplar, fui bebendo em absolvição minis atrás de minis. Pouco tempo depois, teve o efeito que esperava: quando a noite finalmente caiu sobre a cidade, continuei a vê-la com a cor e a glória do sol de Junho. Soube então que era a sua última noite no país, que dentro de algumas horas estaria a atravessar a Europa. Quando ela se afastou para se ir debruçar uma última vez sobre a varanda do miradouro e dizer adeus ao rio, à ponte e ao mar, juntei-me a ela no corrimão, sem a perturbar. “Ó Croata!”, chamaram-na, interrompendo a sua paz ritual. Reparou em mim e riu-se, aproximando-se. Era já noite. A luz fugia-lhe da pele. Quando vi a última gota de sol rolar-lhe pelo pescoço, em linha incerta, rumo ao ombro descoberto onde se despenharia, por instinto de socorro beijei-a, segurando-a nos meus lábios. A sua pele salgada sabia a mar. Senti então a sua mão pousar na minha cabeça e encostá-la ao peito. Ela quis que aquele fosse o último gesto de ternura antes de voltar à sua terra. Eu prometi-lhe que aquele seria o instante que me acompanharia nas noites frias quando o verão terminasse.
beije-me outro beijo uma outra vez / que importa se estes beijos não são meus / que eu só tenho esta noite de favor / nos braços de uma atriz.
Amory
Meu caro amigo Gouveia,
Venho confessar, publicamente, um desejo envergonhado que o breve policial aqui publicado há dias me despertou. Sou, aliás, adepto do policial. Gosto do meu policial como gosto do nosso Benfica - vivo e com ânimo. Talvez por isso, desde muito cedo que defini as minhas prioridades de leitura. Sempre achei que fosse pela temática. Mas, não há muito tempo, ao reler o Dennis Mcshade (um abraço, meu querido, que tantas saudades nos deixas - como diria a Sra. Dona Simone), percebi o que realmente me atraía: não é o policial em si, mas sim a tradução. Isso mesmo: a tradução. Fico perdido de amores pela literatura traduzida. Corro para ela e leio em voz alta e digo as frases com os nomes noutra língua. É um entusiasmo que nem consigo, sequer, explicar. Quase infantil, como um miúdo que vai a correr para casa desejoso pelo brinquedo novo, ou como um adolescente enamorado, dou por mim em ânsias. E a verdade é que o génio de Mcshade deixou-nos a mais preciosa das heranças - escrever como se fossemos um autor traduzido. Percebi, com isso, que escrever é como brincar. Quando brincamos sozinhos imaginamos mundos que a vergonha não nos permitirá exibir. Mas, ao escrevê-los, ao fazer literatura, inspirados por desenhos animados ou, pelo menos, pela mesma estética das frases, estamos a recriar uma imaginação antiga, de brincar, como naquela canção do Chico Buarque. Assumo, então, a minha intenção em ler apenas literatura traduzida e de passar a escrever encarnando na pele de um autor americano, sentado na sua secretária num prédio qualquer em Chicago, a brincar com as frases e antecipando a necessidade de tradução. Quero lá saber dos clichés. Que alegria tão grande, este desabafo. Só tenho a agradecer. Um abraço fraterno,
jorge c.
(Micções)
− O senhor ouviu e entendeu a acusação contra si proferida?
− Sim, meritíssimo juiz.
− E pretende prestar declarações?
− Sim, pretendo.
− O que tem, então, a alegar em sua defesa?
− Ora, segundo Apolodoro, o calculador, quando Pitágoras descobriu que o quadrado da hipotenusa de um triângulo rectângulo é igual à soma dos quadrados dos lados que formam o ângulo recto, mandou matar cem bois.
− E o que tem o teorema de Pitágoras a ver com o caso?
− Sabe meritíssimo, eu próprio sou professor de matemática, e quando descobri que a minha mulher me enganava com o meu melhor amigo, mandei matar duas bestas.
EVN
Os únicos momentos autênticos da vida acontecem quando a cabeça resvala pelo encosto até à janela do autocarro, onde a vibração da viatura quase rouba o sono durante o tempo de procurar o conforto e novamente adormecer. É nessa fronteira que está a verdade, apenas proferível num sonilóquio que a conjugação do esquecimento (do emissor) com o respeito (do recetor) apagará antes do fim da viagem. Eu nunca soube que a disse, tu nunca saberás quando a esqueceste. Perde-se como se nada fosse, primeiro, e depois como tudo se vai, por entre eucaliptos que se debatem com o nevoeiro ou no deambular do senhor arrastado pela mão por uma bola de berlim. Ocidental, com creme, através do hangar e do cheiro a gasóleo, em busca da saída ou de um bilhete de volta. É para isso, para perdermos os sentidos na sua travessia, que servem as fronteiras. É por isso, e não por culpa da ciência, que a verdade só é maiúscula quando a gramática o exige. Foi para esse efeito, sob o pretexto da mobilidade, que se inventaram os autocarros e as linhas de alcatrão. Nós, ignaros, é que somos incapazes de usar tudo aquilo que nos dão.
E.
Baum, noir.
A cidade acorda lentamente, vista da janela do meu escritório. Só as torres ao fundo reflectem o Sol que se levanta. Quiosques fechados com os jornais no chão apertados com guita, cobertos por plástico. Parou finalmente de chover. Sacos de lixo pretos amontoados às portas. Sento-me com dificuldade e rodo no telefone o número da minha secretária Jennifer, mas ninguém atende. Já deve estar a caminho com o meu Correio da Manhã, como habitualmente. Por uma vez podia não ser tão infalível. É melhor limpar o sangue, vai fazer disto um bicho de sete cabeças. Devo ter para aqui um par de camisas limpas numa gaveta. Estranho que o cinzeiro infecto que habita solitário a minha secretária esteja ainda cheio do dia anterior, não é coisa que costume escapar a Jennifer, mas aproveito uma beata mais generosa e acendo-a com um fósforo da carteira que trouxe do hotel. Ela soube desde o princípio que era má ideia aceitar este trabalho, mas a Sra. Durant não é o tipo de mulher a quem um palerma como eu saiba dizer que não e quis acreditar que era tudo inofensivo. Umas horas nos sofás de um par de lobbies, três ou quatro perguntas a uma empregada de limpeza bem escolhida, duas chapas sem flash, recolher o segundo pagamento, e jantar uma mariscada nas docas. Não sou parvo: quinhentos contos por um gig de inconsistência conjugal era demasiado. As lágrimas cirúrgicas eram demasiado, aquele vestido às nove da manhã era seguramente demasiado. Quando o corpo do Sr. Durant foi encontrado no dia seguinte, com certidão de óbito prontamente emitida - enfarte agudo do miocárdio -, Jennifer olhou-me com a certeza de que eu seria suficientemente esperto para devolver sem mais perguntas as duzentas e cinquenta mocas da adjudicação, mas há momentos em que a minha estupidez é de uma eloquência invulgar. Não consigo apertar os botões, e, de qualquer forma, já sujei a camisa nova. Sirenes - suponho que é comigo - parecem aproximar-se, mas talvez seja cedo ainda. Até há duas horas achei que a culpa de me ver neste nó era exclusivamente da nova porteira de um velho bar pós-modernista que aparentemente não me conhecia, mas esse alibi, que nem era para mim, devia ter sido mais bem trabalhado. Suponho que já encontraram a Sra. Durant, ouço as sirenes agora na rua, anseio por um doppler que não acontece, o som termina, a porta do prédio abre, o velho elevador desce vazio a pedido. Tinha esperança que Jennifer chegasse antes deles.
Gouveia
[com título]
o homem escondia a careca sob o chapéu e vestia garbosa gabardine. manda a leiteratura que a rua fosse esconsa. à frente o vulto de um casal, homem feio, mulher bonita, ambos de passo apressado e inútil. o revólver deu a ordem e o casal enfiou-se no beco. tiro à queima-roupa fulminou o macho. já a macha, desnuda. depois violada. para poupar balas, o careca saciado cortou-lhe a garganta com a faca que tinha roubado de manhã ao ramiro do talho. guardou a pistola, limpou a faca à manga da camisa e sentou-se junto ao contentor do lixo. antes de partir para a próxima caçada da ronda, saboreou um cigarro. passou a polícia e o careca foi preso, pois não se podia fumar ali.
um tal de joão gaspar
A nogueira centenária e o Cotovelo: notas sobre duas memórias do Oeste
A nogueira centenária
A ossada daquela instituição familiar, espinhaço sólido e orgulhoso, a corda de memória ligando o passado de cor e vida ao presente nublado da velhice, fazia-se representar pela nobre nogueira centenária; a nogueira que sobreviveu a mais de um século de guerras, revoluções e beijos roubados entre as suas folhas, que superou o bombear vital do homem que a plantou, dos filhos que a herdaram, dos netos que a esqueceram e dos bisnetos que trepavam pelos seus ramos compridos e robustos: sem maleita ou moléstia, a árvore caminhava por sucessivos pretéritos, resoluta na missão de chegar sempre ao presente seguinte. Sob a copa daquele vulto atarracado descansavam os rafeiros do meu avô, uns animaizinhos nervosos treinados para rastrear lebres, prontos a mostrar as gengivas sempre que alguém se aproximava do portentoso tronco, o lavabo da natureza, a murada que os protegia dos elementos, a fiel amiga na noite escura.
Histórias do passado; hoje, para evitar perder os detalhes daquele assombro vegetal, pego no carro e faço-lhe uma visita. Entidade imutável, esta velha juglandácea, que vai testemunhando o lento definhar das casas que viu erguer: uma adega seca, um estábulo nu de vida, casas de arrumos apinhadas de charruas ferrugentas e outros utensílios mortos. O tempo passa em vagas impiedosas, arrastando consigo os destroços dos meus antepassados, mas a nogueira sobrevive como um cinto imperioso, contendo este globo achatado, assoberbado de vida e de mudança. Fortes raízes celulóticas, cheias de nós e cicatrizes, irrompem da sua sombra protetora espraiando-se em redor, como monstruosas caudas de quimeras, quebrando o alcatrão da estrada e desalinhando a direção das viaturas mais distraídas. Do tronco gordo e nodoso cujo diâmetro escapa aos meus braços, partem ramos vastos, braços escuros onde brotam folhas empoeiradas e frutos ovalados, primeiro guardados por mesocarpos verdoengos e mais tarde nus, beges, riscados pela sombra das suas próprias reentrâncias desidratadas.
Aquelas nozes enchiam os sacos do pão das crianças que tocassem à porta dos meus avós nas manhãs de Finados e faziam rebentar os bolsos dos meus vestidos durante o resto do ano. Quando o outono espreitava, ajudava a minha mãe a empurrar uma pesada saca de sarapilheira cheia de nozes para dentro do porta-bagagens. No esforço, algumas escapavam da saca e atingiam o alcatrão com pequenos baques ocos; rolavam em trajetórias excêntricas para o meio da estrada e eram pisadas pelas rodas colossais dos camiões - sobravam apenas os seus rastos, macerados na escuridão do asfalto. Pouco importavam, as casquinhas esmigalhadas: tantas, tantas nozes lhes sobreviviam, bebendo o sol nas tampas de bidões metálicos, cheios de água para regar as couves, ou estendidas em tabuleiros, sobre a tijoleira alaranjada dos alpendres de minha casa.
Depois, o meu avô morreu. A nogueira pouco se importou.
S. White
O gordo
Eram as férias grandes. Tínhamos por hábito acordar cedo, meio excitados com o caderno de actividades que o conclave ditava no dia anterior. Após o pequeno-almoço, tomado a correr, o ponto de encontro era o habitual: à sombra do álamo que pontuava a placa triangular ao topo da Rua de Santo António. Todos sabíamos que queríamos estar ali o quanto antes, embora, invariavelmente, o gordo fosse o primeiro a chegar, com as suas jardineiras Lois e as suas sapatilhas Adidas, último modelo. O gordo era rico. Sempre que estreava um par de sapatilhas, o resto da malta competia para ver quem primeiro conseguia conspurcar a imaculada e germânica brancura. De início, as desengonçadas tentativas de fuga do gordo conferiam ao exercício um pico de comicidade muito apreciado. Com o passar do tempo, veio a estabelecer-se um acordo tácito que facilitava a fatal pisadela, embora lhe retirasse alguma da graça: “tratem lá do assunto para podermos seguir em frente”, dizia-nos o olhar do gordo.
O nosso gordo era em tudo diferente do gordo da avenida, também conhecido como “a besta”. Desde logo, a fisionomia: a camada adiposa do gordo da avenida era firme, conferindo-lhe um aspecto de gladiador. Gozava de um mau feitio descontrolado, apenas comparável com o estúpido do rafeiro do professor Velez, cuja apetência para morder elementos autopropulsados de forma aleatória (sobretudo pessoas) era já lendária. Ninguém ousava desafiar pessoalmente o gordo da avenida, muito menos contestar o controlo territorial que o mesmo exercia na sua coutada, a oeste. Além de que, dizia-se, o pai do gordo da avenida era má rês. Não senhor: o nosso gordo era uma paz de alma, um saco de pancada, o alvo preferencial da “dinâmica de grupo”.
No grupo, para além do gordo, mas por razões inversas, destacava-se o Marcelo. Era o mais destemido e o tipo com maior sucesso entre as raparigas. O único, aliás, com algum sucesso. Um episódio passado envolvendo bombas de carnaval, que quase o tinha deixado sem os dedos de uma mão, havia revelado um estoicismo que a todos, sem excepção, tinha espantado. O “mártir das bombas.” De olhos verdes e cabelo castanho controladamente despenteado, o Marcelo era um tipo com pinta. Se não era o líder, andava lá perto.
Naquela manhã, arrancámos na direcção da mítica “ladeira da Boa Morte.” Duas Órbita Ginga, uma Esmaltina Fúria (caixa central de três velocidades), uma Confersil com guiador de corrida e uma Vilar com uns alarves pneus Turino 500, compunham o ramalhete. Não havia uma única nuvem pendurada no horizonte. Ninguém levou comida: todos sabíamos que iriamos debicar as árvores de fruto da quinta do velho que vendia cal, odiado por todos sem apelo nem agravo. Regra geral, o gordo era enviado em missão de reconhecimento, não tivesse o velho deixado os cães à solta. Se o gordo gritasse, era mau sinal. Mas naquela manhã não houve gritos e a colheita foi farta.
Passámos a ladeira com o objectivo de explorar a ribeira que, mais à frente, confluía com uma azinhaga que já havíamos percorrido, mas não tão longe. O sol e o céu estavam brancos de calor, o que nos levou a procurar a sombra de uma pequena ponte, que estabelecia a ligação entre as duas margens num ponto em que o leito alargava consideravelmente. Deixámos as bicicletas ao sol, lá em cima. Como sempre, o gordo estava em muito mau estado: suava abundantemente e parecia não conseguir recuperar o fôlego. A malta achava divertida, aquela manifestação de exaustão carmim. O Marcelo tinha, entretanto, passado para a outra margem. Passado uns minutos, chamou-nos. Pelo tom, percebemos de imediato que havia encontrado alguma coisa. Encontrava-se agachado, junto a uma espécie de taleigo. Alguém, lá de cima, tinha atirado aquilo. O Marcelo desapertou o cordel e abriu o saco. Do seu interior avistaram-se seis cachorros, recém-nascidos, mortos. Ficámos sem palavras. Nunca, ninguém, tinha visto aquilo. Passaram-se minutos sem que alguém fizesse alguma coisa. Ainda abaixado, o Marcelo começou a retirar os cachorros, um a um. Estranhamente, o gordo quebrou o silêncio: “Pára com isso”. Como habitualmente, ninguém lhe ligou. O Marcelo começou a mexer num dos cachorros, como que a examiná-lo. “Não ouviste? Pára com isso”, repetiu o gordo. O Marcelo continuou, erguendo um dos cachorros no ar. Sorrindo. O gordo precipitou-se sobre ele, empurrando-o e fazendo-o cair. “Não vês que estão mortos!?”. O Marcelo levantou-se com o intuito de o enfrentar. Mas naquele dia, naquela hora e naquele minuto, pela primeira vez o gordo não recuou. Não baixou a cabeça. Não se desviou um milímetro. Alguma coisa tinha acabado de acontecer. O habitual desequilíbrio de forças tinha sido posto em causa. Os olhos do gordo estavam rasos de lágrimas. Todos se aperceberam da enorme carga emocional e da tensão que aquele corpo parecia estar a conter. Algo de muito forte marcou aquele instante, algo que, até hoje, nunca soubemos explicar e sobre o qual não voltámos a falar. Duas grossas lágrimas percorreram rapidamente a cara do gordo, mas a expressão não indicava choro. Apenas determinação. Ao fim de uns segundos, que pareceram uma eternidade, o Marcelo recuou. O gordo afastou-se dois metros e ajoelhou-se. Começou a abrir um buraco com as suas próprias mãos. Ninguém pensou em ajudar o gordo porque ninguém ousou fazê-lo. De seguida, enterrou, um a um, os cachorros. Nesse dia, e por sua escolha, o gordo regressou sozinho a casa, primeiro do que todos nós.
Durante vários dias, não o vimos na rua. Pensámos que tinha adoecido. Ou viajado. Mas não: avistámo-lo ao quarto dia, na bicicleta. Aparentemente estava bem. Mas o gordo tinha morrido.
MacGuffin
Voo rasante
Por várias vezes vezes várias tias avisado, não se podia dizer que não estivesse consciente desse perigo desde tenra idade. “É o outro lado da moeda da beleza”, diziam-lhe. Naturalmente rebelde e preguiçoso, não deixava de prestar atenção aos avisos e conselhos dos mais velhos mas ao mesmo tempo pensava “Que posso eu fazer? Tudo o que começa tem um fim e já não fui eu que decidi este começo”. Para agravar a situação, sempre tinha desprezado essa característica tão louvada precisamente por o ser, embora tivesse noção de que não estava na melhor posição para a avaliar. “É, no fundo, apenas uma questão cultural”, julgava ele.
Até que certa manhã, uma névoa clara pairava insistentemente sobre o azul dos seus olhos. Uma névoa que se foi tornando cada vez mais difusa e impenetrável com o passar dos dias. Consultou um médico, estava a ficar cego. O azul outrora atlântico, de tão profundo, intenso e cheio de vida, estava agora demasiado ralo para o brilho ofuscante deste néon publicitário a que chamamos Mundo. Foi tudo o que conseguiu perceber da caligrafia do médico, se ao menos os oftalmologistas…
No inicio, fez como as crianças quando descobrem que o que é bom dura pouco, e tentou poupá-los. Por isso, dormia horas imensas, eternidades, ainda mais do que quando estava a trabalhar. Mas cedo foi forçado a abandonar esta solução, pois os outros órgãos reclamavam o seu direito a funcionar e a viver, ameaçando-o de morte.
Voltou à receita médica com novo fulgor de decifração e lá percebeu que seria necessário sacrificar a imagem que os outros têm de nós pela imagem que nós queremos, e precisamos de, ter deles. Foi comprar uns óculos e, tinha de admitir, era tudo muito mais prático.
Mas a névoa permanecia, e o medo também. A sua vista começava a assemelhar-se àquelas senhoras idosas que se sentam o dia todo à janela, observando a rua. Algo se interpõem entre elas e a rua, tal como ela é. Às vezes, é a mesma rua onde viveram toda a vida, e junto às cortinas brancas da varanda da sala ou do quarto, esforçam-se por tentar perceber o que lhe está a acontecer agora, levantando-se e sentando-se na cadeira como quem semicerra os olhos para ver melhor. De um lado e de outro da rua, estas senhoras vêem-se umas às outras por detrás dos vidros mas não recordam as histórias partilhadas da juventude, já não se reconhecem. “Vestem as suas melhores roupas neste ritual diário, por respeito pelos mortos, por respeito ao Passado”, pensou. “Mas eu não sou velho e tudo o que preciso é de um novo foco”, disse. “Um novo começo, desta vez decidido por mim, e lá vou eu.”
E saiu de casa para ir comprar outro par de óculos. “Um mais chique”, disse ele.
rwtg
A morte e a imortalidade. A aproximação, o golpe, os respectivos rituais, o espanto, o luto, e o fim que significa a primeira - e toda a falta de sentido que ela traz à segunda. Os fragmentos góticos são também juvenilia (palavra que aqui pretende significar o que foi escrito antes dos 25 anos) e fui eu que os escrevi. Há uma certa autonomia em todos eles (escrevi bastantes mais) - a selecção, a coerência, a configuração defini-a (ou melhor, encontrei-a) a posteriori, mas hoje parece-me a melhor. O verso em itálico é citação, ou roubo. No que diz respeito à imortalidade, decidi traduzir o poema A Night Fragrance do W. S. Merwin. Este poema não ironiza tanto com a ideia de imortalidade como com o seu uso fora do jogo de linguagem metafísico (e nisso é muito wittgensteiniano), mas acho que faz sentido publicar a tradução em simultâneo com os fragmentos - não como apêndice ou anexo, mas por afinidade temática, por assim dizer. Esta introdução, devo por fim acrescentar, obviamente não a faria se não estivesse a publicar num blog. E desculpem o tom solene (amanhã soar-me-á ridículo, por certo), mas estou muito, realmente muito, cansado, e meio bêbado, e neste estado acho sempre por bem inserir toda a prudência entre cada palavra.
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(Juvenilia)
Fragmentos Góticos
I.
Dias odiosos teimam em pairar.
Não batem à porta: entram, instalam-se, e não saem.
Dias solitários e odiosos teimam em pairar.
II.
Cumpro a encíclica do terror
Ignorando a justeza, o rigor doutrinal
Confirmo a fé no redactor
Num devaneio espiritual.
III.
A seiva expectante coagula
No dia morno que fenece.
IV.
O tordo poisa distraído
No galho periclitante –
A folha não resiste à intempérie
E estala, como casca de ovo,
Sob os meus pés.
V.
Ao abrir o portão senti o mistério
Murmúrio de hálito chamuscado
Incenso que voga pelo cemitério
Onde os mortos renascem com o emblemático
Propósito de morrer outra vez.
VI.
Não mais tomar olhar terno por fraqueza
Ou sorriso inocente por irrisão;
Mas dos turvos semblantes ressoava simulada tristeza
E para essa ignóbil gentileza não há perdão.
VII.
A sólida estátua não ganha vida
Nem a impotência se ultrapassa
Ou assimila.
VIII.
Conhecer a implacável finitude
Do que julgamos perene
Quando nasce.
IX.
É Verão, o fruto está maduro
E a terra é leve para a enxada.
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Uma Fragrância Nocturna
Hoje sou velho o suficiente para me lembrar
de pessoas falando de imortalidade
como de algo que soubessem existir
uma substância tangível que pudesse ser adquirida
para ser usada talvez na cozinha
todos os dias o que quer que façamos lá
para todo o sempre e eles aplicaram a palavra
à literatura e a nomes de coisas
nomes de pessoas e nomes de outras
coisas por eles e sem dúvida repetiram
essa palavra com algum elemento de crença
quando nomearam uma classe de mais de
uma centena de espécies de árvores e arbustos tropicais
alguns com flores mais fragrantes de noite
segundo James Theodore Tabernaemontanus
de Heidelberg físico e botânico
altamente conceituado na sua época há mais de
quatro séculos a imortalidade
talvez seja como as espécies disseminadas
continuando as suas variadas evoluções
com flores que se abrem de dia ou de noite
sem conhecimento de que carregam o nome
de alguém e a sua fragrância se
recorda de todo algo não o recorda a ele
W. S. Merwin
(pmramires)
Caderno listrado - carretéis, 16
O branco solta-se do céu e desce. Faz desaparecer à margem centenas de eucaliptos. Subo o zíper da jaqueta e inclino a cabeça. Vejo brilhar o céu embaixo da água, como uma bolsa de pus. Cada bolha que se choca ao casco é a terra inteira, redonda e sobrecarregada de homens. Viro a cabeça. Ao longo da amurada, a bombordo para os homens e a estibordo para as mulheres, as barracas de banho. O cheiro é forte. E não depende de nenhum superlativo para ser qualificado com exactidão. Peixe e mijo. Ela veio, a suave decomposição de uma aresta em arco. Tenho os cadarços vocais quase a dizer que o octógono é um outro estado do círculo. No fundo, posso sentir (e é uma sensação puramente geométrica): os dois comprimidos de fluoxetina a boiar no intestino já falam por si e falam alto. Agora sou a garrafa que atirei ao rio pela manhã; sinto o ar entrar pelo gargalo. E em um passado bem próximo, ontem, talvez, ou daqui a pouco, poderemos todos voltar a afirmar que se a lua orienta os barcos, é sem saber. Por enquanto, o nevoeiro espalha-se, suga uma vaca, ao fundo. Próximo às pedras, a água por cima é um cacau a ferver. Não a ouvimos. Atrás, um diadema de folhas avulsas e cheias de dobras. Pronto, vislumbra-se uma cabala, é a nossa sentença de morte - e a terra, se não se descobre, também não se cobre mais. Antes resvala na morna incandescência dessa úvula. Para lá a cidade espeta, morde, arranha, grita, em uma palavra, moderniza-se. As casas, para decepcionarem, basta que se mostrem. Verdes, azuis, rosa. Empurram-se, cobertas de anacronismos, dissolvidas pela metade em generalidades que parecem soletradas. A vida instalada sobre um conjunto infinito de estacas jamais é elíptica. Ela anda. Encadeia. Temos a impressão de estar a "ouvir" com os olhos. Os andares, empilhados três a três. Tudo está sob redoma. Rasura os sentidos. E entre dois regos pontilhados de habitações complicadas, nem dentro nem fora da água, o rio é um dormitório de cores e essas são uma mancha de topázio queimado, e se afastam sem se mover. Vão para o fundo de uma memória que as está esquecendo. Essa constante defasagem. A evocar em duas ordens sensíveis um mesmo braço de rio (na medida em que ele, e os outros em seu rasto, recusam-se a aceitar servir-nos em parte de caução e em parte de passatempo). Assim a espécie humana - ou, quem sabe, o Processo Histórico - se retrai. Volta a ser um laço de enforcado, amarrado à Lavallière. A única Venezuela que soube encontrar.
Peor
Tenho sempre esperança que aconteça alguma coisa. Não me lembro, aliás, de ficar tanto tempo num lugar à espera de um acontecimento espontâneo e invulgar. Abdiquei da praia, dos passeios ao sábado por Lisboa, de alguns amigos e de outros mundos. Tenho viajado da janela para partes da memória distraindo-me, assim, do tédio da espera. Lembrei-me de pessoas e lugares que há muito se haviam desvanecido, como inscrições na areia. Há, contudo, um conjunto de eventos que persistem como uma dor muscular provocada por um trauma. Quando dois universos que julgávamos distantes se cruzam diante de nós, o choque provoca um impacto nas formas mais racionais da crença. É a este fenómeno que chamamos coincidência - dois ou mais momentos improváveis que coincidem no tempo e no espaço. É o cosmos a funcionar, dir-se-ia. O meu cepticismo sofreria, então, um golpe tremendo quando, certa vez, ouvi um nome familiar descontextualizado. Por causa do apelido invulgar, alguém terá trocado o nome de um amigo, tornando o novo nome numa alcunha. Curioso por conhecer a origem da confusão, questionei-o sobre o seu autor. Apesar da fantasia que uma alcunha impõe, revelou-me que teria sido o pai de um amigo comum, por engano, que lho atribuíra. Nesse momento, julgo ter experimentado o tal abanão cósmico. Ora, o cavalheiro em causa não era, senão, um amigo do meu pai que, por circunstâncias da vida, terá conhecido um outro amigo da minha família na cidade onde nasci, umas décadas antes. O nome do meu conterrâneo e a sua generosidade e simpatia tê-lo-ão marcado de tal modo que, ao ouvir um nome pouco comum, associou a um outro bastante semelhante mas que, para si, soava a algo bem mais familiar. A minha descoberta acabou por não gerar um grande espanto aos demais. Encontrei-me, então, no meio de uma coincidência exclusiva que reunia dois mundos em mim. O meu entusiasmo foi tomado como loucura. Aprendi, deste modo, a guardar debaixo da pele sensações que apenas eu pudesse realizar. Porém, como situações semelhantes não ocorrem todos os dias, passaram-se uns anos até ao dia em que eu e um tal de João Gaspar, depois de um contacto para relação literária conjunta, sem compromisso e com termo, concluímos que as nossas vidas se haviam cruzado umas décadas antes de estarmos ligados por modems diferentes, naquela estranha noite de julho. Nunca mais seríamos os mesmos. A vida de ambos daria muito mais voltas e eu regressaria à terra natal à procura de um passado próspero. Foi aqui que conheci uma mulher com quem estabeleci, em pouco tempo, uma relação de amizade e confiança. Num dos seus desabafos, falou-me do pai do seu filho. Quando me explicou de quem se tratava, percebi que aquele homem ter-se-ia intrometido na vida de um outro que, à época, me confessou a traição sofrida pela sua companheira de anos com um sujeito de fora. Não terá sido há muitos dias que me questionei pela primeira vez se um conjunto significativo de coincidências não corresponderão a uma experiência de quase-morte. Vistas a esta distância, as coincidências nas quais me encontrei envolvido têm uma beleza rara, como uma luz que atravessa o tempo para nos conciliar com o passado e com o presente.
jorge c.
(Memorabilia)
Junto do talho do Sr. Franclim funcionava, em tempos, uma taberna. Simplesmente conhecida por “Tia Júlia”, tratava-se de um estabelecimento modesto, sem tabuletas ou outros adereços indicativos, com uma porta para a rua, e outra, de ligação, para o talho do Sr. Franclim. Lembro-me de, em miúdo, acompanhar a minha mãe até ao talho, e admirar-me com os portentosos cepos de madeira onde se fazia o corte, e os não menos admiráveis golpes de faca e machado perpetrados pelo Sr. Franclim às pobres carcaças. Surpreendia-me com o facto de uma pessoa tão delicada e simpática ser capaz de tamanho manejo de cutelos. Na verdade, eram raras as ocasiões que saísse do talho sem um gelado de dez ou quinze escudos oferecido pelo Sr. Franclim. Nunca o vi zangado ou aborrecido, e mesmo perante as brincadeiras do neto com as cabeças dos porcos (com as quais procurava assustar os clientes da Tia Júlia) era incapaz de proferir mais do que um “ai este rapaz!, que maroto”. O mesmo não se diga da mulher, cuja largueza de ancas era proporcional à malvadez com que tratava tudo e todos. Ainda hoje creio que a farta cabeleira branca do Sr. Franclim se devia a tão medonha mulher. Porém, a imagem mental que mais recordo, sempre que penso no talho do Sr. Franclim, é o das travessas cheias de farinhotas frescas a passarem para a Tia Júlia. Naquele momento o talho ficava inundado de um cheiro situado na fronteira entre o nauseabundo e o agradável, um odor tão forte e característico cujos efeitos perduravam por várias horas no meu olfacto.
Há dias, enquanto petiscava uma dobrada com uns amigos, à hora do lanche, no mesmo local onde outrora funcionou a Tia Júlia (hoje continua a ser conhecido por “Tia Júlia”, apesar de há muito falecida, e ser agora gerido pela Dona Alice), todo este quadro mental se compôs novamente (quem sabe se influenciado pelas várias canecas de vinho já consumidas), no exacto momento em que uma travessa cheia de farinhotas frescas passou pela nossa mesa. Fui incapaz de expressar qualquer palavra, e não sei se os meus companheiros de taina terão notado uma lágrima ou outra no canto do olho. Já não mais existe o talho do Sr. Franclim, já não mais existe o Sr. Franclim, e já não mais existem gelados a quinze escudos.
EVN
Ao percorrer a história portuguesa contemporânea (utilizar maiúsculas em caso de emergência), com o indicador na linha a ler e o polegar lambido na página a mudar, encontrei o subcapítulo dos puros. Fez-me lembrar charutos e entrei. Tinha nos tetos e nas paredes grandes painéis de mogno e, pelos cadeirões de Luís catorze a dezasseis, distribuía-se um conjunto de pessoas sorumbáticas que fumavam, lá está, charutos. Dos bons: não estamos a falar de uma nota de rodapé, mas de algo com direito a figurar no índice. Cheirava bem e o silêncio de teflon só era cortado pela língua morta das inscrições nos frisos e nos capitéis. Os puros têm dificuldade em falar, especialmente uns com os outros, por razões anatómicas e porque a observação da diferença é incompatível com o reconhecimento da pureza alheia. Enquanto a engenharia continuar incapaz de nos trazer (ou levar a) uma solução melhor, o bico fechado permanecerá como a única forma não necessariamente fatal de enfrentar este dilema. Entretanto já estou quase no fim, a meio da ascensão e glória (utilizar maiúsculas em caso de necessidade), mas foram aquelas páginas tão limpas que continuaram embalando a leitura. Ficou a sensação (ou será o sentimento?) de que deveria ter deixado ali um marcador para memória eterna, largado o livro e imaginado o final.
E.
Aos dezasseis anos já tinha lugar marcado nas jams do Hot Clube na Praça da Alegria. Pensar-se-ia que só a irresponsabilidade da arrogância juvenil levaria um rapaz e o seu trompete a subirem a um palco com homens que ouviram mais, tocaram mais, conheciam a ratice e armadilhas uns dos outros, mas só quem não conhecesse a hostilidade do público de uma jam session neste ou em qualquer lugar. Ninguém era assim tão maluco. Disseram-se outras coisas. Por exemplo, que subiu a palco quando Dexter Gordon apareceu inesperadamente no Hot, e que o seu extático alright, man! no final do solo do miúdo em All the Things You Are, foi o mote para um dos mais estrondosos aplausos que se ouviram naquelas mesas. Ninguém duvida que se não foi verdade podia ter sido.
Apesar de ser conhecido por uma memória eidética mesmo para os mais obscuros temas do cancioneiro americano (era frequente vê-lo sem dificuldade a indicar discretamente ao pianista a progressão harmónica de um standard que aparentemente não era tão standard assim), e de uma invulgar inventividade para os temas mais habituais, desenvolveu uma obsessão pelo St. Louis Blues. Passou a aguardar o tema todas as noites com ansiedade fetichista e ouviu a primeira vaia da sua vida por ter solado durante dezoito choruses por mais de dez minutos. Quando na noite seguinte sugeriu aos músicos abrir com o St.Louis Blues, os impropérios do pianista provocaram-lhe o único ataque de ira que alguém lhe viu, e foi a responder-lhe à letra que subiu pela ultima vez as escadas da cave dali para fora. Ainda não tinha vinte anos.
A sua vida profissional não passou pelo jazz nem pela música. Chegou a jogar hóquei em patins duas épocas, experimentou empregos em estaleiros e bares de hotel, nada de especialmente invulgar. Acabou vendedor - um bom vendedor - de ventoinhas, e mais tarde de aparelhos de ar condicionado, quando a firma diversificou.
Mas a obsessão pelo St. Louis Blues não amainou. Aos amigos que viajavam pedia para trazerem discos com gravações que ainda não tivesse, o que se foi tornando cada vez mais difícil: versões da Bessie Smith, tinha vinte e três, no total eram mais de quatrocentos álbuns. Entusiasmou-se com as versões de alguns dos novos músicos que iam aparecendo como Hancock ou Hubbard, e aborreceu-se com outras como a de Marsalis. Não recusava nenhuma, mesmo pseudo-bossa-novas ou tangos mais ou menos bem intencionados. O melhor que podiam fazer-lhe era trazer gravações em pequenos clubes de músicos locais.
Em casa, quase todas as horas eram usadas para tocar variações do tema, com método doentio, em todos os tons. Se ficava medianamente satisfeito com um solo, repetia-o e gravava-o. Repetia-o com notável precisão: as mesmas notas, com o mesmo ataque e duração. Imaginava o que seria a versão lírica de Chet Baker, mimetizava o timbre de Miles Davis, ou as possiblidades da abrangência de Clifford Brown. Procurava variações para os curtos solos nos compassos mudos das versões cantadas. Enchia o espaço vazio entre acordes, acrescentou-lhes nonas e décimas primeiras, ou simplificava-o até uma regressão incompreensível, modal, quase só escala sem acordes.
A situação não melhorou com a reforma, nem nos anos seguintes. Deixou de ouvir, deixou até de tocar, passou apenas a encher com caligrafia cada vez mais descuidada partituras com versões da harmonia ou melodia do St. Louis Blues, escreveu solos, improvisou no ritmo e no tempo, até na forma. Ninguém poderia saber que era ainda o mesmo tema.
Após a sua morte, dois dos seus velhos camaradas do Hot Clube foram arrumar-lhe a casa. Encontraram as paredes forradas a cassetes, com milhares de gravações, um pequeno piano vertical na cozinha e o seu velho trompete no lava-loiça de pedra. Pelo chão e por todo o lado, partituras escritas à mão, rasuradas, algumas rasgadas, outras guardadas com cuidado. Num quadro negro, tinha escrito a tinta de parede I - IV - V e entre estes, a giz, praticamente todas as possibilidades qualquer que fosse a dissonância. Quiseram muito que houvesse entre tanta documentação algum apontamento genial, mas nenhum dos dois estava preparado para dissecar um espólio tão triste.
Gouveia
variações em dó menor
o sol já se pôs, o jantar já está no forno, o carro já passou na inspecção. já paguei o ierriesse, já comi os restos de ontem, já marquei o almoço de amanhã. o quarto está reservado, as refeições estão encomendadas, as calças estão engomadas. já lavei os dentes, já massajei aquela dor, já pus o despertador. os convites estão enviados, os amigos confirmados, os outros que se fodam. já comprei o que há-de vir, já paguei as contas feitas, já bebi mais do que eu. já não tenho pressa para nada, já me ri desta tristeza, já chorei doutra alegria. já tomei os comprimidos, de oito em oito horas, já sofri os secundários. a chave fica na porta, há cerveja no frigorífico. já fiz tudo o que pediram, já não peço que não sossego. daqui já não saio, já lá vou devagarinho, já vi o sérgio godinho, já posso morrer descansadinho.
um tal de joão gaspar
A nogueira centenária e o Cotovelo: notas sobre duas memórias do Oeste
Breve introdução
A minha mãe nasceu e cresceu num lugarejo do concelho profundo, um casal afundado à beira das curvas homicidas da estrada nacional número nove, com a rampa de gravilha que dava acesso à estreita berma da via crescendo em declive a cada novo tapete de alcatrão. Na cozinha, debruçada sobre a bancada pingada da água de lavar os legumes, a minha mãe escrevia a própria vida com as cascas das batatas que me pedia para descascar: contos de uvas Dona Maria, pintadas de amarelo no final do Verão; a poesia das sementeiras de ervilhas e feijões, dos pomares de abrunhos negros, laranjas da baía pesadas de sumo, e o terror das larvas rosadas, bestas cegas a carcomer a polpa rija das maçãs ácidas.
A mãe da minha mãe nasceu e cresceu naquele mesmo sítio, e ali ficou até enviuvar. Graças à resiliência, ou preguiça geracional, contei dezasseis anos de visitas forçadas. Quando todos os meses, com o rigor de um tratamento médico, a minha coluna se dobrava obediente para entrar no carro e visitar aquele ermo, meu de sangue, das histórias contadas sob o granito restava somente a sombra: uma carcaça de tijolo e argamassa, abandonada às sebes bravas, às silvas indomáveis e aos rebentos pandémicos das canas e da alfavaca de cobra. De ombros curvados, subia os degraus cinzentos até ao segundo andar da casa geminada dos meus avós, outrora partilhada com os avós da minha mãe, e não via rasto das vacas leiteiras, das galinhas poedeiras, ou do cavalo do meu bisavô, bicho traquina que atravessava a estrada com destemor para pedir açúcar aos vizinhos.
Vivi os dias últimos dos terrenos lavrados, das frugíferas tomateiras que ofereciam horas remexendo a pasta escura do doce de tomate nos bordos mornos do forno de lenha, e das coelheiras malcheirosas onde afagava o pelo macio dos animais, mais tarde arrancado da carne onde crescera como quem despe uma camisola. Bolinhas de naftalina escondiam-se nos lugares mais inusitados, impregnando em cada divisão da casa e no anexo cumeado por um telhado metaliforme, entre as capoeiras vazias e os grandes tanques de cimento, o distinto e terrível aroma - até as tripas delgadas dos coelhos esventrados nos alguidares emanavam o inconfundível odor do hidrocarboneto, quais bichinhos mutantes feitos de sangue fingido.
Mas de tudo isto, rememoro especialmente duas impressões, solenes megálitos do espaço-tempo púbere que antecedeu o funeral do meu avô: uma árvore anciã e a mais curiosa curva da estrada nacional.
S. White
Wanderlust
Passam vinte minutos das vinte horas do dia seis de Agosto de dois mil e catorze. Estás em casa. Vais escrever um texto para o blogue Despesa Diária. Foste convidado.
Vais extinguir todas as fontes sonoras que te possam distrair, incluindo o já crónico ranger da portada que àquela hora costumas manter aberta porque, dizem, “há que deixar entrar o ar.” Não vais querer que a etiqueta da camisola te volte a incomodar, como o fez durante o dia. Vais trocar de camisola. Vais sentar-te à mesa, ajustar o ângulo descrito pelo braço e o antebraço de modo a que este não acabe vincado na aresta da mesa e de modo a que as tuas mãos ameacem o teclado de uma forma que consideres adequada. Não vais querer sentir o teu corpo, ou melhor, vais querer sentir que o teu corpo se vai limitar a cumprir a função para o qual foi convocado. Nada mais.
Vais pensar num tema que te permita expor uma ideia. Precisarás de um tema que, por sua vez, produzirá uma ideia. Vais sentir que nada te ocorre para, de seguida, sentir que te ocorrem demasiados assuntos que farão o desfavor de alavancar uma amálgama de começos na tua cabeça. “É estafado dizer-se que o conflito israelo-palestiniano…”. O primeiro. “Há um novo banco no bairro…”. O segundo. “Há que voltar aos thick ethical concepts de que falava Williams…”. O terceiro. Vais sentir-te cansado. Vais sentir que estás farto de «expor ideias». Vais esticar os braços e olhar para o tecto. Vais lembrar-te de um longínquo texto do Vila-Matas e de uma expressão que jamais esqueceste: a atracção pelo nada. Vais fazer a ponte com o escrivão de Melville.
Vais levantar-te da cadeira. Vais sentir que tens o antebraço marcado com um vinco e que a comichão na base do pescoço não passou. Vais sentir calor. Vais voltar a abrir a portada. Vais sentir o vento e, com ele, uma aflitiva vontade de sair.
Estás na rua. Vais começar a andar sem saber para onde. Para trás ficará a tua casa. A tua mesa, a tua cadeira, o ranger da portada. Ou talvez não, segundo um bispo de Cloyne. Apercebes-te de que estás sem óculos. À tua frente: um borrão policromático já afectado pelo cair da noite. Vais continuar a caminhar. Aceleras o passo. O suficiente para sentires que a tua pulsação aumentou. Apenas isso. Pequenas gotículas de suor formar-se-ão na tua testa.
Passada uma hora, vais sentir as mãos ligeiramente entumecidas. Mais à frente, vais perceber que está muito perto da praia. Vais querer descer a rampa e pisar a areia. Vais fazê-lo com uma determinação pouco usual. Vais perceber que a noite se instalou, o que te vai parecer reconfortante.
Vais deitar-te na areia. Vais mergulhar as mãos na areia. Vais observar o céu. Vais pensar no que Voltaire dizia: olhar o céu à noite é a prova da existência de Deus.
Vais, finalmente, dormir.
MacGuffin
Uma fábula para variar
No microcosmos dos prédios de habitação encontram-se muitas vezes soluções simples e prácticas para problemas colectivos. Estas soluções dispensam alegremente teorias económicas e/ou sociais que as sustentem, pois os problemas a que se referem são muito mais complicados de resolver e até mesmo equacionar, quando olhados do plano teoricamente mais elevado da macroeconomia ou da sociologia.
Vem isto razoavelmente a propósito de um acordo que fiz com a minha vizinha do andar de baixo, após a última reunião do condomínio. A senhora, vítima de graves infortúnios financeiros e de um marido fugido, assumiu compromissos profissionais que a mantêm longe de casa, quase toda a noite. E eu, que também sofro de necessidades prementes das mais variadas, aceitei tomar-lhe conta da gata a troco de poder estacionar o meu carro na garagem dela, há hora que eu quiser e desde que não esteja já ocupada.
Da primeira vez que fiquei com a bichana em casa, e devido a uma daquelas falhas de comunicação tão comuns quanto desconcertantes entre seres da mesma espécie mas de géneros diferentes, não sabia ainda o seu nome. Como isso acaba por ser uma parte importante do relacionamento entre dois seres que coabitam no mesmo espaço, decidi chamar-lhe Christie, o que à altura me pareceu ser-lhe agradável.
Causa ou consequência, a gata Christie era um animal extremamente talentoso e dado a solucionar mistérios do quotidiano. Não foram uma, nem duas as vezes que fui encontrar meias desaparecidas junto à caixa com cobertores que lhe arranjei para dormir. E uma vez, chegou mesmo a vir ter comigo ao sofá e a pousar-me uma meia junto aos pés que, asseguro-vos nem tinha consciência de estar perdida.
A gata Christie conseguia tudo isto apesar de ser practicamente cega, é preciso notar. O seus longos bigodes e a suas orelhas pontiagudas, em conjunto com o faro apurado do seu nariz rosado, chegavam e sobravam-lhe para pintar um belo quadro mental da Realidade que a rodeava. E esse quadro podia ser mais correcto que o meu, em muitos aspectos. Correcto ou completo, não sei bem dizer e muito provavelmente ambas. Um ser que detecta vibrações infinitesimais no chão e no ar, ou que consegue cheirar que eu lhe comprei comida antes mesmo de eu entrar em casa, tem de ter uma percepção da realidade muito melhor que a de um “junkie” no desemprego como eu. Neste caso em particular, a merda que partilhamos pode ser a mesma, mas o cheiro é de certeza completamente diferente!
A Realidade, essa cabra. Quando abraçam outro ser vivo, quando os vossos corações batem em sintonia, as vossas existências a palpitar em ressonância, sabiam que, na Realidade, os vossos atómos e os dele não se tocam sequer?
Ontem, enquanto ouvia alguém na televisão a falar sobre bancos bons e bancos maus, pensei pra mim mesmo que o que precisávamos neste momento era de um banco para além do Bem e do Mal. "Ó Nietzsche anda cá baixo ver ietzsch", gritei! Acto contínuo, a gata Christie saltou-me para o colo e, após um curto periodo de imobilidade destinado certamente a deixar-me refazer do susto, procedeu a enroscar-se nela própria como habitualmente, num abraço quente, peludo e tricolor, como só as gatas sabem e podem.
Afaguei-a e reparei que me olhava nos olhos, ou melhor dito - mais real, que apontava aquelas duas escotilhas verdes e inuteis genericamente na minha direcção. Para minha surpresa e manifesto incómodo, começou a falar por cima do senhor da TV. Falou-me de como somos todos Um, uma super-consciência que se experimenta a si própria subjectivamente em cada ser vivo, de como a vida não passa de uma viagem, que é divertida, barulhenta e vistosa - ao princípio, e que mesmo depois, quando já não o é, não preciso de ter medo porque é só uma viagem. Falou-me do passado e do futuro, e de uma Realidade com a leveza da inconsciência, falou-me dos sentidos e do instinto, da maldição de Adão. Falou-me longamente, pela noite dentro, de tudo - e aí incluo o nada, enquanto eu lhe lambia os pelos com as minhas mãos suadas, tal qual a mãe lhe fazia quando era pequena.
Quando começou a falar-me da minha escrita porém, enxotei-a e levantei-me para ir buscar uma cerveja ao frigorífico. Se ia ouvir críticas literárias de uma gata, o mínimo que podia fazer era estar bêbado. Mas quando voltei à sala já ela se tinha escondido algures, orgulhosa, ressabiada. Foi pena, quando acordei, a única coisa que me lembrava (que tinha percebido?) de tudo o que ela me tinha dito era um simples e prolongado "miaaaauuu".
rowtag
(Juvenilia)
Confissão
(em forma de devaneio parnasiano)
Na quietude fresca das manhãs
Que suaves reflectem o Sol
Colhi doces maças −
Peixe que ferra o anzol.
Flanei depois alucinado
Pelas áleas do pomar
Da tua ausência contristado
Imaginando-te ao luar.
O fruto está maduro −
Verde porém se revela o amor:
Discernimento de imaturo
Que se entrega sem pudor.
……………………………………………
……………………………………………
(Mas no recôndito lugar
À sombra das azáleas
Em que desolado assisti
Ao firme ardor definhar
Estimei em segredo um reencontro
Pelo ar, por terra, ou pelo mar.)
pmramires
Num destes dias, expus-me a uma subtil embriaguez que dominou toda a minha tarde. Em rigor, nada fiz. Não que eu não quisesse mas, o corpo sujeitou-se a uma incapacidade de resposta a todos os movimentos do universo. Quando o telefone tocou para confirmar um compromisso agendado para umas horas depois, faltou-me coragem e escrúpulo. Na verdade, o braço demorou-se a chegar ao aparelho e a cabeça havia sido infectada pelo vírus do carrossel, girando sem interrupções, numa lentidão vertiginosa que nos conduz à resignação. Longe de qualquer consciência, e em suplício obstinado, como quem procura água num interminável deserto, a cabeça balançou, acabando suspensa junto ao peito, por breves segundos. Os olhos adormeceram. Não podendo descrever com precisão o que aconteceu no momento seguinte, apoderou-se de mim uma confiante sensação de conforto que triunfaria sobre todas as outras preocupações da humanidade. Talvez se chame prazer ao estado em que nos encontramos quando tudo o resto, simplesmente, desaparece e ficamos entregues ao nosso desfrute. Experimentei, porém, esta sensação muitas vezes mais sem que, para tal, tenha bebido uma única gota de vinho. Apercebo-me, agora, que o vinho é um dos mais perfeitos disfarces desse hedonismo involuntário que nos ataca como uma lança de amor, para nos estender nos prados da imortalidade, por um instante. Admitir que a preguiça é, então, uma das mais belas alienações naturais é, ainda, um dos grandes mitos da sociedade moderna. Qualquer homem assumiria mais depressa o seu estado ébrio do que uma preguiça crónica. O mundo prefere um bêbado a um preguiçoso. É preciso libertar a preguiça.
jorge c.
Arca de guardanapos
Depois de décadas a assombrar um sótão em um ponto qualquer entre Nesperal e Palhais, e portanto suficientemente díscolo, porfiado e irascível para conceder ao tédio o status de um axioma (um axioma certamente atrelado à duplicidade), Aflalo decidiu (no sentido mais lato e disponível) estabelecer um vínculo mais profundo entre o cinismo e a transparência, dedicando-se em sua cegueira ou - dito com maior correcção - em sua peculiar forma de ver, a um ócio ainda mais insuportável do que o trabalho.
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Sobre uma base em parte aleatória e em parte dirigida podemos ver cavalo e cavaleiro como um duplo monstro, tão esquálido que nem sombra tem e que para poder aparentar o que não é, não pode tomar os outros pelo que são. Assim conspiram Sanchos e Quixotes, postulando (implicitamente postulando) a excelência do iminente sobre o imediato.
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Depois de conhecer um número quase infinito de seres, durante um lapso quase infinito de tempo, Seth, incapaz de explicar as causas da sua longevidade, sacou o sabre que sempre trazia à cintura e, atraído por uma serenidade sem princípio (muito à maneira de uma solicitação ao desmaio) inaugurou o suicídio. Antes, porém, disse (sempre que falava assobiava pelo nariz): "Pena que dos lírios não se façam cilícios!".
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Tão inadequados para a notoriedade quanto para o anonimato, os xifópagos Direito e Esquerdo impuseram-se, por meio de uma correspondência de vazios e tendo como álibi um ao outro, a ablação de todo indulto (residual ou excrescente) que lhes consagravam e - ilação contrária às vestes - dedicaram-se a uma misantropia em contiguidade.
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Condenado pelo Papa Inocêncio II ao "silêncio eterno", Pedro Abélard vinculou (às vezes por associação, outras por contraste) o novo talento à já antiga capacidade de mentir mesmo quando calado. Contudo, tanta subtileza na construção de doestos e desdéns, acaba dando-lhes um contorno apócrifo. Inocêncio II, justamente por reconhecer seus notáveis dotes, a eles negou a expressão em realizações de valor correspondente. Abélard, fiel à infidelidade que o constituía, tratou de saturar a truculência de um halo canónico, de dissimulá-la sob um fog teológico; ao cozinhar sobre lenha verde seus cadernos emolientes, todos os acessos ao céu perfilaram-se nas quatro paredes dessa alma alvejada de sangue e amoníaco.
Peor
A verdura, as vacas e a vibração dos insetos ao sol. Trocava as minhas memórias todas por isto. Todas? Todas. As boas e as más? Tens razão, só as boas. Pela verdura, as vacas, a vibração dos insetos ao sol e as estrelas de luz a flutuar no oceano, as boas e as más. As memórias más valem tanto como os reflexos flutuantes? Não, é o conjunto, como o champô com condicionador, não podes partir-lhe o preço conforme as funções. Levas tudo por aqueles euros ou não levas nada daquilo, compras antes um apfelstrudel ultracongelado ou um saco de areia para os gatos. Sílica, que é melhor. E depois ficavas como, com o quê? Ficava a tremer de calor, com o cabelo sedoso e sem caspa, tudo o que dá jeito sempre que não há uma manhã amanhã. E se eu te quiser com as memórias, boas e más, e a trunfa pós-modernista? Estás a falar de arquitetura ou de literatura? Trunfa, arquitetura. Claro. Trunfa, arquitetura. Mas não queres. Só queres os grandes êxitos. Quando te visses com as faixas mortas nos ouvidos, davas um tiro de cavalo e partias para outra. Ou talvez partisse, num cavalo de tiro, para outras.
(risos)
Outras faixas? Não, outras... Outras, sim, altas, baixas. E por isso... Por isso a verdura, as vacas e a vibração dos insetos ao sol. Ficamos por aqui e deixamos os reflexos a flutuar. É um favor que nos fazes, a mim, a ti, a um mundo que talvez já não venha.
E.