Terça-feira, 30 de Setembro de 2014

 

Está (quem?) estendido no banco (de “jardim”) à beira do lago de betão, de onde olha em estupor para as latas de cerveja e refrigerantes que flutuam na água purificada pela chuva de Grande Planície Europeia. Quando dá pela minha chegada, sorri sem conteúdo e levanta a mão (esquerda) que, por estar pendurada, permanece até então ausente do meu campo de visão. Com ela segura uma pistola da qual sai, na minha direção, um dardo com uma ventosa na ponta que me acerta em cheio na testa e cai aos meus pés. Explica-me por telepatia que não tem mais dardos, que perdeu os outros (nove) que vinham dentro da embalagem num acidente que só pode ser explicado recorrendo a palavras. Que, se quero voltar a ser alvejado, terei que lhe devolver aquele. Agacho-me, apanho o pedaço de plástico, com o qual os meus dedos decidem brincar enquanto me levanto, e devolvo-lho. Introduz o dardo no cano da pistola (dardo e pistola: azuis) até fazer clique, aponta na direção da minha cabeça, mas no último momento estica o braço na direcção do lago e puxa o gatilho. Pelo ruído, atinge uma das latas, que rola na água, suponho, enquanto o dardo revolteia e respinga antes de ele próprio também se deixar flutuar, demasiado distante da margem para ser recuperado.

 

Como tinha fechado os olhos na expectativa do impacto, já só vejo o dardo perdido na anarquia das sobras. A lata ainda voga através das nuvens refletidas, abrandando até ao momento em que há de estacionar. Ele (não esquecer: quem?) regressa à exata posição em que estava no início (de quê?), com as feições mortas e o braço (esquerdo) pendente. Uma faísca de entendimento sobe-me do peito, onde nasce, aos olhos, de onde se recusa a sair. Tento encontrar a vista no mesmo ponto em que a dele se perde, mas não tenho como saber da minha pontaria. Desisto, embora seja difícil tirar essa conclusão a partir do meu gesto, que não torna evidente o que passa pela minha cabeça naquele momento. Adeus, penso, enquanto dou o primeiro passo em direção a um local fora do enquadramento onde irei comer arroz (agulha) de polvo. Ele não responde, imagino que por não haver um som no ambiente capaz de mascarar a voz que, em todos estes anos (quantos?), nunca lhe conheci. Ainda ouço o som da pistola de plástico a cair no pavimento, sinal de que acaba de ali deixar o seu fantasma, assim inutilizando o uso do banco por parte de nacionais e de estrangeiros com autorização de residência. Nunca mais nos veremos a não ser através de mensagens escritas, quase todas truncadas no limite de carateres imposto pelo protocolo.



E.

despesadiaria às 02:51
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Segunda-feira, 29 de Setembro de 2014

 

Vivo num quarto arrendado a uma família com brasão (físico, na parede, não só no registo nobiliárquico do reino) e com dois LL consecutivos num dos apelidos. Têm dois filhos da minha idade, sem sintomas geracionais aparentes de endogamia. O pai, extraordinariamente mais velho, é tratado pela esposa por Senhor Conde, e por eles por Senhor Pai (não brinco). Fui-lhe apresentado no primeiro dia, e não voltámos a falar.

O meu quarto fica nas traseiras, junto à enorme cozinha. Casa térrea, no centro da cidade, tem um pequeno jardim com alguns bancos de pedra, uns cobertos de musgo, outros por trepadeiras viçosas, a armação de um baloiço (trepadeiras viçosas), e quatro árvores de aspecto antigo e curvado, o que se esperaria das oliveiras mas não do pessegueiro e da nespereira, que parecem ter nascido assim doentes.

Do quarto à sala, percurso que nunca fiz de dia, é necessário atravessar um corredor com seis portas fechadas numa das paredes. Lá estão os quatro, desligam o som da televisão e olham-me expectantes. Foram sempre pequenos problemas que me levaram a interrompê-los: o ninho de moscas debaixo da cama no primeiro mês; a invasão de ratos no segundo; a comunidade de baratas no terceiro; e o cão vadio que se veio deitar na cozinha, no quarto. A porta que dá para o jardim não complica de facto a entrada de um animal, mas, ainda assim, esperava de mais alguém alguma surpresa por um cão adulto sem coleira estar a dormir dentro de casa. Nada: adoptaram-no e baptizaram-no Robespierre. A partir daí não voltei a precisar de ajuda, ou preferi fazer por isso, embora a senhora me convide amiúde para passar o serão com eles, o que recuso sempre com amável cortesia. A nossa relação é feita disto, aliás: são-me propostas algumas simpatias (uma ceia, lavar a minha roupa, companhia para a missa) que procuro declinar da forma menos ofensiva possível.

Vê-se que o dinheiro é coisa do passado nesta família, apesar da casa, títulos, extensão e quantidade dos apelidos, dos castiçais de prata, das pesadas molduras nas paredes, entre outros sinais de sentido equivalente, mas sou recordado com frequência de que apenas por profunda amizade à minha avó - não por necessidade - me arrendam o quartinho com casa de banho, e só me é permitido pagar os simbólicos cento e noventa euros mensais para não me ser privada a dignidade.

A verdade é que apesar de bem-educado e gentil, de ter emprego estável e decente, de pagar os impostos e a renda nos prazos devidos, de chegar quase sempre antes da hora de jantar, acordar cedo mesmo aos fins-de-semana, de nunca ter levado mulheres para casa, não beber vinho nem coisa pior, apesar de ter estudos, e ler - assim o tempo me permite - os clássicos, apesar de tudo (era aqui que eu queria chegar), sinto-me julgado como a peça indesejável, embora tolerada, de algo maior de que aparentemente faço parte. Mas por respeito à minha avó, nada disto vem à baila.

 

Gouveia

despesadiaria às 09:45
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Domingo, 28 de Setembro de 2014

 

no outro dia acusaram-me de ser, imagine-se, boa-pessoa. eu, pá. boa-pessoa, pá. há com cada maluco. não pense o amigo leitor que sou gajo de me ficar: só não estrangulei de imediato o autor de tal alarvidade porque sou um esteta e, admitamo-lo, o pouco jeito para o estrangulamento com que fui dotado não me permitiria executar a manobra com o efeito letal que, estou certo, todos desejaríamos. transformei a raiva toda num sorriso torpe e fui para casa, envergonhado por não ter resposta à altura, vencido no duelo do insulto. eu, que nunca fiz méritos para nada mais do que coisa alguma, acusado de bom-pessoismo. onde é que isto já se viu. eu, que nem pontuar uma frase em condições consigo consistentemente. eu, indivíduo cujo único objectivo na vida é sobreviver. sobreviver e não deixar passar o ponto ideal dos ovos mexidos, vá*. eu, pá. boa-pessoa, pá. boa-pessoa são os mortos e eu não morri nem espero morrer antes de vocês. 

 
* um dia, com mais calma, falamos desse ébola culinário que é deixar passar o ponto ideal dos ovos mexidos. 

 


um tal de joão gaspar

despesadiaria às 03:42
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Sábado, 27 de Setembro de 2014

 

As ideações suícidas de Laura Fontinha (miniconto / megapost)

 

Laura Fontinha, residente no número 14 da Rua da Alegria, queria matar-se. A ideia surgiu-lhe na tarde ociosa do segundo domingo de Setembro, quando a televisão se escangalhou. Em vez das notas nítidas das personagens que se bamboleavam pelo ecrã, o LCD de trinta e duas polegadas emitia sons roucos, mergulhados em expetoração elétrica; os trinados histéricos das apresentadoras eram mascarados por uma grave laringite tecnológica, maleita virulenta que tolhia as correntes nos buffers. Primeiro, Laura Fontinha culpou a mãe e o descuido com que varria o plástico brilhante do televisor, auxiliada por um paninho do pó encharcado em Pronto, mas o exercício esgotou-se assim que o botão vermelho do comando foi premido e a escuridão muda engoliu as imagens da festa anual em honra das maçãs Bravo Esmolfe. Aí, mirando distraída as partículas de poeira que vogavam à luz da janela da sala, Laura Fontinha recostou-se no sofá de pele. Deixou-se escorregar como peso morto numa encosta, inundando a sala de barulhos cómicos semelhantes a manifestações flatulentas. Foi então que se lembrou da mais óbvia alternativa à programação gasta de fim-de-semana:

— Vou matar-me.

Levantou-se num pulo e agarrou no computador portátil que hibernava, fechado sobre a mesinha da sala, ao lado de um vaso redondo de peónias plásticas com as pétalas encardidas e de um pequeno buda obeso. Laura Fontinha tivera aulas de inglês desde os sete anos, vira todas as temporadas de Sex and the City sem legendas e reservara na estante do quarto uma prateleira só para os livros da Danielle Steel, todos na língua em que a autora os escrevera. Tamanha experiência, apregoada com orgulho e posta em prática sempre que via turistas perdidos na rua, seria equivalente à aprovação no TOEFL com direito a louvores e a uma carta da Rainha; por isso, e achando a morte um assunto internacional, na barra de pesquisa do Google, escreveu

how to kill myself

Em meio segundo, o sempre solícito Google devolveu-lhe três milhões, oitocentos e vinte mil resultados; Laura Fontinha achou-se diante uma temática polémica, com direito a páginas especializadas e fóruns de discussão. Fez deslizar a barra lateral do navegador até chegar à base da página, onde encontrou as pesquisas relacionadas listadas a azul; sem surpresa, antes dela outras pessoas investigaram o mesmo assunto, afunilando o raio de ação ao acrescentar palavras chave. A comunidade dos que ponderam pôr fim à sua existência, além de internacional, como bem previra Laura Fontinha, ainda se serve de um sentido crítico singular que a leva a aprofundar a arte nas suas várias disciplinas: facas, comprimidos, sacos de plástico ou cordas enquanto métodos; dor, rapidez ou facilidade enquanto parâmetros de avaliação do processo. Abraçada pelo torpor ocioso do fim-de-semana, Laura Fontinha fez as suas opções, posicionou o cursor sobre a frase

how to kill myself easily

*click*

e desta vez o Google recolheu quatro milhões seiscentos e dez mil resultados diante dos seus olhos esverdeados e muito redondos, como moedas comemorativas de uma efeméride obscura, esquecidas numa gaveta e contaminadas de verdete. O primeiro levava-a até à página da Wikipedia sobre métodos de suicídio: uma página longa e bem organizada, dividida em vinte e quatro subcapítulos suportados por cento e onze referências bibliográficas; da lista constavam artigos publicados pela editora do velho barbudo debaixo do olmo negro— Laura Fontinha conhecia-a dos olhares enviesados que lançava aos computadores dos amigos mais instruídos. Impressionada é um adjetivo dramático e vivo que raramente se usa para descrever Laura Fontinha, a rainha apática dos mares de águas chocas. Que a mãe soubesse — e era a mãe a pessoa que melhor a conhecia —, só em duas ocasiões as vistas esféricas da filha se tinham arregalado ainda mais, num espanto assombrado, incapaz de ser contido: quando a menarca lhe tingiu as cuequinhas de corrimento acastanhado e quando descobriu a origem do barulho fantasmagórico e repetitivo, como uma portada solta à mercê do vento numa noite de tempestade, que afinal vinha do quarto da mãe e do padrasto. A terceira ocasião digna de uma perturbação de espírito desta natureza seria o momento no qual Laura Fontinha percebeu que o suicídio é uma ciência.

Linhas de informação sucediam-se; as conclusões construíam-se através do rearranjo das que foram reunidas até então, como um baralho de cartas preso num movimento perpétuo. Com mais cliques, Laura Fontinha visitou outras páginas e leu os testemunhos de quem se tentara matar, mas sobrevivera para encher os fóruns de queixumes e alimentar o mercado dos livros de autoajuda. Encontrou uma tabela onde todos os métodos de suicídio estavam organizados em função da sua eficácia, parâmetro que se revelara o mais importante de todos. Os lugares cimeiros da tabela eram ocupados pelo tiro nos miolos e o famoso cianeto, sendo que o primeiro combinava a eficácia com a rapidez. Laura Fontinha não estava disposta a gastar muito tempo com isto do suicídio, tal como não conseguia oferecer muito tempo a qualquer outra atividade: chegada a meio de uma tarefa, um cansaço mental assolava-a através de espasmos luminosos e náuseas, deixando-a agarrada à fronte latejante e obrigada a desistir do que estava a fazer. Uma bala que lhe perfurasse os hemisférios seria suficientemente rápida, antecipando-se ao enfado fisiológico.

Laura Fontinha tinha agora uma nova missão em mãos: arranjar uma arma. Abriu um novo separador no navegador e escreveu na barra de pesquisa do Google

how to get a gun

Esmiuçando a rede com rapidez sôfrega, o motor de busca devolveu-lhe cinquenta e um milhões e duzentos mil resultados, mais a costumeira lista de pesquisas relacionadas sugerindo abordagens mais cinzentas e fora da lei. A fartura de informação desorientou Laura Fontinha, que abanou a cabeça como se afastasse uma varejeira mole; com o movimento, as cartas foram de novo baralhadas e no pensamento pintou-se o retrato delgado de Verónica “Nicas” Lúcio, amiga de longa data que se mudara para a Brandoa há três anos, prenha de um mecânico mulato. Desde essa altura, as amigas telefonavam-se uma à outra nos aniversários, na Páscoa e no Natal, discutindo os livros da Jody Picoult, os benefícios da amamentação até à puberdade e os tiroteios a que Verónica “Nicas” Lúcio assistia da sua varanda, devorando tremoços e atirando as cascas aos dealers acossados.

Os refegos do buda velavam o Samsung Galaxy S4 de Laura Fontinha, cuja bateria se cansava em apenas meio dia.

Beep…beep…beep…

— ‘Tou?

— Nicas, é a Laura.

— Ai ‘miga, que saudades! Como estás?

— Bem, obrigada. E vocês aí?

— Estamos todos bem, graças a Deus.

— Nicas? Quero perguntar-te uma coisa.

— Diz, querida.

— Arranjas-me uma pistola?

Silêncio.

— Para que é que tu queres uma pistola?

— Para me matar.

Silêncio.

— Para que é que tu te queres matar?

— Olha, estava aqui a ver as festas do Bravo Esmolfe, no primeiro canal, e de repente a televisão começou a ficar com um som cada vez mais rouco, até ao ponto de eu deixar de perceber o que se estava a dizer e das músicas me parecerem todas iguais às do mp3 barulhento do meu meio-irmão.

— É pá, que cena!

— Pois, e agora estou aqui em casa, num domingo à tarde, sem nada para fazer. Decidi matar-me.

— Não tens comprimidos em casa? Toma uma caixa de Benurons ou assim.

Verónica “Nicas” Lúcio, sessenta e dois quilos e quatrocentas gramas de gente, vivia por impulso. As suas decisões manifestavam-se no golpe de asa de um colibri, com a genica e impetuosidade que move um pequeno sapo de nenúfar em nenúfar. A noção de planeamento era-lhe tão estranha que nem punha a hipótese de esta existir na personalidade das outras pessoas. Laura Fontinha respondeu à questão com uma mescla de frustração e condescendência.

— Segundo o site SuicideHelpers, os medicamentos que são comercializados hoje em dia já estão feitos para tu não morreres de overdose, independentemente do número de comprimidos que tomares. Outro site, o SuicideTipsForLosers, diz o mesmo. Eu pesquisei o assunto, Nicas.

— Uma corda, não arranjas uma corda? Ou então enforca-te nos cortinados.

— Verónica, eu pesquisei! As pessoas que são enforcadas cagam-se todas, sabias? Pois. Eu não quero cagar-me toda no chão da sala.

— Ó Laurinha, eu tenho muita pena, mas não te consigo arranjar uma arma.

— Nem falando com o teu vizinho? Aquele matulão das tatuagens.

— O Jackson Lucas? Ai, nem me digas nada, foi uma ribaldaria neste prédio por causa dele… Está na choldra, querida. Esfaqueou um tipo qualquer num bar — ouviu-se um suspiro do outro lado da linha. — Não consigo fazer nada por ti, ‘miga. O Jackson era o único gandulo com o qual eu podia contar. Mas olha lá, já experimentaste arranjar a televisão?

— Eu não percebo nada de televisões, Nicas.

— Vê pelo menos se os cabos estão bem ligados. Ou espera… desligaste a televisão?

— Sim.

— Então liga-a outra vez. É assim que se resolvem os problemas das televisões e dos telemóveis e dos computadores: desligar e voltar a ligar.

Certa de que nada mais havia a tirar daquela conversa, Laura Fontinha despediu-se de Verónica “Nicas” Lúcio com desejos de boa sorte e saúde para ela, o namorado mecânico e o filho, muitos beijinhos e a sugestão de uma visita que, como em tantas outras vezes, não se realizaria. Pousando o telemóvel no sofá, Laura Fontinha levantou-se e ficou de pé frente ao televisor, segurando na mão o comando em forma de blister. Carregou no botão vermelho: os cristais líquidos cintilaram as suas mil cores e os sons nítidos, rompendo o filtro de ronha que cobrira a televisão três quartos de hora antes, reverberaram pela sala como uma sinfonia de copos de cristal manipulados por dedos húmidos. Afinal, estava tudo bem, pensou Laura Fontinha. Fechou o computador e voltou a pousá-lo sob a sombra das peónias desgastadas. Morrer seria apenas mais um projeto adiado.

 

S. White

despesadiaria às 09:00
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Sexta-feira, 26 de Setembro de 2014

 

um guarda-chuva no supermercado

   

A certa altura da minha vida, no grupo de copos do bar do momento, conheci um rapaz que fazia uma coisa muito engraçada. Às vezes, desaparecia. Todos pensávamos que viajava, pois era frequente vê-lo com mapas de cidades estrangeiras nas vésperas dos períodos de desaparecimento, mas ele dizia sempre que não, que não tinha ido, não planeava ir e não ia mesmo a lugar nenhum. Ora, essa resposta contra-intuitiva gerava naturalmente mil e uma teorias acerca de onde ia ele exactamente, e porquê. Eu apostava (sim, naturalmente, já havia apostas) que ele era traficante de droga. Outros, talvez menos motivados pela inveja, coisas mais mirabolantes e perversas.

Na realidade, ele não mudava de casa, nem de cidade, nem de país, nós é que pura e simplesmente deixávamos de o encontrar. Sei disso porque uma dessas vezes - em que já tinha desaparecido há cerca de uma semana, semana e meia, por casualidade, encontrei-o.

Estava numa situação profissional cuja localização tinha sido alterada à última da hora, e enquanto o artista tocava na única zona iluminada da sala, vi-o ao fundo, sentado, só, e a esbracejar para tentar chamar o empregado. “Talvez não o tivesse visto se não fosse por estar a tentar chamar a atenção”, lembro-me de ter pensado enquanto me dirigia para o cumprimentar.

“Então, já voltaste?”, perguntei-lhe.

“Sabes bem que não fui a lugar nenhum. Já to disse, já vos disse, que não é possível ir a lugar nenhum”, respondeu ele.

“Oh pah, essa tua cena é muito estranha. Ninguém percebe nada. Conta-me lá, o que é que tu andas a fazer?”

“Ando por aí, meu.”

“Por aí, por onde, caralho? Ninguém te põe a vista em cima!”

“Já estou um bocado farto de vos tentar explicar isto mas pronto, cá vai”. E começou a falar de correntes psicogeograficas e cidades invisíveis, de como podemos cruzar-nos ou estar fisicamente muito próximos mas ainda assim distantes o suficiente para não nos vermos, como barcos a navegar à noite. Desde que o tinha conhecido que era esta a conversa dele. Chatinho.

“É um fenómeno conhecido e confirmado por muitas pessoas que já estiveram na clandestinidade”, continuou. “As pessoas muitas vezes não reconhecem outras pessoas que deveriam reconhecer porque não é suposto aquelas pessoas estarem ali, naquela situação. Percebes?”

Mas eu não percebia, ninguém percebia e ele também não parecia importar-se muito com isso. Perguntei-lhe se achava que voltava a tempo do jogo, porque estava a pensar organizar uma jantarada com a malta. Disse-me que ia tentar e eu olhei involuntariamente para o relógio.

“Olha, fica bem então, e vê lá se apareces pra semana. Boa noite”, despedi-me já a pensar na minha mesa e no cliente que nela me esperava para fechar negócio.

“A noite escapa-nos por entre os dedos com a mesma força com que o destino nos agarra”, respondeu-me de copo levantado.

 

r o w t a g

despesadiaria às 20:44
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Quinta-feira, 25 de Setembro de 2014

 

Caderno de costura, 06

 

Uma choina de néons em baixo de uma parede: o bar. Mas não é no bar que me esperam. É nesse caixote, ali, do outro lado da rua. No alto, um jorro lateral de luz que afirma cada tijolo como alguma coisa viva e domada. As curvas, numa necessidade de riqueza mais que de resolução, conferem ao Palazzo D'Annunzio esse aspecto pastoso de basílica cortada pelo meio. No fundo é um golem barroco, uma estátua de gesso com peruca. Lá dentro, riscados por reflexos opacos, os móveis reagem com estranheza à situação, contraem-se, como um leve recuo de mandíbula. Debaixo da claridade aderente de um pequeno reflector, dois gajos pintados a óleo na parede: estão sentados em degraus, a tocar punheta um para o outro, com uma fatia cítrica de lua minguante a pairar acima deles. Que figura triste. Espero que acabem a girar bem devagarinho num espeto, no fundo dos infernos. Na outra parede, três bailarinas gordas a rodopiar numa ciranda. Muito bonito: corpos que são apenas círculos, num movimento invertido de ponteiros. Desço um tampo de mármore. À esquerda, um coqueiro com ares de Arlequim de Picasso foi desenhado na porta do WC. O bafo quase equatorial de merda recém-evacuada entra nos pulmões como a mão quando se enfia numa luva de borracha. Depois de evitar os fios telefónicos que pendem lamentavelmente do tecto como uma cabeleira rígida recoberta de sujeira, continuo pelo corredor. Tenho a impressão de estar a mergulhar numa terrina de consomê morna. É como entrar num sono de Seconal - que é o mesmo que ser como um olho que sobe e que, esperando o cheio, encontra apenas o lazer e o vazio.

 

Peor

despesadiaria às 01:47
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Quarta-feira, 24 de Setembro de 2014

 

I

Orfeu digere o jantar obsoleto que Eurídice lhe tinha deixado num tupperware antes de entrar na serpentina da madrugada: a estação de comboios estava vazia, as horas cíclicas da população ainda não tinham ecoado o seu alarme, caminhava à beira da linha farejando o odor contaminado do mel. Com uma mácula na vista esquerda, Orfeu vislumbra permanentemente a dança de um fole a soprar-lhe nas têmporas. Lembra-se de agora, desaparece nas metamorfoses da mente, tece composições novas nos ouvidos, a lira destemperada a escurecer de aranhas no canto do quarto: uma luz extinguiu-se, não há lâmpadas nos candelabros dos homens. Na sala, o vídeo transmite o cenário das apropriações toscas da sua criação maior e, enquanto a cabeça de javali guincha no estômago e a laranja que lhe cobria o focinho escorre pelos dedos cinzelados, a notícia do não-regresso chega. Estava bem. Não ia resgatá-la, a sua ausência sobrepunha-se à ordem narrativa, a cegueira já era o inferno, não comparecia na segunda morte, era preciso que um epílogo determinasse o princípio da queda. Dizia-se que era um velho poeta velho recostado na cadeira do mito, com um copo infinitamente meio vazio de Cardhu, umas gravações perdidas da Karen Dalton que lhe chegaram não sabe de onde e um estilhaço à porta que fere quem chega.

 

gisandra

despesadiaria às 20:04
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Terça-feira, 23 de Setembro de 2014

 

Para a Ana Rita

 

Vida interior

 

Se eu não estivesse tão feliz, não me tinha esquecido que era domingo, não tinha posto o lixo lá fora, os cães não teriam revirado o conteúdo do saco, o passeio não teria ficado pegajoso da feijoada que deitei fora e eu não teria escorregado e caído nas profundezas da minha miséria, atestada por toda a santa alma de bata. A felicidade não compensa, minha querida, mais vale vestir o pijama do avesso e esperar que chova. O que o universo tenciona fazer comigo, sei-o desde que a Anita declamou uma página do meu diário. Nunca mais tive um sono descansado na vida, eu, o Júlio, o Tiago, o César, o Daniel, o Joaquim, estás a ver, claro, que eu nunca gostei de me desgraçar sozinha. Eu não vou em bruxedos ou cantigas, mas algo está podre num reino qualquer à tua escolha, e não falo do leite que se adiantou esta manhã. Antigamente, tínhamos relógios de pêndulo no coração da sala, cumpriam, imponentes e exactos, a sua matemática interior; a cada hora, mais uma badalada; uma coisa como uma certeza, que não nos deixava distrair-nos da vida. Quem é que se orienta sem um badalo? Sabes o que me disse a Benedita com aquela voz de reco-reco, que Deus a parta e me condene, que a salvação já nada pode? A Benedita disse-me que começou a ouvir a vizinha de baixo. Não é isso, tu sabes, começou a ouvi-la, como se estivesse ao seu lado. Comendo, levantando-se do sofá, preparando o banho. E imagina tu que a Benedita não disse isto como quem nos informa que ganhou uma super audição, que também era o que mais faltava descobrir-se agora que a desgraçada que teve os filhos por mim com o homem que me pertencia é extraterrestre, não, ela disse isso com um espanto macabro nos olhos, uma coisa como nunca vi, uma surpresa maior para ela do que para qualquer outra alma. Agora diz-me se não é de perder os pêlos dos braços todos de uma vez. A mim cheira-me a coisa que há-de vir. E ainda vou ser eu a vê-la primeiro que toda a gente.

 

– Não achas, Adelaide?

– Sim, Aida.

 

Menina Limão

despesadiaria às 16:20
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Segunda-feira, 22 de Setembro de 2014

 

Matador

 

Vinha de comboio pelas serras abaixo sem pensar em nada de especial. Tinha a missão bem estudada, dar um tiro nesse tal de Fuçulim, almoçar n’A Regaleira – (Rua do Bonjardim 87 - Código Postal: 4000 124 PORTO - Especialidades: Peixe: Açorda de Marisco; Arroz de Polvo; Grão de Bico à Regaleira. Carne: Cozido à Portuguesa; Tripas à Moda do Porto. Mas o que dá fama à casa é a convicção de que foi ali que nasceu a francesinha. Pois, consta que apareceu por ali um ex-emigrante da França que sugeriu ao dono uma espécie de tosta…)

- Mas a história é sobre a Regaleiro ou sobre o Timóteo?

É isto senhores, ser narrador hoje é isto. Aturar bêbedos de primeira fila, ouvir insultos como se estivéssemos a apitar um jogo da bola, sermos apontados na rua como se tivéssemos confessado ser amigos do Armando Vara.

Timóteo, está bem, o Timóteo. Há muita bibliografia e cinematografia empolada sobre quem mata por dinheiro. O Timóteo faz vinho, cheira mal, tem mulher e filhos, vive numa quinta do Douro mas não comecem já a entusiasmar-se porque não é uma coisa de gabarito, dessas que dão artigos sobre o novo enólogo do momento. É uma nesga de terra que lhe calhou em sorte quando o supremo azar bateu à porta do pai, da mãe e do irmão mais velho, ali na subida do Marão. A coisa meteu um camião revoltado com as linhas da estrada, fez muito barulho, enfim, é disto que se fazem tragédias

- Mas a história é sobre o aci…

Porra, ao menos ainda sobra ao narrador a possibilidade de calar quem deve ser calado. Por enquanto.

Pois o Timóteo há-de sair em São Bento, para apanhar o autocarro dos STCP para a Cedofeita. A filha Catrilína, 15 anos, esperta que nem um alho - só não vos explico porque é que o alho tem a argúcia de figurar em figura de estilo porque se me esgotaram os créditos para apartes, a ver se carrego isso no multibanco – disse-lhe na véspera que autocarro poderia apanhar para a Rua Álvares Cabral, parece que o 300 fica lá perto.

Mas, pelas oito e meia, Timóteo apercebe-se. Deu merda. Greve, diz  a folha A4 na paragem do autocarro.

-Ora foda-se.

Mete-se num táxi, mas não é a mesma coisa. O trânsito está terrível – é o Porto senhores, é o Porto – e vai chegar atrasado. No autocarro ninguém lhe perguntaria porque tem um saco tão comprido, a sugerir a caçadeira que afinal é uma velha arma sniper que surripiou ao Exército português em 1972, Guiné, Guileje. Agora vai ser visto pelo taxista, este vai meter conversa, vai ter que inventar uma desculpa parva, o cabrão do fogareiro há-de comentar com os colegas que viu um gajo suspeito, os colegas hão-de dizer, “vais ali à PJ e contas tudo”, e pronto, assim se fode uma carreira de 25 anos e 18 homicídios sem mácula, dinheiro depositado na Suíça, o sobrinho taxista sabe estar calado, não é como o outro.

E assim, em vez de seguir para a Cedofeita, o carro segue para Campanhã. Tem duas horas e 45 minutos para planear como é que vai explicar à família que têm de partir todos amanhã para a Suíça.

 

DoVale

despesadiaria às 11:36
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Domingo, 21 de Setembro de 2014

 

Disse-me um amigo, um dia, com algum cinismo, que todos nós temos direito a escrever um texto na vida sobre a dificuldade em escrever e não mais do que isso. Não fosse a minha falta de moderação na noite passada e talvez acordasse mais estimulado, não obstante a fisiologia, e com mais razões para o elogio dominical ou para a auto-comiseração, sem que a ideia de escrever sobre escrever me visitasse de novo. Terei já gastado os meus créditos. Porém, não me parece que escrever sobre "escrever sobre escrever" seja a solução indicada e o truque seria evidente. Podia, aliás, optar pela ficção sem ter de incomodar o leitor com o lugar comum do cronista falhado. Não posso, contudo, ignorar a falta de ideias. De pé, em frente à janela, com vista para as traseiras do bairro, tento encontrar um culpado - algo que me desperte para a romantização do quotidiano. Com a brisa a soprar o calor de Setembro e com o corpo a destilar a falta de moderação da noite passada, fico a olhar para os montes e concluo, com alguma simplicidade, que estou feliz. É domingo na Borda d'Água. A serenidade do meio-dia sossega os espíritos da agitação do sábado. A banda tocou, os barquinhos brincavam no Tejo, a Lezíria brilhava, um casalinho de pré-adolescentes entrava na avenida de mãos trémulas e com o coração nos olhos, as médias saíam frescas, cantou-se e fadistou-se num marialvismo inocente pela tarde fora, no cais. Já quase ao anoitecer, um Victorino Martín daria um volteo em Diego Urdiales que não perdoaria a estocada, vencendo o duelo da morte em Logroño. Durante todo o dia mal se ouviram as vozes descontentes e os olhos brilharam curiosos diante do novo edifício que irá, agora, acolher a memória desta humanidade, parafraseando George Bernard Shaw. É toda esta felicidade de existir aqui que monopiliza a minha atenção. Decerto, não haveria muito mais sobre o que escrever, nem nenhuma outra parte em que quisesse estar. For this is where i belong.

 

jorge c

despesadiaria às 13:49
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Sábado, 20 de Setembro de 2014

 

(Micções)

 

Quando a menina Vírgula chegou, já a refrega ia longa. E, afinal, tudo começara por causa dela. Há muito secretamente enamorado, o Ponto Final não perdoou um comentário menos abonatório, por parte do Reticências, às qualidades morais da menina Vírgula. Convenhamos: “essa grande puta que vai com todos” não é propriamente a apreciação mais honrada que se possa fazer a propósito de uma menina sempre tão simpática e solícita. Mas, na verdade, o ódio entre Ponto e Reticências já era antigo e conhecido por todos. Ainda que os arrufos fossem uma constante entre ambos, nunca tinham chegado a um nível tão grave como naquele dia. O malfadado comentário inicial deu origem a uma resposta cáustica, logo seguida de uma réplica venenosa, que foi prontamente treplicada com um desafio para duelo; ao que se sucedeu uma murraça nas ventas, tendo a refrega descambado numa grande rixa com vários intervenientes que entretanto ali acorreram. O Ponto de Exclamação, após um forte pontapé nas partes pudendas,  ficou num oito. Ao Ponto e Vírgula, com tanta cacetada recebida, já não era possível distinguir onde começava o ponto e terminava a vírgula. Quanto ao Ponto de Interrogação, acometido de inexaurível dúvida, não foi capaz de tomar partido na contenda. O Dois Pontos também se encontrava profundamente dividido, tendo-se mantido à margem do confronto. As Aspas e os Parênteses, também à parte, trocavam galhardetes de indignação entre si, numa profusão de citações de autores pacifistas e acrescentos inúteis sobre a história da violência na literatura.

Nisto, no momento em que a menina Vírgula se aproximou da altercação, um grito lancinante ressoou por toda a página÷

− Aiiiiiiiiiiiiii8, clamou o Ponto Final enquanto caía por terra com uma faca cravada no lombo.
Atónita com toda a tragédia que se debatia aos seus olhos, Vírgula apenas teve tempo de correr para a desditosa vítima, segurando-a aos seus braços, e incapaz de proferir qualquer palavra.

Ao vê-la, Ponto Final esboçou um esgar de felicidade. E, tomando forças para dizer algo, contorceu-se para chegar próximo da lívida face da Vírgula.

− Se soubesses o quanto te amo, sussurrou-lhe ele ao ouvido no seu último sopro de vida

 

nev

despesadiaria às 08:23
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Sexta-feira, 19 de Setembro de 2014

 

Continuam a tratar-me como se fosse responsável pelos meus atos. Não baixam os olhos nem atravessam a rua quando se apercebem de que, a menos que alguém tome uma iniciativa, o encontro será inevitável. Convidam-me para as suas casas com os propósitos mais diversos, quase todos englobáveis nos padrões de convivialidade associados àquilo a que se convencionou chamar a “sociedade ocidental”. Deixam facas à minha mão de semear enquanto continuam a conversa acerca de como se pode ler Primo Levi e ainda assim praticar bungee jumping. Perguntam-me se se podem sentar à minha mesa na esplanada, o que ando a fazer, o que ando a ouvir, o que ando a ler, como ando, se já comecei a correr e que aplicação uso para publicitar os resultados. Presumem-me capaz de compreender os seus problemas amorosos, laborais, existenciais e familiares. Supõem que também os tenho e tentam analisar e compreender os meus processos para os administrar. Chegam ao ponto de me pedir conselhos e cigarros, de mos dar com deferência em vez de indiferença, de me pagar cervejas a pretexto de aniversários, de me deixar a descendência à guarda enquanto vão ao multibanco levantar dinheiro ou, quando já não há, tirar um triste talão de saldos e estagnações. Que aguarde mais um bocado que já estão a caminho, uma cebola porque me esqueci de comprar, esta minha cabeça, em quem vais votar no domingo. Várias vezes pensei se não terei entrado sem ver num mundo ao avesso, mas desta ideia faz-se um nó que me torna incapaz de chorar. Não sei quanto tempo mais conseguirei aguentar a pressão que esta cidade fabrica a partir da perversão do contacto humano, do vício que se satisfaz na partilha da fragilidade dos corpos. Como podem não ver, como podem não notar, por que razão me fazem isto, quando de mim só obtiveram bons modos, compreensão trabalhada e gestos que qualquer víscera de boas famílias entenderá como sinais de cumplicidade? Por exemplo, a noite passada na discoteca: quando me puxaram para a pista de dança ao som dos zeros, torci a orelha até fazer sangue para ver se estava acordado. Estava.


E.

despesadiaria às 00:32
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Quinta-feira, 18 de Setembro de 2014

 

Há pelo menos duas horas que não pára de chover.

Sentado no chão, de olhos na lama, teve vontade de tirar as botas, deitar-se para trás, mandar tudo às malvas. Recordou discussões dos pais, a vista sobre Lisboa, o barco. Agarrou um bocado de barro nas mãos, imaginou-o areia quente, imaginou-se numa arena em Agosto, homem de cara, Sol forte. Correu sonhos antigos: todos eles profissões de coragem, é assim que se sonha na infância, pensou. Se fugir à confusão, se fizer agora tudo bem, dirão que foi inteligente, e que salvou o dia quando outros perderam a cabeça, mas é um heroísmo sem carácter, convenceu-se.

Já esteve em piquetes e lockouts, e sempre lá à frente, de peito aberto. Enfim, isto não é nenhuma guerra, só parece. Pensar noutras merdas: é preciso outro berbequim, fez uma lista de compras mentalmente, papel higiénico, desentupidor, diluente, ando nisto de acabar o anexo há quase um ano, mau aspecto do caraças... Lembrou-se do bife da Trindade, e da gaja do Samouco aqui há uns anos. Ia deitando tudo a perder com esse disparate.

Levantou os olhos, para os camaradas, que continuavam naquela zorra com os outros, uns investiam, uns agarravam-se, até um apito autoritário ter reposto a ordem possível. Ergueu-se, soprou o bigode e avançou, como se não fosse suposto falharem-lhe as pernas. Andou dois passos, correu os restantes, até junto deles, sem esforço. Nove horas por dia a malhar nas rodas do comboio com uma marreta de oito quilos nas mãos talvez seja essa a explicação para a tal força de que vocês falam, mas o fumo da forja anda a dar cabo de mim, disse-lhes uma vez.

Já tinha passado da hora há muito, faltava só este momento, pegou na bola, ajeitou-a para o penalty de uma falta que ele próprio sofrera, e contou as passadas para trás. O mais velho aproximou-se, deu-lhe um murro no braço e piscou-lhe o olho: acaba com isto, Carlos.

 

Gouveia

despesadiaria às 13:49
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Quarta-feira, 17 de Setembro de 2014

 

will i see you tonight 

 

é como quando percebes que ela afinal não vem: voltas a meter a travessa no forno, tiras um prato da mesa para disfarçar a ausência, esqueces a cozinha pelo sofá e trocas o barry white pelo tom waits. pensas que se calhar aconteceu alguma coisa, mas no fundo sabes que o problema é que não aconteceu nada. a solidão é feita destas coisas: um copo de vinho, um downtown train e um texto deprimente. tentas rir com aquilo tudo e iludes-te, sonhando com literatura e com as mamas dela. se calhar fundamental é mesmo o amor/o caralho [riscar o que não interessa]. 

 

um tal de joão gaspar

despesadiaria às 19:24
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Terça-feira, 16 de Setembro de 2014

 

Segue-se uma interrupção na programação. Pedimos desculpa pelo incómodo.

 

Estou tão bronzeada quanto me é possível. Quando me vejo nua no espelho do quarto, as minhas maminhas parecem feitas de neve. Dos livros que li frente ao mar, numa cadeira azul que o meu peso enterrava na areia até as nádegas roçarem nos sedimentos micrométricos, fiquei com as clavículas cobertas de caramelo bem apurado. Nenhuma outra parte do corpo iguala o tom torrado que se estende do esterno ao contorno arredondado de cada um dos meus ombros. A barriga é um copo de leite servido numa chávena de café mal lavada: apoiava os livros na zona do diafragma e eram como os toldos compridos dos cafés, mantendo o umbigo na sombra fresca. Para tirar das costas o branco doentio de dois anos sem estender uma toalha na areia, lia deitada de barriga para baixo, fincando os cotovelos na areia com força, ou então levava os livros para a beira-mar, onde ficava de pés mergulhados na água.

— Não podes largar isso?

Aproveitava a baixa-mar para dar descanso aos olhos. Ia para as rochas procurar caranguejos. Todos os dias levava para a praia a faca das lapas — não a comprei com esse nome, mas por vários anos usei-a para raspar vida das rochas. Não a desembainhei: as maiores lapas que vi eram do tamanho de terceiras falanges. Olhei-as, desiludida, lembrando os molúsculos do tamanho de polegares que cheguei a apanhar na Arrifana. Homens de chapéu largo e calças caqui procuravam nos buracos das rochas as minhocas para o remolhão. Mais tarde via-os empunhando com orgulho polvos do tamanho de uma mão, talvez ignorando a atrocidade que é pescar bichos tão mimosos, que nem um pires enchem depois de cozidos.

O sol despedia-se do verão com uma generosidade surpreendente; um sol forte, de um branco sufocante. As gotículas de suor formavam-se sobre a minha lombar e eu lavava-as no mar. Saltei sobre as ondas, agarrando sempre a parte do biquíni que a corrente queria arrancar, e mergulhei para fugir de outras, emergindo depois com o cabelo a cobri-me as omoplatas. Só numa tarde fiquei sentada nas dunas, impotente perante a natureza que me encarava, sentindo o meu próprio sal sem remédio. Nessa tarde, a maré devorou quase todo o areal e eu diverti-me com a urgência das pessoas que viam as suas toalhas encharcadas pela extensão da vaga — cada uma varrendo mais castelos que a anterior. As ondas rebentavam com estrondos ocos, sucedendo-se numa cadência tal que pareciam ecos de um único brado primordial; iras que convergiam em estoiros ensurdecedores, o mar enquanto criatura monstruosa. Mas vendo como as ondas se somavam em montanhas líquidas e refulgentes, nascia a paz como eu nunca a tinha sentido. As rebentações furiosas pintavam a água de branco e ofereciam-lhe uma textura macia, e por cima delas deitavam-se nuvens rubensianas; a alvura celeste unida com a espuma: apetecia-me ser engolida pelo monstro melífluo, deixar o meu corpo ser centrifugado na base das ondas, reorganizar-me em camadas, acabar cuspida na areia como um novo ser feito de seixos e conchas partidas. Cheguei a ler um dia que a morte por afogamento era a mais doce.

Trouxe uma garrafa de aguardente de medronho para o meu avô. Para vocês, tentei trazer uma história bonita, contada a tinta azul nas páginas de um moleskine cheio de areia, mas gastei os últimos trocos numa tarte de batata doce. Arranjei-vos então esta outra história, a minha, a que se vai contando.

 

S. White

despesadiaria às 08:31
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Domingo, 14 de Setembro de 2014

 

Uma luz pálida entra pela janela e cobre parcialmente o teu corpo imóvel, imitando a realidade lá fora. Eu contemplo-te como um imperador, sentado numa direcção propícia, tentando nada fazer que perturbe a espontaneidade da natureza.

 

(O amor não é uma democracia - não é um parlamento a dois, e nos nossos sonhos apenas conseguimos ser monarcas ou anarcas. A raiz primordial da consciência não joga à política e não conhece a lealdade.)

 

No oceano profundo da noite  

onde a lua mergulha cheia

uma baleia na areia

 

Na mitologia e folclore orientais, apenas por intermédio especial e indirecto das crianças se conseguem domar as criaturas caóticas ambivalentes surgidas do colapso da ordem civilizacional. Ou pelo menos, foi isto que ouvi dizer.

Já é segunda-feira outra vez e volto a deitar-me ao teu lado.

 

gatwor

despesadiaria às 23:52
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Sábado, 13 de Setembro de 2014

 

Com a benção de D. Manuel Clemente e com o apoio passional do Craveirinha, embarquei no comboio das seis da tarde para constatar que o meu amor-próprio teria de vir, fatalmente, de lá. (Da França.) Sim, eu inclusive desconfio que há os que amam a França e os que lhe acham graça mesmo assim. No entanto, para me proteger da bicharada, e daquilo que o Eric Rohmer foi noutros lugares, talvez fosse ou viesse a ser melhor escrever (daqui até a hora aproximada da Parousia) pelo menos dois Eclesiastes e um Livro de Jó por semana. O que, à conta da vida que tenho, resulta sempre espontaníssimo.

 

Peor

despesadiaria às 16:13
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Sexta-feira, 12 de Setembro de 2014

 

escriba

 

Alinhou as personagens cuidadosamente no grande quadro de cortiça. Demasiadas séries policiais americanas convenceram-no da pertinência da tarefa. Deu-se até ao trabalho de esticar pequenos fios entre as figuras desenhadas à mão e manuscritadas com o esmero possível em post-its e outras folhas que não merecem nome estrangeiro. Construiu complicadas teias de relações que, inevitavelmente, deixou de compreender ao segundo cruzamento das linhas. Apesar do Agosto, acendeu a lareira. Meia hora de fumo e palavrões até vir a chama inspiradora.

Mas enfim, dois dias depois estava tudo pronto. Releu as fichas das personagens com a ponta dos dedos, como se a coisa estivesse escrita em braile.

 

- O cabrão tinha uma letra horrível, mas também não exageremos!

- Posso continuar?

- Sim... desculpa

 

Epistínia – Prostituta de alta sociedade, 28 anos, morena, olhos verdes. Bonita, manipuladora, calculista. Inteligência muito acima da média. Profissional, cuidadosa, precavida. Gosta de sopa de nabos

Filintino Elisteu – Escriturário, boémio, poeta, gargalhador estridente. 40 anos, moreno, olhos castanhos, calça 45. Divorciado duas vezes, sem filhos. Ontem comeu garoupa

Abestino Meira – Chefe da polícia, gordo, gel no cabelo, vaidoso, casado com uma imigrante chinesa que salvou de ser devorada pelo SEF. Tem uma filha de olhos rasgados e desconfia

Farélia Parcífoca – Empregada doméstica, limpa as casas de Epistínia, Filintino e Abestino. Tem 48 anos e ainda não sabe muito sobre o que anda a aqui a fazer. Tem marido a menos e filhos a mais

Estribiteu – Perdeu a declaração de IRS e ficou sem resposta ao habitual “o que faz você?”. Joga matraquilhos na associação recreativa e diz que a mulher fugiu, vai para dois anos. Comprou o carro na Internet contra o conselho dos amigos, poucos e parvos

Abastéria Falacundo - Ainda não tem idade, corpo e instrução definida, mas há-de entrar na história para desanuviar o ambiente com a sua 'joie de vivre' e a desconcertante capacidade de não levar nada a sério. Se não for esta gaja a fazer rir o leitor, temo que estou fodido.

 

Parou para tomar fôlego. Percebeu que entrava em manobras dilatórias. Já tinham passado mais de cinco dias e continuava com a primeira página irrepreensivelmente em branco. A casa fora arrendada por uma semana, porque se fosse alugada vinha logo um espertinho do caralho dizer que os bens imóveis não se alugam. Fez a mochila e desceu a encosta até à cidade. Veio o caminho todo a imaginar qual o pior cenário possível caso o comboio falhasse o corte perfeito que imaginou no seu pescoço.

 

DoVale

despesadiaria às 09:23
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Quinta-feira, 11 de Setembro de 2014

 

Por vezes tomamos pequenas e irrelevantes decisões para as quais a prudência se revela fundamental. Talvez tenha sido essa consciência que me levou a tolerar o esquecimento das chaves de casa, depois de ter atravessado a cidade com as dificuldades do calor. Parei em frente às escadas, levei a mão ao bolso e, no instante em que me apercebi da imprudência, sorri e voltei à origem. Forçado a passar a hora do almoço numa esplanada, disposto a não projectar no mundo a fúria da minha própria frustração, ali me deixei ficar, vencido pelas temperaturas. A felicidade começa quando nos reconciliamos com a serendipidade do mundo. Quando crescemos, queremos crescer, paramos de nos divertir, tornamo-nos caprichosos e prudentes, em excesso, na direcção do ocaso que assim nos faz fatalistas. Só depois de renunciarmos a esta imposição da adultícia aproximar-nos-emos de uma felicidade antiga, menos infantil, mais livre. Porque é esse o momento da tolerância e da empatia, aquele em que deixamos de levar tudo muito a sério. Agora que reparo, começou a chover.

 

jorge c

despesadiaria às 08:28
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Quarta-feira, 10 de Setembro de 2014

 

(Micções)

 

Laurinda era puta, e recebia numa Ford Transit de 89. Eu já há muito reparara naquela velha furgoneta, discreta e estrategicamente estacionada num dos acessos em terra batida que segue da nacional para o interior do pinhal. A povoação mais próxima fica a uns oito ou nove quilómetros de distância daquele local, facto que permite a Laurinda receber a clientela (composta maioritariamente por motoristas de pesados, velhos miseráveis, e outros desgraçados) com o recato e sossego necessários ao ofício (apenas interrompido pelo constante e monótono bramido do trânsito na nacional). Entre a furgoneta e Laurinda poderíamos dizer que não havia muita diferença de aspecto: apesar de velho e desgastado, a idade de ambos manifestava-se de uma forma digna e cuidada, não denunciando, à primeira vista, as agruras e dificuldades da vida pessoal de cada uma.

Naquele final de tarde, e após certificar-me, de longe, que Laurinda se encontrava só, aproximei-me cautelosamente da velha carrinha branca, abeirando-me da porta do lado do condutor. Como não se apercebeu da minha presença (estava a ouvir música e a ler uma revista), não tive outro remédio que não bater no vidro. Estranhamente não se assustou com a minha súbita aparição, sobretudo se considerarmos que me apresentava com um capacete e equipamento de licra, e segurando a bicicleta com uma das mãos. Olhou-me apenas com curiosidade, baixando de seguida o vidro da janela ao notar o mau estado físico em que me encontrava. Expliquei-lhe que sofrera uma queda no pinhal, e estava em crer que tinha a clavícula partida. Como ficara igualmente com o telemóvel em frangalhos, pedi-lhe o favor de me permitir fazer uma chamada para alguém que me viesse buscar. Não só não o fez, como me obrigou autoritariamente a entrar para a Transit, incumbindo-se ela própria de meter a bicicleta na parte de trás da carrinha. Transportou-me de seguida, e a toda a velocidade, para o Hospital da cidade de V. Local onde, além da clavícula fracturada, detectaram-me um trombo numa das artérias do braço, cuja demora na remoção poderia implicar consequências bem mais nefastas.

Ainda hoje costumo ver a velha furgoneta estacionada naquele mesmo local. Porém, não mais falei com Laurinda, e, na verdade, nunca lhe cheguei a dar o devido agradecimento.

 

nev

despesadiaria às 15:29
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Terça-feira, 9 de Setembro de 2014

 

As tropas entregaram-se ao vinho verde e os que ficaram para trás, com as orações e as crianças a cargo, converteram-se ao desleixo do agnosticismo. É isto o que sobra da guerra para endireitar o que está torto: expediente: campos de batalha onde já não se veem, sequer, os escombros fumegantes que outrora serviram de segundo plano às sélfis para memória futura. Digamos e escrevamos que acabou. O torto continua torto e torto morrerá. O que falta é a assunção, a carruagem de comboio no meio do bosque e a caneta para assinar a papelada.

 

Postbellum é sinónimo de antebellum: a guerra para torcer o que está direito em breve trará uma nova poeira para preencher as rugas de expressão, um renovado desespero capaz de anular o dia-a-dia, o nascimento de uma urgência que desculpe o consumo da(s) noite(s). A máquina, auditada e certificada (ISO 9001:2008), está a postos para este ou qualquer outro conflito. E os territórios estão desde sempre marcados com a urina de sucessivas gerações de sonhadores. Não há razões para continuar a adiar a substituição do odor a amoníaco pelo cheiro a carne queimada. Só espero, em ambos os sentidos, que comece a tempo de me salvar das obrigações que fui contraindo como doenças que não consigo curar.


E.

despesadiaria às 17:39
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Segunda-feira, 8 de Setembro de 2014


Numa praceta do Lumiar, dois arrumadores encontram-se todas as quintas para um cozido num dos restaurantes locais. Neste ramo o período de almoço é um dos mais movimentados, pelo que só se sentam à mesa lá para as três da tarde. Começam por conversar sobre o trabalho, fazem, sem agenda, uma análise SWOT da actividade (Strengths, Weaknesses, Opportunities, and Threats). Um deles, por exemplo, decidiu deixar de indicar lugares demasiado evidentes por ter notado que criava no freguês uma animosidade desnecessária. Hoje é procurado por Mercedes e Jaguares, prova que optou bem. O outro é coxo, óbvia fraqueza que o impede de correr (um dos hard skills mais importantes da profissão), mas compensou com enorme sentido de posicionamento. Location, location, location, that's what this business is all about, costumam dizer aos jovens que se iniciam na carreira, assim mesmo, em inglês. Oportunidades e ameaças não faltam, claro. Estiveram entre os primeiros arrumadores do concelho a aproveitar os cortes nas carreiras da Carris, e a ocupar as zonas mais massacradas pela restruturação dos transportes públicos, mas a expansão da EMEL é uma espada de Dâmocles que paira em permanência. Têm feito o lobby possível, junto de associações de moradores e não falham uma reunião pública da Assembleia Municipal. Até ver o perigo parece controlado.

 

O trabalho é assunto que despacham rapidamente, e habitualmente falam do Sporting, de ciclos de cinema (o coxo é programador num cineclube em Loures), das mulheres, de mulheres, inevitavelmente de comida, bons restaurantes, onde se compra bom peixe, a tragédia do encerramento dos mercados da cidade. Uma hora e meia bem passada.

 

Por vezes, como nesta quinta-feira, aproveitam e reúnem com o contabilista. O exercício está a chegar ao fim e convém planear o fecho de contas com antecedência. O sistema único de pronto-pagamento não permite acréscimos de proveitos, mas é comum planear alguns diferimentos de custos para o ano seguinte: coletes, calçado, seguro de acidentes de trabalho, enfim, o habitual destas situações. O Técnico Oficial de Contas não traz boas notícias, no entanto. As gorjetas, recentementemente incluídas na categoria A2, passam a estar sujeitas a imposto de rendimento e contribuições para a Segurança Social. Ainda perguntam, mas isto está equiparado a gorjetas?, não pode ser donativo?, ao que o contabilista garante que o carácter de regularidade e a prestação de serviço que precede o rendimento o equipara à gorjeta. Então, mas não declaramos, se o problema é esse, não declaramos, mas são lembrados que não declarando o proveito, e com os actuais custos fixos, os resultados negativos teriam consequências no empréstimo bancário e nas contas caucionadas. Na melhor das hipóteses o spread disparava, na pior cancelavam o financiamento.

 

Decidiram que o melhor seria falar com o advogado no dia seguinte. À sexta, o restaurante mais acima serve um arroz de garoupa famoso em toda a zona norte da cidade, e teriam tempo para analisar outras hipóteses. Talvez fosse o momento de constituir uma cooperativa ou uma associação sem fins lucrativos. O contabilista concordou, pediram os cafés, três Ramos Pinto e a conta.

 

Gouveia

despesadiaria às 09:14
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Domingo, 7 de Setembro de 2014

 

uma coisa perigosa

 

em the shawshank redemption, a personagem do morgan freeman - apropriadamente apodada de red -  avisa-nos que a esperança é uma coisa perigosa. mais do que a esperança, perigoso é o optimismo. a esperança implica o passar do tempo, e o tempo cura tudo. se não cura, pelo menos mata. menos mal. não podemos tirar a espera da esperança, e esperamos que corra tudo bem. pelo menos esperamos, menos mal. já o optimismo é mais imediato. o optimismo está a meio passo da fé, a mais perigosa das irracionalidades. um optimista, mais do que confiar, acredita. crê que é capaz, sem se dar conta da desambiguação semântica que o crer encerra. crê como quem palpita. crer não é crer. crer é querer acreditar. todos querem ser optimistas porque o optimismo ilude (e isso é útil, não nos iludamos). os governantes dizem-se optimistas, os treinadores de futebol estão sempre optimistas, os mercados querem estar optimistas. todos têm um produto a vender, e a fé do optimismo vende melhor que nada. os consumidores, cegos, querem ter um olho para ser os reis do optimismo. a esperança é mais inócua. eu espero, tu esperas, nós - desesperados - esperamos. e o tempo passa. não é mau. espero, sento-me, e faço um manguito ao optimismo.

o optimismo é uma coisa perigosa. que o digam os gajos da armada invencível. 


* texto publicado há quase cinco anos noutro sítio, que não interessa para nada no sentido em que não tem interesse nenhum. ligeiramente editado porque me apeteceu. o shawshank redemption já faz este ano vinte anos. dedicado a todos os que estão nesse sítio de esperas e de esperanças chamado avante. 

 

um tal de joão gaspar

despesadiaria às 06:38
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Sábado, 6 de Setembro de 2014

 

A nogueira centenária e o Cotovelo: notas sobre duas memórias do Oeste

 

O Cotovelo

 

O Cotovelo é um lugar, delimitado por duas placas brancas onde o seu nome é gritado em letras negras, não serifadas, cagadas pelos pássaros e gastas pelo tempo. A primeira placa dista poucos metros da sua gémea, esta cortada diagonalmente por uma decidida risca vermelha; esses metros torcem-se na segunda identidade do Cotovelo: uma curva; nela a trajetória alcatroada da estrada nacional dobra-se violentamente, como um cotovelo encaixado no ângulo mínimo entre o braço e o antebraço de uma pessoa; o Cotovelo-lugar e o Cotovelo-curva confundem-se num só olecrânio arredondado, espetado entre as vinhas e os primeiros pomares de pêra-rocha, na forma extrema da contorção física permitida quando a mão tenta tocar no ombro que lhe fica por cima.

Meia dúzia de casas baixas vivem encurraladas por esta trágica prega da estrada nacional. A maior parte delas comtempla os carros que passam a partir da estreita berma empoeirada, mas outras refugiam-se no interior da curva, e entre elas abre-se um carreiro cimentado, da largura de uma carrinha. As fachadas caiadas são enfeitadas por faixas azuis ou amarelas que delimitam o contorno das portas e das janelas; as pinturas dos reis rasgam a brancura das paredes rugosas: um vaso solitário e dois corações entrelaçados pintados na madrugada, o desejo de bons reis e as iniciais V.R. marcadas a azul. Nos exíguos quintais levantam-se limoeiros e nespereiras, à sua sombra montam-se mesas de plástico encardido e casotas de madeira; nos terrenos mais fartos há lugar para adegas improvisadas, inundadas pelo odor castiço do mosto a fermentar.

No princípio daquele outubro extraordinariamente quente, a casa onde moravam a Dona Isabel e o marido ainda conservava as pinturas do ano anterior, e do outro antes desse; a casa ficava mesmo à entrada do Cotovelo: uma construção atarracada e angulosa, com uma faixa azul colada ao chão de cimento do quintal. Hortênsias arroxeadas e estranhas samamboias de tez amarelada ocupavam o declive entre um estendal colocado no limite do cimento e a berma da estrada.

Parei o carro num espaço para o efeito, atrás do caixote do lixo que servia a minúscula população do Cotovelo. A Dona Isabel estava à minha espera, encostada ao sinal que anunciava o fim da proibição de ultrapassagens, com as mãos enfiadas no bolso oval da bata. Era uma mulher baixa, muito bronzeada do trabalho no campo, com o cabelo curto manchado de cinzento, como se tivesse passado debaixo do escadote de um pintor e alguns salpicos de tinta lhe tivessem acertado na cabeça. Sorria sempre, a tudo e a todos, a simpatia dos grandes dentes salientes a saltar-lhe dos lábios grossos, rachados do sol.

— Ai rapariga, ‘tás igual à tua mãe! — disse a Dona Isabel quando me viu sair do carro. Virou-se para trás, fitando alguém escondido atrás da selva de hortênsias por aparar. — Jorge? Acorda, homem!

Atravessei a estrada, remirei várias vezes um lado e o outro à procura da segurança que sabia nunca ter naquela curva cega. Quando cheguei ilesa ao outro lado, recebi um abraço capaz de me esmagar as costelas; olhei por cima do ombro forte da Dona Isabel e vi o marido levantar-se pesadamente da cadeira de plástico onde dormitava. Ao seu lado estavam duas das três sacas de nozes das quais a minha avó falara.

Atão, paraste o carro ao pé do caixote, foi? — o homem coçou a sua grande barriga e ajeitou a boina quadriculada que apoiava no cocuruto. — Vais ter que m’ajudar, ist’inda é pesadote.

Subi a rampa cimentada que dava acesso à casa e cumprimentei o Senhor Jorge com dois beijinhos rápidos e fugidios. Cumprindo com as suas instruções, agarrei numa das extremidade da primeira saca; o homem agarrou na outra e descemos assim a rampa, em direção à estrada: ele apoiando parte do peso na falsa gravidez e eu às arrecuas, tentando não tropeçar nas falhas do pavimento. A Dona Isabel fora para a extrema do Cotovelo e daí gritava direções:

— Podem vir… Ouviram? PODEM VIR!

Conseguimos transportar as duas sacas de nozes até ao outro lado da estrada; ficaram encostadas a uma pequena murada, atrás do carro, à espera: a Dona Isabel e o marido insistiram que eu voltasse à casa deles para ir buscar uns sacos de maçãs ácidas:

— São parecidas c’as do teu avô, vais gostar — insistia a Dona Isabel, sorrindo ainda mais, com os dentes e com os olhos escuros, enormes quando vistos através da graduação dos óculos de massa arredondados. Ficámos a conversar no pequeno quintal, enquanto o marido desapareceu nas traseiras da casa, onde estava o barracão cheio de alguidares de fruta; de repente, ouviu-se o brado agudo de uns pneus desgovernados.

 

S. White

despesadiaria às 09:00
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Quinta-feira, 4 de Setembro de 2014

 

Lírios selvagens

 

Quando ela saiu do quarto de banho, ele já estava todo nú e a bebericar outro whisky. “Anda”, disse-lhe, “quero te lamber essa cona toda”. Ela despiu-se e colocou-se de quatro em cima da cama. Adorava sentir o nariz dele a esfregar-se no seu cu enquanto ele a lambia. Os barulhos propositadamente obscenos que ele fazia deixavam-na louca de desejo, e não demorou muito até que agarrasse as nádegas com ambas as mãos para as abrir tanto quanto pudesse, enfiasse a cabeça na almofada e soltasse por ambos os lados todo prazer que sentia.

 

Tudo isto se passou há pouco mais de meia hora, mas parecia-lhe tão longe agora. Deitada na cama, despenteada, suada e ainda um pouco corada, olhou-se no gigantesco espelho de tecto e sentiu-se feia como há muito tempo não se sentia. Quer dizer, nunca se tinha considerado propriamente uma mulher bonita. Sempre tinha sido gorda e sempre tinha usado óculos bastante graduados pelo que, durante a adolescência, chegou mesmo a pensar que nunca iria conseguir fazer com que algum homem a amasse. No entanto, a ideia que tinha de amor foi-se modificando com a idade e se, mesmo no casamento, essa sensação de fealdade, de repulsa, nunca se tinha verdadeiramente dissipado, com ele tudo foi, era diferente.

Trabalhava para ele há 10 anos e tinham um caso quase desde o princípio. Ele também não era propriamente bonito, e era uns bons 15 anos mais velho que ela, mas qualquer coisa nele a atraiu intensamente desde a primeira vez que se viram. Num daqueles serões natalícios de fecho de contas, foram os últimos a ir para casa. O olhar predisposto dele foi quanto bastou.

 

Ainda não acreditava completamente no que ele lhe tinha acabado de contar. A empresa ia falir e ele ia fugir para o estrangeiro! Mais, precisava da ajuda dela para falsificar alguns papéis da contabilidade porque andava há uns meses a desviar o dinheiro das retenções na fonte.

Acompanhado pelo som do autoclismo, ele saiu da casa de banho com outro copo de whisky na mão. “Levas-me a casa?”, perguntou de forma quase retórica. “É que já estou muito bêbado para pegar num carro”.

 

Saíram da garagem do motel. Ela conduzia à mesma velocidade a que os seus pensamentos se sucediam dentro da sua cabeça, ou pelo menos tentava. Queria fugir dali o mais depressa possível, fugir dele, fugir dos colegas, fugir de si própria. Ele, apesar dos planos cuidadosamente delineados de aproveitar a viagem para a convencer mais um pouco, adormeceu embriagado mal o carro entrou na auto-estrada. Ela sentia-se esquizofrenicamente indecisa, como se estivesse presa num colete-de-forças mental, e quanto mais puxava por um dos lados mais era puxada pelo lado oposto. Encontrava-se totalmente dividida entre o único homem que a tinha feito sentir-se desejada e amada, mesmo que agora ele a fosse abandonar, e a amizade, solidariedade ou simples decência que a ligava aos colegas do trabalho, por muito que fossem maioritariamente uns tristes e uns invejosos sem qualquer tipo de ambição na vida.

 

Foi aquele breve instante, em que deitada na cama do motel se olhou ao espelho, que fez pender a balança. Ela sabia que lhe seria insuportável voltar a sentir-se tão feia, e ainda por cima sem ele ao seu lado a mostrar-lhe que na realidade não o era. “Lá porque foi ele que mo deu, isso não lhe dá o direito de mo tirar”, pensou enquanto soltava o cinto de segurança dele o mais silenciosamente que conseguia.

De seguida, acelerou a fundo e guinou o volante.

 

R0wt4g

despesadiaria às 12:45
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Quarta-feira, 3 de Setembro de 2014

 

A única gaja vai sentada nas pontinhas, por respeito. O bote arrasta o fundo na areia. E o vão baldado entre nós e o mundo regurgita não sei que espessura de água aberta onde era preciso afundar-se. O solo é como uma argamassa de peixes mortos: cada passo amassa espinhas e conchas, respinga um lodo mesclado de escamas. A cratera é uma grande urna onde a noite amontoa-se de suas operações mágicas: Bernadetes de plástico, medalhas da Virgem. Uma cadeia de desaparições, num balé desordenado e sem peso, a escorrer da calheta por um cordão umbilical de salinas e areia. Os embarques atrasam diariamente, são uma espécie de miragem gasta. Pela praia, há bolas de vidro fosco para ler o futuro. Pacotes de folhas de tabaco secam sobre cordões. Entre os pretos bebe-se café apimentado. As mulheres dão folhas aos camelos ajoelhados. Convidam os que chegam a beber uma colher de água potável. As somalis são superfícies marrons e elásticas de carne entre a saia florida e o corselete estreito que desce dos ombros e cobre as tetas (tão atrofiadas nos machos como nas fêmeas). Em volta da capela (a casa é um nó de cordas bem atadas), centenas de velas e lanternas a querosene. Mais claro do que de dia. Por trás de paliçadas reluzentes de cartazes aonde se vão consolar casais cujos integrantes são sempre peças sobressalentes: limoeiros, romãzeiras, altas como adolescentes de quinze anos. Empórios de símbolos, rodeados de flancos e sacos de farelos. Balizados por faróis e ilhotas eriçadas de canhões, os ecos mais decorativos do mundo colonial. Um resíduo, descritível e seco. No céu, a lua descamba em meio a dois Oceanos evaporados. O sal e os cristais que ficam nas vidraças, vapores descoloridos, misteriosamente decantados, uma borra de marés e de pedras. Daqui avisto bois a subir, de regresso de uma noite muito mais essencial do que a nossa. Vão beber água da chuva que é a água do Oceano Índico destilada. O solo é um feltro húmido. Nos bares, a essa hora, não servem senão um cachimbo à turca ou à persa e café refervido. E o chiar de manteiga fundida dos grãos de café sobre as malhas da triagem liga todos os ruídos. Na mata, aves altíssimas, como os flamingos, atacam à bico tudo o que não é ave. Dizem que sabem arrancar olhos e desenrolhar garrafas. Para mim a matemática é simples: são cinco balas para elas e uma para mim. Mas não vieram. Sob as asas do ventilador, os sacos de açúcar e de arroz, os fardos de couro de boi e de peles de cabra, vão até o teto de chapas onduladas. Nas prateleiras, potes de café de cobre bem estanhado por dentro e por fora. Incensos de madeiras aromáticas. Pela janela aberta um verdelhão flutuante de algas entre nuvens de lixívia. Estilhaços atrás de uma aba de rochedo. A cidade, abaixo do nível de uma anca de criança, é um mundo de ferrolhos, tubos, membranas como no interior de um tórax, canaletas com arco-íris de petróleo que, aos poucos, descasca e cai sobre o cascalho somali (um sítio onde não ter uma coisa não é necessariamente ter outra). Conto dezasseis cabanas. São uma colmeia de coral cinzento. Cubos, esferas vivas. Que atmosfera de centro espírita! Cheia. Materialmente invulnerável. E aumenta de minuto a minuto, como as plantas que os faquires fazem crescer apenas com olhadelas e ziguezagues de flautas. Eu não estou aqui para sessões de espiritismo. Volto ao bote. A água: treva pastosa, de onde subia ainda aqui e ali, como um rojão mal apagado, um verde espesso de óleo pesado, um verniz móvel, radiado de irisações. Ao longe, uma cortina de areia desabrocha no mar, embaciada sob a roda de proa. As espumas se estendem sobre a água como mãos fervilhantes. Por baixo, o mundo gelatinoso incha, estira, contrai, sopra um protoplasma vitrificado, é um balé de vespas. Sobe-se a corrente com dificuldade. Quinze minutos para fazer meio quilómetro. As algas ou igarapés trepam pela corrente da âncora, deixam no convés as pegadas molhadas que são o arrastar mole das suas barrigas. Ali, habituados a coisas que já não existem, agachados na popa, a organizarem-se num acocorar colectivo para rebocar a piroga, os pretos me vão ensinar que a vantagem da partida confunde-se com as vantagens do inventário.

 

Peor

despesadiaria às 06:06
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Terça-feira, 2 de Setembro de 2014

 

(...)
O dar-vos tudo quanto tenho e quanto posso
Que quanto mais vos pago mais vos devo.


(Juvenilia)

 

Nocturno

 

Ficaste perturbado? – Não sei.

Fico a teu lado? – Depois direi.

Estás emocionado? – Talvez apavorado.

O que é isto aqui? – Um olho, perlado.

Ficamos em silêncio? – Ruído de fundo.

O que pressinto – é fiel e profundo.

 

Reconciliação

 

Reconciliação – Necessidade Biológica

Ou Imperativo Emocional? –

Absurda a nossa lógica −

Desfecho – sempre igual.

----------

 

Estética


«−Alguém ouviu falar em Quinto Império?»

 

Depuram a carne até ao osso

Elevam a dureza a critério

O grácil julgado inútil

Na beleza do Quinto Império

----------

E terminou a juvenilia (a publicável, isto é, a que gosto).

pmramires

despesadiaria às 14:26
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Segunda-feira, 1 de Setembro de 2014

 

(Na varanda, parado, de pé, a olhar lá para fora. São três da tarde. O Sr. Shlev não está a fazer nada.)

 

Sr. Gabba: O que estás a fazer?

Sr. Shlev: Nada.

Sr. Gabba: Passa-se alguma coisa ali?

 

(O Sr. Gabba aponta para o stand de vendas entre os prédios da frente)

 

Sr. Shlev: Não.

Sr. Gabba: Então, estás a olhar para onde?

Sr. Shlev: Para parte nenhuma.

Sr. Gabba: Então, estás aqui a fazer o quê?

 

(O Sr. Gabba começa a revelar-se inquieto. Shlev mantém-se sereno.)

 

Sr. Shlev: Nada.

Sr. Gabba: Enlouqueceste. 

Sr. Shlev: Porquê?

Sr. Gabba: Porque não há motivo para estares aqui.

Sr. Shlev: Pois não.

Sr. Gabba: E porque é que continuas?

Sr. Shlev: E porque tem de haver um motivo?

Sr. Gabba: Porque todas as coisas têm uma causa que provoca uma acção.

Sr. Shlev: A causa das coisas não é o seu sentido.

Sr. Gabba: Acho que devias fazer alguma coisa com sentido...

Sr. Shlev: Tu achas que eu devo fazer alguma coisa que faça sentido para ti.

Sr. Gabba: Há um padrão no sentido das coisas.

Sr. Shlev: Quem o estabeleceu?

Sr. Gabba: Os homens... a sociedade... sei lá.

Sr. Shlev: Eu também não sei. Incomoda-te que esteja a fazer nada?

Sr. Gabba: Um pouco, sim.

Sr. Shlev: Porquê?

Sr. Gabba: Porque devíamos estar a fazer alguma coisa.

Sr. Shlev: O quê?

Sr. Gabba: Não sei.

Sr. Shlev: Quem é que não faz sentido?

 

jorge c.

despesadiaria às 09:57
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