Sexta-feira, 31 de Outubro de 2014

 

uma ideia assaltou-o de repente. levou-lhe a carteira e o relógio. sim, ainda usava relógio. a vida moderna não era para ele. conhecia perfeitamente a convenção social de dormir, mas há muito que decidira não participar nela. os dias confundiam-se com as noites, com os dias, com as noites, com os já é tarde, com os nunca mais, com os para sempres, com os já agora. praguejava amiúde contra a juventude. de uma inutilidade consabida - tanto o praguejo como a juventude itself, mais as suas manias de usar expressões toscas em inglês, os seus iás e os seus iés, a sua pseudomodernidadezinha de quem por ter barba desleixada se acha muito coiso, e bebe gin tónico porque agora, sem saber da existência dos contos do mário henrique. os velhos e os novos. todos iguais, mais o azedume que os pariu. pagava para o tirarem deste filme, mas a ideia que o assaltou fugiu-lhe com a carteira e com o relógio. ficou sem trocos, sem horas e sem ideia, e percebeu que era tempo de pedir a conta e acabar o texto. 


um tal de joão gaspar 

despesadiaria às 07:32
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Quinta-feira, 30 de Outubro de 2014

 

(lembrando a Rapariga das Maçãs)

 

G.,

 

Anteontem à tarde olhei para o céu como se fosse o sol e visse o meu reflexo no vidro embaciado por um longo banho. Quase senti as gotas quentes a desprenderem-se dos cachos escurecidos do meu cabelo e a caírem na curva das costas, aninhando-se naquele esconderijo húmido. Mergulhado no bafo das nuvens, o sol era um circulo de contornos difusos, pálido e desbotado; e tu dizias, em dias como esse, quando a luz era filtrada por um pano sujo e a ausência de reflexos me deixava ver claramente a cor dos teus olhos, que cada um tinha a solidão que merecia. Não sei se ainda pensas o mesmo; nós mudámos desde as tardes passadas a jogar matraquilhos sob o telheiro de batata frita que se estendia entre o bar e o pavilhão de ciências; pelo menos, tu cortaste o cabelinho à foda-se e esqueceste os golpes de cabeça que te ajudavam a afastar as mechas dos óculos; eu pintei o cabelo de fogo na véspera do baile de finalistas e depois, quando achei que já te tinhas esquecido de como descobrir os rastos da tinta acrílica nos meus caracóis, fiquei loira — agora tento recordar a minha cor, mas não consigo; e antes de um festival qualquer, cortei um palmo inteiro de cabelo.

Claro que há coisas que não mudam.

Continuo a ficar presa nos cubículos da casa de banho e já não há ninguém que me vá lá buscar. Aqui, as portas são de madeira e têm fechaduras que funcionam; as folgas entre a madeira e o chão são mais pequenas, e nas paredes riscadas não há amor, nem insultos, nem discussões sobre veganismo ou elegias aos fluídos corporais. Tudo é branco e por isso cada divisão micrométrica parece um salão vazio, tenho espaço para girar em torno dos meus eixos desalinhados; cada volta mais rápida que a anterior até o espírito se transformar num disco, rodopiando até o espaço fazer o pino e o tempo rasgar o ar com um mortal encarpado. Fechada no cubículo infinito, perguntei à loiça, ao piaçaba, ao caixote de tampões ensanguentados: é esta a solidão que eu mereço?, e em troca recebi a minha própria voz, seguida por um silêncio de tundra. Na parede à minha frente havia uma forma cilíndrica, tocada por um braço estendido. A forma servia para pendurar casacos ou malas, mas ontem vi-a expandir-se e transformar-se na tua cara; imaginei as oscilações da tua maçã de Adão enquanto mastigavas e engolias as respostas que fingias ter. Por pouco não esborratei a maquilhagem — sim, eu agora uso maquilhagem.

Decidi escrever-te para manter vivo o fantasma. Também bebi um bocado nesse dia — anteontem, quando a tua cara nasceu à minha frente — porque o álcool faz com que os teus contornos pareçam mais nítidos; esquecer-te seria a solidão que eu mereço: saber que sonhas ver-me arder no Inferno ainda é das poucas coisas que me impede de descer até lá.

 

I.

(S.White)

 

P.S.: Não deixei de comer maçãs.

despesadiaria às 08:44
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Quarta-feira, 29 de Outubro de 2014

 

O homem que arranha

 

 

Enquadrado pela janela, o crepúsculo entrecortado pelas silhuetas das fachadas pintava um quadro belíssimo na parede do escritório. Os vários tons de azul, laranja e rosa misturavam-se como num gelado de máquina, com cores tão espessas quanto intensas, escorrendo pelo espaço ainda livre do negrume e ângulos impossíveis dos telhados da Baixa.

Fui despertado do meu transe pelo bater das oito na torre dos Clérigos. A calma que me rodeava contrastava fortemente com a desarrumação geral de caixas, amontoados de papeis, livros e máquinas que os meus olhos começavam lentamente a desvendar, e uma sala onde trabalham dez pessoas pressupõe. O cheiro a mofo e suor não deixava muito à imaginação mas trazia memórias difusas de pessoas conhecidas. O som das badaladas deu lugar ao zumbido da ventoinha do computador pousado à minha frente. Por fim, um “formigueiro” fez-me esticar a perna esquerda e ajustar a ligeiramente posição na cadeira.

Sentado à secretária, perguntei-me: “O que faço aqui?

 

 

r o w t a g

despesadiaria às 23:50
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Terça-feira, 28 de Outubro de 2014

 

 Caderno listrado – carretéis, 52

 

Uma mesa está no vão, junto à janela. Conto os cigarros na carteira. São doze. Para além do nada que isto representa, temos (eu e os outros dois gajos) mais trinta e cinco minutos para esvaziar a casa. O armário de cozinha, com uma das portas caída para fora, desafia que lhe venham fazer reparos. Ao lado, ancorada entre duas fasquias por pintar, uma chapa polida evapora desse corrimento reflectido, como se fora um rato morto erguido pelo rabo. As duas cadeiras, sem braços, fundas e moles, parecem desligadas da totalidade conexa das suas aparências; reivindicam qualquer coisa que não seja mais o estrato composto de ingredientes subtilíssimos de madeira, verniz e grampos. Abro um pouco mais a porta já aberta (as almofadas do sofá vão repetindo-se nos pedaços de espelho que um filete de papel dourado unia nos cantos). Visto por vidros grossos e empilhados, o fluxo de um objecto infiltra e se ajusta ao outro, remete a uma realidade oculta que drena para si toda a força do convívio forçado, quotidiano. Depois de alguns pagodes de madeira, empurro o divã pela escada (espécie de escultura pop, um vómito de cera que parece emitir fagulhas e ideal para ser lançado ao Tejo). As gavetas, semelhantes a ninhos de cobras cheios demais, derrubavam, das beiradas, longos cordões verdes de pano. E um incrível emaranhado de sininhos, alguns de prata, outros de chifre, presos num barbante acetinado, amarrava a papeleira em cima da qual, num jarro azul, abria-se um buquê de lápis 2Bs. E assim, envolto numa magia natural, cada músculo soma o cansaço ao cansaço que não é de um lugar nem de outro. Nulo, reabsorvido, é a tênue película de nada que separa o mundo cujo conjunto articulado é existência de ponta a ponta. (O alívio viria de onde, se pudesse vir de alguma coisa?) À saída um feixe de samambaias balança-se a uma janela, na ponta de um cabo de vassoura. Sento o rabo no pedaço que restou do muro. Os pés contraem-se, doridos. Buscam a fusão numa massa que lhes ofereça, paradoxalmente, singularidade. Por entre as grades traseiras do armazém, a tábua lisa da janela parece um borrão azul de esferográfica. E o prédio ao lado, meio sentado, meio erguido, sobe num espinhaço de rochas que tenta ficar de pé contra seu peso - com uma feição pesada e caseira indica, como se apontasse por trás de seu ombro, um outro prédio que fosse, ele sim, o verdadeiro. Ponho diante dos olhos o binóculo que apanhei sobre o sofá. Desbarrancado à direita, à esquerda o mundo eriça-se de contrafortes. Essas elevações secundárias, complanadas e intercaladas de calcário, arredondam, fracionadas e livres de anteparos, as linhas magras dos taludes a tombar em travessões sucessivos. Depois escalonam-se em círculos e estiram-se, boleadas, em muramentos numa desintegração contínua, ou nas grimpas em que se empilham as placas. E cruzam-se em talhados (pouco elevados mas inúmeros) a esgarçar a tênue capa de areia que as reveste.

 

Peor

despesadiaria às 01:52
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Segunda-feira, 27 de Outubro de 2014

 

Os poemas possíveis

 

Caminho como uma casa em chamas, no limiar da eternidade. Nunca me encontrarão. Tudo o que tenho trago comigo. Pequenos equívocos sem importância.

 

Menina Limão

despesadiaria às 23:55
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Domingo, 26 de Outubro de 2014

 

IV

 

Um bando de pássaros encontra um ermo virgem à mercê das chuvas e dos ventos. Dispersam-se pelo monte, como um tecido leve, enegrecido, a cobrir a terra. Debicam os vestígios da sementeira da estação anterior e uma bota em curva, encarquilhada, humedecida de uso e de meteorologia, no meio da terra, é o altar de alguns. Por lá pousam, vigiando a curta distância os meneios dos restantes. Um verme assoma, Pessanha de seu nome, o cocuruto espreita e um bico trucida-o. As aves irrompem numa verticalidade histérica que se dirige a um ligeiro fosso. O desmame acaba, os pássaros regurgitam a carne, a acalmia do repasto chega com bicos amolecidos de tanto roçagar o osso. A descoberto, o cadáver em decomposição de um homem, o camponês das últimas estações. Ao lado, os óculos partidos, cobertos de um granito ocre e arremessados pelo alvoroço dos pássaros. As pernas dobradas, os braços abertos em extensão, medindo o território, diluindo-se no próprio mapa que tracejam. Ali caiu, enquanto a mulher debulhava a ceia e o esperava para, juntos, enterrarem a ninhada que uma gata tinha acabado de parir.

 

gisandra

despesadiaria às 21:31
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Sábado, 25 de Outubro de 2014

 

Acordou com a estranha sensação de que não lhe apetecia comer mais frango. Não era coisa do momento, percebeu que a decisão era definitiva. Foi fazer a barba, torradas, rímel, batom, era outra vez Andreia e não Alberto que o CC lhe impunha.

As coisas tinham melhorado um pouco nas últimas semanas. Tinha agora a esperança fundada de que seria operada antes do Natal. Finalmente, Cortadas as carnes que a agarravam ao equívoco que fora a maior parte da sua vida, talvez pudesse, enfim, casar com o Sicrano. Era um homem estranho, mas quem seria ela(e) para julgar? Não era possível determinar-lhe um rótulo, homossexual, talvez, bi, se calhar, hetero, tem dias, infeliz, sempre. Mas era, apesar disso, uma alma generosa e gostava realmente de Andreia. Não gostava tanto de Alberto, mas o suficiente para esperar pacientemente que este se ausentasse para prosseguir o namoro atribulado.

À medida que as hormonas começavam a fazer efeito, Andreia ia mudando. O frango, pensou, era só mais um efeito. Mas percebeu que tinha atravessado finalmente a ponte quando, na sapataria onde nunca tinha tido coragem de entrar, a empregada lhe disse,

- Tenho os sapatos ideais para combinar com esse vestido, vai ver que fica linda.

 

DoVale

despesadiaria às 10:39
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Quinta-feira, 23 de Outubro de 2014

...

(memorabilia)

 

– Lembras-te do Fede?

– Do Fede?

– Sim, daquele rapaz que andou na nossa turma.

– Tenho uma ideia, sim.

– Sabes por que lhe demos esse nome?

– Cheirava sempre mal, o rapaz.

– Ontem lembrei-me dele.

– Porquê?

– Num cacho de uvas morangas que roubei ali em baixo vinha um fede-vivo.

– Um “fede-vivo”? O que é isso?

– Um insecto, um percevejo verde, que liberta um cheiro desagradável quando incomodado.

– Não estou a ver o bicho. Mas percebo o motivo por que te lembraste do Fede.

– Sim, e tentei recordar-me, sem sucesso, do verdadeiro nome dele.

– Também não me ocorre agora.

– Não te sentes mal por isso?

– Não, nada.

– Eu sinto-me uma merda.

 

nev

despesadiaria às 17:06
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Quarta-feira, 22 de Outubro de 2014

...

Não está a ser nada fácil ensinar a conta a dar a pata. Já devorei tudo o que havia na rede em línguas acessíveis e limpas. É uma conjugação rara e limitativa, mas que mesmo assim não me impediu de encontrar um conjunto de dicas sobre como praticar com a conta atos que nunca me haviam passado pela cabeça. Quanto a processos que permitam chegar ao meu objetivo, ficámos na mesma. Reforço positivo, reforço negativo, reflexo condicionado. Os nomes que a indústria engendrou para porrada, ultrassons, festas e guloseimas. Nada resulta. A vir pelo nome também nunca aprendeu, mas isso não me faz falta, era mais pela piada. Vendo retrospetivamente, até me dá jeito que fique no canto dela e que me continue a pertencer a iniciativa. Também não quero que rebole, que se sente, que se ponha de quatro como quem espera ou ainda tem esperança, e muito menos que vá buscar. Ir buscar é uma tarefa que não pretendo ceder nem sequer partilhar com quem for, conta ou desconta. Quero apenas que dê a pata sempre que as angústias da modernidade me visitam sem terem sido convidadas. Como também não fala (mas isso nunca esperei que fizesse) e também não sei das suas razões, suponho má vontade, nos dias bons, e rebeldia, nos dias maus. Nos dias sóbrios, penso que talvez devesse mudar de banco.



E.

despesadiaria às 01:03
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Terça-feira, 21 de Outubro de 2014

 

Foi mais ou menos por acaso que Vítor e Hermeto se conheceram na cantina da faculdade. Mais ou menos porque na verdade já tinham ouvido falar muito um do outro pelos colegas, em termos pouco simpáticos quase sempre com malícia gozona. Pelas costas dos outros vejo as minhas era locução que conheciam bem e que já os tinha prevenido da eventualidade de eles próprios serem alvo das mesmas piadinhas, e que levou à inevitável conclusão de que teriam costas muito semelhantes, ou pelo menos muito compatíveis.

Começou então uma espécie de corte, inicialmente com trocas de olhares, que deram em acenos amigáveis, risinhos cúmplices das graças que um deles dissesse nas reuniões do conselho científico, e assim por diante, mas nunca mais do que isso durante meses. Portanto, foi, foi por acaso que começaram a conversar, e foi necessário chocarem com estrondo na cantina, com os respectivos tabuleiros pelo ar e depois pelo chão para se sentarem na mesma mesa. Poderiam ainda hoje andar nos olhares, acenos e risinhos furtivos, sem que algum dos dois tomasse qualquer iniciativa.

Desse dia em diante almoçaram sempre juntos e foram trocando impressões, como sempre fazem os cientistas, durante muito tempo até finalmente se sentirem confortáveis para contar os respectivos segredos. Fizeram-no não só por terem construído uma genuína amizade, mas porque perceberam ao fim de algumas refeições que existia do outro lado uma confidência que era pelo menos tão secreta e avassaladora como a sua. Eram viúvos, apesar de não terem ainda quarenta anos, e bastante inconformados com o facto, pelo que fizeram a única coisa que lhes pareceu natural. Lutar contra a inevitabilidade.

Para Vítor, a solução seria descobrir como trazer um cadáver de volta; para Hermeto, inventar forma de viajar no tempo e evitar o acidente estúpido que lhe levou a mulher. Vítor tinha o seu laboratório montado numas gigantescas águas furtadas, de pé direito altíssimo, num edifício devoluto que comprara para o efeito no topo da colina mais elevada da cidade; Hermeto montou a sua oficina num armazém, numa zona da doca onde apenas já havia carcaças de cargueiros. Foi um alívio contarem tudo, mas nem por isso se dispersaram das respectivas investigações, embora por vezes trocassem notas e sugestões à hora de almoço.

A vida de Vítor era mais complicada: roubar cadáveres, a mensalidade à Direcção Geral de Criogenia, a dependência de trovoadas, livrar-se dos corpos após a experiência (usava sempre exemplares magrinhos e baixos, não só para facilitar o transporte, mas porque obviamente conhecia de cor toda a ficção científica alusiva, nunca resistindo no entanto a instalar duas cavilhas nas têmporas dos sujeitos e a rapar-lhes o cabelo de lado e por trás, o que provocou histórico ataque de riso a Hermeto na sua primeira visita ao laboratório). Hermeto invejava esta lufa-lufa do amigo. Ainda que não trabalhasse menos, sentia que se pudesse também testar e falhar e testar e falhar, teria outra motivação. Mas confiava em si e no enorme quadro de giz que ocupava toda a parede.

Discutiam muito sobre universos paralelos, paradoxos, e multiversos (Hermeto defendia a existência de linhas temporais distintas, o que até nem eram boas notícias para o seu plano) ou sobre a persistência da mente, da memória e dos mecanismos de aprendizagem. Nos aniversários de cada um tiravam as únicas noites de folga do ano e, juntos, embebedavam-se violentamente. A passagem dos anos era o maior medo de Vítor, que embora soubesse que chegaria à solução mais tarde ou mais cedo, temia que a sua jovem mulher acordadasse para um velho de pele manchada e olheiras como pregas. Quando o ouvia falar assim, Hermeto punha em causa se Vítor realmente sabia o que era o amor ou se queria simplesmente voltar a ter a mulher a qualquer preço. Da sua parte - dizia-o sempre acusando - a única coisa que queria era voltar atrás e evitar aquela estúpida queda do escadote, devolver-lhe a vida e, provavelmente, nunca mais a ver depois disso. Não eram raros os anos em que esta discussão se tornava física, nem raras as manhãs seguintes em que as ressacas eram ilustradas por hematomas na região dos olhos ou lábios inchados, mas a ausência de memória a partir do terceiro copo salvava-lhes sempre a amizade. Ao pequeno-almoço tentavam lembrar-se que gorila lhes teria partido a cara daquela forma, divertiam-se com o que lhe teriam dito, brindavam com sumo de laranja à superioridade da mente sobre o corpo e voltavam ao trabalho por mais um ano.

 

Gouveia

despesadiaria às 09:54
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Segunda-feira, 20 de Outubro de 2014

 

na padaria do morais há cacete e muito mais.

 

a ser verdade o último rumor que assombrava a aldeia, a carolina estava grávida do pedro, o mais novo do antunes do talho, que era casado com a matilde, neta da zulmira que tinha ficado orfã muito cedo, que já tinha dois filhos de um casamento em frança, com um pintor famoso de azulejos de casas de banho, galã de uma série lá na frança, dizem, que tinha deixado a mulher para fugir com a portuguesa mas depois arrependeu-se quando os gémeos nasceram atrasados e parecidos com o tó zé, faz-tudo da terra, canos rotos, pequenas obras, instalação de pêvêcês e contraplacados, rachas no estuque, é chamá-lo que o tozé faz, que ele faz tudo, até fez dois filhos duma vez à prima matilde, assegura a gertrudes, que trabalhava à data no hospital e entre uma arrastadeira e outra, arrastou o olho à cama do lado e lá estavam eles, igualzinhos ao tozé, podem crer na gertrudes, que de filhos percebe ela, teve treze ao todo, todos do mesmo homem, pensa ele, ou pensou até morrer, o capitão belmiro, epíteto ganho no tempo da primeira guerra, oitenta e muitos anos bem vividos, dizem os mais antigos, dono da venda e pai de metade da aldeia, há quem mal diga, que cada cachopa que lhe aparecia depois do sol posto ao balcão, levava recado para casa para ler daí a nove meses, uma delas foi a cesaltina, hoje avó viúva do carlinhos, que dizem que é maricas desde que foi estudar para lisboa e voltou com o bicho mau, febres e mau olhado ainda não o mataram mas quase, assevera quem sabe, que aquilo é coisa do diabo, mas a avó rezou e o carlinhos melhorou, andou metido com um doutor da cidade que lhe pagou o tratamento, aceitaram-no na junta, a preencher papelada mas sem falar com ninguém, não vá aquilo pegar-se, o presidente da junta é amigo do pai, sabe, são favores, que isto é mesmo assim, se fosse meu filho não voltava para casa, ai que vergonha, dizem que andou metido em tempos com o pedro, marido da matilde.

um tal de joão gaspar

despesadiaria às 19:15
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Domingo, 19 de Outubro de 2014

 

Línguas de perguntador (um first draft)

 

No intervalo da tarde, um acontecimento insólito reuniu a atenção de todos. O terreno alcatroado em volta do pré-fabricado verdoengo foi deixado aos seus buracos; as redes rasgadas das balizas do campo de futebol adejavam sombriamente, acompanhando o movimento cadenciado das azedas que nasciam do outro lado da vedação; os contornos dos quadrados da macaca, desenhados a giz colorido nas faixas de cimento remendado, foram esborratados pelos pés urgentes, e as pedrinhas ficaram esquecidas perto do céu. O pequeno chafariz à volta do qual se dispunham as salas de aula mirava o tumulto a leste, junto à casa-de-banho dos rapazes.

A porta de madeira escura abria para dentro; escancarada até à amplitude máxima, encolhia-se contra a parede verde, desaparecendo totalmente. Era como se a entrada para a casa-de-banho fosse apenas um arco, e do seu topo pendiam farrapos de verniz a baloiçar como pequenos fantasmas; mas os corpos curiosos dos meninos mais velhos e mais altos protegiam o que se passava lá dentro dos olhares dos que só agora começavam a aprender a ler.

Aproximei-me da confusão a medo. Com o estatuto que a carteira na sala do terceiro ano me oferecia, afastei os mais pequenos e fiz perguntas aos outros.

— É verdade?

O corpulento Rúben do quarto ano virou-se para a minha figura roliça. Manteve a boca sapuda fechada enquanto percorria mentalmente a lista de pessoas que gostava de aterrorizar com as suas botas de biqueira de aço. Quando verificou eu não fazia parte do rol de condenados, içou uma sobrancelha e disse, na sua voz púbere:

— Foi o maricas da tua turma.

— Não lhe chames isso — pedi. O Rúben comprimiu os lábios com força, transformando-os em dois bordos horizontais de tonalidade esbranquiçada. Eu sabia que fazia parte do grupo restrito de miúdos que podia pedir coisas ao Rúben. Ao contrário dos meus colegas, que se esconderam atemorizados no umbral da sala de aula quando viram os seus ombros dobrar a esquina pela primeira vez, eu não tinha medo do tamanho ou da idade do rapaz, ambos suficientes para que estivesse já nas carteiras da escola básica. Toquei-lhe levemente no braço encasacado para que me desse atenção. — Mas é mesmo verdade aquilo da língua?

As pupilas que me fitavam perderam-se num lodo acastanhado, dois palmos acima dos meus próprios olhos. Dos lábios anfibianos soltou-se um ruído gutural que eu soube reconhecer como uma gargalhada. O som era intimidante, mas eu sabia que o Rúben não conseguia rir de outra forma.

— É. Estou a ver tudo daqui — disse. Desviou os olhos das minhas bochechas avermelhadas e deixou-os entrar através do arco; tentei acompanhá-los dando pulinhos, na esperança de obter uma imagem, ainda que apenas de relance. Os olhos do tirano do recreio, semicerrados para formar severas linhas negras, mandavam-me estar quieta; eu ignorava-os, mas sentia que o desafio o divertia e por isso continuava a saltitar à sua esquerda, dando-lhe leves encontrões.

— Há muito sangue? Diz-me se há muito sangue!

— Tu és mesmo esquisita, miúda.

Vi o Rúben despir o casaco azul e deitá-lo ao chão, criando uma clareira em sua volta. Depois, colocou-se atrás de mim e envolveu a minha cintura com os braços; experimentei com espanto o abraço ao meu tronco, dilatado como um barril, onde o dente-de-leão estampado na camisola se deformava; as mãos do Rúben fechavam-se perto do meu umbigo, como a fivela de um cinto. Levantei voo sob os cocurutos dos meninos que construíam um tapume humano na fila da frente no espetáculo, mal contendo um gritinho histérico.

— És gorda — disse a cara espremida contra as minhas costas, — despacha-te a ver isso.

Do outro lado do arco via-se a parede rugosa que protegia os urinóis; nela encostava-se a figura quadriculada da dona Manuela, uma das auxiliares da escola. O rosto exangue observava o que se passava no lavatório, ao lado do arco, mas por dentro. De onde estava, conseguia ver a minha professora e a dona Leonor, a outra auxiliar, debruçadas sobre uma figurinha tremelicante cuja cabeça se enterrava na loiça branca, lembrando-me uma avestruz assustada. Um dos seus braços encolhia-se, apoiado nos bordos do lavatório; o outro perfilava-se junto ao corpo. A mão, a roçagar a ganga das calças como uma corda solta ao vento, segurava uma tesoura de bico redondo; o sangue refulgia nas suas lâminas, combinando a tonalidade escura com o plástico encarnado da pega.

— Ó — a minha boca, os meus olhos, tudo em mim tomou a forma do meu assombro, — o Rafael cortou mesmo a própria língua!

 

S. White

despesadiaria às 10:00
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Sábado, 18 de Outubro de 2014

 

O elevador da glória

 

Todos os dias a mesma dança, não é por acaso que em várias linguas coreografia é sinónimo de rotina. Filas intermináveis para entrar, esperando à chuva e ao frio, desconfortáveis. Uma vez lá dentro, passamos o dia apertados, uns contra os outros, esgrimindo os cotovelos e o olhar, para subir na vida.

 

- O jogo estar viciado é a única regra que conheço. Às vezes, ainda me emociono com um ou outro malabarismo, e então aplaudo. Mas quando pergunto o resultado, a resposta é sempre a mesma: perdemos.

 

- Foda-se, não fui criado para perder!

 

No fim do dia, com os pés bem assentes na terra, para não dizer enterrados, até somos pessoas razoáveis. A possibilidade de uma linguagem de computação ser poesia ser em si mesmo poesia é o nosso único dilema existencial.

 

 

 rowrowrowtag

despesadiaria às 21:26
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Sexta-feira, 17 de Outubro de 2014

 

Caderno tropical - 09

 

O cotilhão recomeçou. Oiço o rumor de tachos que, ora mais, ora menos afastado, descreve-me a extensão do gargalo entre a cozinha e o quarto. O lençol enchumaça-se. E as minhas pernas, remexidas, adquirem um recorte picassiano, geométrico. A índia bate à porta. Vejo que misturou outra vez ao caldo aquelas nabiças que habitualmente não se comem. São para tirar a febre, ela diz. Mas a febre da malária é sempre (e apenas) um tumultuar de sombras incoerentemente esparsas a esta hora (seis e meia). É no final da tarde que enlanguescemos, ficamos quebradiços, e já não há meio de evitar que os calafrios nos guilhotinem de comprido. A verdade é que agora possuo oito ou nove sentidos. O da febre é um deles. Esta corta-me em fatias, rectas como tábuas, e deixa-me de tal modo friável que se entornar uma meia-de-leite depois das sete horas abro-me em mais de um metro de profundidade. Enfio o pé, ainda sem meia, pelo cano da bota. Sinto o fundo sem calosidade, como se para ali escoasse gota a gota o meu peso material. Apanho a t-shirt (a índia guarda na gaveta uma colecção de gaitas de beiços). Pela janela (que pouco me separa do exterior. Estou quase lá fora.), pedras espaçadas na lama e grandes matos afilados com uma coroa de bracinhos a transpor. Terminado um trecho, logo outro o substitui. Flores de azáleas montadas em estacas contra a cerca que contorna um quadrado de alfaces. Depois o que se enxerga é um cavalo erguido sobre três patas, a quarta vinha dobrada e atada à barriga; um grupo de crianças fazia-o avançar deste modo. As crianças (parecidas entre si e ao mesmo tempo muito diferentes) sentiam medo, e mais medo ainda sentia o animal (as guias moles batiam na garupa encharcando-se de espuma). Chupei um cigarro, até os perder de vista e de ouvido. Já me vejo entre as árvores, oscilando como um tonel mal escorado. Grandes e abauladas, tendo um nó ao meio, à maneira dos fundos de garrafa, elas estão todas aqui. Soltamo-nos de uma e logo outra nos apanha.

 

Peor

despesadiaria às 08:02
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Quinta-feira, 16 de Outubro de 2014

 

III

 

Disparada, a moeda ascende num salto rápido, reluz no vazio e volta a cair numa batida que deixa ecoar o tilintar do cobre. A palma de uma mão silencia-a, empurra-a escondida para debaixo da mesa, desaparece na sombra de um vinco. Do lado de fora, o deboche assiste de braços cruzados aos movimentos trôpegos, sorvem-se cigarros entreabrindo canções inteiras: da labareda ao fumo vai apenas o verso mais curto. O prenúncio do caos espreita o gesto nocturnal mais simples, as cabeças decepadas dos fantasmas entram em tumulto pelas portas, a vertigem vibra no pentagrama do real e um estertor de lágrimas evacua o bar. Silêncio. A moeda muda no chão, coberta da enxurrada da noite, sobrevive como uma carcaça da presença humana. O céu clareia com a chegada da aurora; os seus dedos não são róseos, mas de uma cor azeda. Inicia-se a materialização mais elementar: o furto da esperança e a equação da sucessão dos dias. Outros habitantes chegam, encontram a moeda incólume à espera de ser manuseada, transmudar-se de colo em colo, existir além de si mesma, ganhar. Na dança compassada do mundo, o que não perece não é feito de carne, mas de substâncias incapazes da metamorfose absoluta, derradeira.

 

gisandra

despesadiaria às 00:14
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Quarta-feira, 15 de Outubro de 2014

 

Dear life

 

Dolly pensou que se lanchasse talvez conseguisse empurrar para baixo o nó na garganta. Entrou no primeiro café que viu vazio e pediu uma sandes mista em pão de soja.

Nesse dia acordara tarde para diligências. Eram onze horas quando se levantou de um pulo, assustada com aquilo que lhe pareceu o som de uma janela a fechar-se. Transformada num desenho animado, fez uma vistoria à casa. Nenhum intruso. Depois, sentou-se na cama e pensou no que deveria fazer. O lógico seria começar o dia. Mas não estava convencida. Talvez fosse melhor voltar a deitar-se; havia saltado o ritual de auto-comiseração e culpabilidade que todos os dias a arrancava da cama para a urgência de cumprir a vida.

Adormeceu. Sonhou que era mordida por um cão. Sempre o mesmo pesadelo.

Às três da tarde, hora de Sartre, foi ver o rio. Mais valia deixar-se levar pela corrente. Fez uma lista mental de coisas para fazer até ao fim do dia. Daí a cinco anos teria tudo resolvido. Gostava tanto de riscar palavras em papel que devia ter ido para aspirante a escritora. Mas agora era tarde, já tinha dito a toda a gente que não fazia nada da vida.

Tirou os sapatos e foi molhar os pés no esterco do rio. Um repentino pensamento libertador invadiu-a. Um livro que nunca li, pensou. Mais uma para a lista.

 

Menina Limão

despesadiaria às 17:04
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Terça-feira, 14 de Outubro de 2014

 

Aurora

Ela senta-se na soleira da porta, à espera que os primeiros raios de sol da manhã venham aquecer-lhe os ossos. Foi uma noite terrível, agora que pensa nisso. A discussão, os murros, a faca, o sangue, aquele baque de um corpo a cair inerte. 

Já não importa muito agora. Daqui a pouco há-de ligar para o posto, o cabo vai perguntar se voltou a acontecer, desta vez ela dirá que não e há-de acrescentar a sentença definitiva:

- E garanto-lhe que não volta a acontecer

Mas nada disso interessa agora. O céu de estrelas semi desmaiadas promete uma aurora radiosa e ela reconhece que já se tinha esquecido há muito do que é acordar em paz.

DoVale
despesadiaria às 10:19
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Segunda-feira, 13 de Outubro de 2014

 

As coisas não poderiam ser mais diferentes, são sempre diferentes de casa para casa de rua para rua de vida para vida, tudo a mudar consoante as vogais mais ensinadas mais aprendidas mais desenvolvidas, sem esforço sem exigências de livre e espontânea vontade, palavras sábias, para não desperdiçar a preguiça e preferi-la ao esforço e ao sacrifício das cobranças difíceis de ir ver a família lá longe, recuperar os amigos do liceu - nunca mais apareceste - e tu? que ficaste nessa vida de sempre e para sempre e a vida lá fora à espera, para agora cobrar o passado, a amizade putativa da juventude eterna, a intimidade forçada e a privacidade esquecida, não interessa para nada, o que interessa é o conforto esforçado e burguês, muito esforçado e muito burguês, para se ser amado e gostado e para isso é preciso sacrificar os dias e a vida até ao momento em que vês que as coisas não poderiam ser mais diferentes menos iguais e te desmaterializas sem esforço. 

 

jorge c

despesadiaria às 10:17
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Domingo, 12 de Outubro de 2014

...

(micções)

 

está a fazer-me sinais de luzes porquê eu não conheço este gajo é capaz de ser a polícia mas a polícia a um domingo poupe cinco cêntimos por litro não percebo todas as gasolineiras têm descontos de cinco cêntimos por que raio não metem o preço mais barato cinco cêntimos eia ali está o carro da brigada vou meter-me atrás deste gajo e pode ser que só o mandem parar a ele

– Olha, está ali a polícia, vai com cuidado – aconselhou ela.

como se eu não os tivesse já visto
–  Já vi, já vi – disse eu, – um gajo ali atrás fez-me sinais de luzes.

que merda de música o que se esforçam estes gajos para nos deprimir com estas melodias  mortiças e estas letras rações aécio nome curioso de que país será esta matrícula parece de longe mas não consigo ver bem se eu me chamasse aécio seria sempre o primeiro a ser chamado na escola a é a n pois mesmo antes do andré

– Posso meter mais alto? – perguntou.

– Sim, podes  – respondi, sem pensar.

tenho a sensação de que me estou a esquecer de alguma coisa não sei se faça sinais de luzes para avisar os da frente nos outros países também farão sinais de luzes para avisar a presença da polícia não me parece que isto seja correcto o mundo está dividido em dois grupos os que  fazem sinais de luzes que coisa idiota dividir o mundo em dois grupos porra esqueci-me do vinho

– Trouxeste a garrafa de vinho que eu te pedi?

 

nev

despesadiaria às 17:53
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Sábado, 11 de Outubro de 2014

 

A sensação de despedida, mas de quê? Nem sequer saber se de quê ou de quem. Errar por passagens como drosófila sobre fruteira. Um abrunho tocado permite desenhar com elevado grau de suposição a linha que vai do aparecimento do inseto à dança sedada que executará até à execução, precisamente naquele ponto vago do tempo. A sensação de pedido de desculpa, mas a quem? Nem sequer saber se a quem ou pelo quê. Nem sequer saber se oportuno ou extemporâneo. Nem sequer saber se acordar de vigília ou de sono. Nem sequer saber se saber ou ignorar.

 

As vozes cruzam passagens, desenhando rendilhado de imputações no chão, a sua voz só uma, vinda de boca nenhuma ou de boca qualquer, clara apenas a atribuir o bónus do ónus: “devias ter vergonha, depois de tudo o que



E.

despesadiaria às 01:06
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Sexta-feira, 10 de Outubro de 2014

 

Depois de receber a encomenda de sexta-feira pelas sete da manhã o talhante entra no café ao lado, queixa-se que o seu fornecedor lhe traz sempre um pouco mais do que pediu, e avisa que quer uma bica e uma mini. Só um homem de barba branca, jornalista reformado a ler o matutino, parece reparar na ironia deste lamento particular. Para tal, foi obrigado a interromper uma história sobre um artista italiano que fechou as próprias fezes em pequenas latas cilíndricas nos anos sessenta, algumas das quais estariam agora a explodir - espectacularmente, imaginou - devido aos gases acumulados. Ao alternar entre estas duas ironias, conclui estar perante uma terceira: um ex-jornalista que talvez não saiba aplicar o conceito de ironia a uma situação prática. Fechou o jornal, claro. Decidiu ligar ao filho, escritor de romances com excelentes tiragens e múltiplas edições, a contar o sucedido, mas acabam em violenta discussão durante mais de duas horas sobre a utilidade do domínio da ironia nas respectivas profissões, ofendem-se bastante, e desligam. Convencido que quem não sabe reconhecer ironia não sabe reconhecer um furo, conclui que foi toda a vida um mau jornalista. Ainda que tenha feito tremer governos e cair administrações de bancos, nunca será tão bom como o filho que por seu lado, agora sobreconsciente, põe em causa o talento literário. Aposta mentalmente que Shakespeare nem quis saber destas merdas enquanto escrevia a mais irónica das tragédias, não sem duvidar se sequer está a interpretar correctamente Romeu e Julieta como exemplo de ironia. O pai, entretanto, apanhou um táxi para o aeroporto, e comprou bilhete para a Terceira e transfer para a Graciosa, de forma a pedir desculpa ao filho e passar lá uns dias há muito prometidos, mas em pleno Atlântico o avião cai e morrem todos, no preciso momento em que uma terrível explosão vulcânica de afundar civilizações mata em poucos minutos toda a população do grupo central dos Açores.

Dobrou o jornal, olhou para o talhante que entrava e saía em silêncio todos os dias, pagou a bica, e foi abrir o quiosque que comprou faz hoje 40 anos, exactamente no dia em que nascia o primeiro filho, pelo que convinha ligar-lhe.

 

Gouveia

despesadiaria às 13:21
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Quinta-feira, 9 de Outubro de 2014

 

tenho de ir. gostava imenso de poder ficar aqui a falar convosco, mas a verdade - se é que existe essa tal coisa a que decidimos chamar de verdade, mas que provavelmente não passa de uma probabilidade estatística socialmente aceite, não mais do que isso, enfim, uma desculpa para a má poesia usar a palavra insofismável, no fundo é isso - mas a verdade, dizia, agora sem complicações, é que tenho que ir. tão simples quanto isso aí. ir, com a vertigem do regresso no horizonte. vou ali. já volto. volta e meia é meia volta mais tontura. vou mesmo, que nem um tonto. onde? ali, já disse (nunca me ouves). vou ali a uma aldeia que é perto de outra aldeia mas longe de tudo. daquelas para lá do fim. vive lá gente, ou melhor, vivem lá gentes. daquelas que não chegam às vezes a ser pessoas. conheço poucas e mal. gosto delas todas e bem. e gostava de ficar aqui a falar convosco, mas a verdade.

 

um tal de joão gaspar

despesadiaria às 13:24
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Quarta-feira, 8 de Outubro de 2014

 

Felismina, ratazana do campo*

 

Foi a sua timidez selvagem, típica dos animais peçonhentos que fruem da abundância humana, que levou Felismina a esconder-se durante tanto tempo. Muito antes de a medir com os olhos, já a ratazana do campo anunciava a sua presença através de sacas de sarapilheira esburacadas.

— Temos ratos na garagem — disse o meu pai. Os sulcos fundos que a idade lhe gravou na testa, frutos de um só trejeito surpreendido, repetido como se um par de sobrancelhas erguidas respondesse às questões fraturantes da humanidade, encolheram-se ainda mais, formando linhas negras e graves. Os braços nos quais segurava a saca estenderam-se na minha direção; peguei na saca e tratei-a como a um lençol, sacudindo-a com genica e deixando o vento açoitá-la, enfuná-la primeiro de um lado e depois do outro. Os gestos enérgicos denunciaram meia dúzia de buracos redondos, do tamanho dos buracos das pesetas que as crianças usavam como pendentes.

Viver numa zona de caça municipal é ser acordada aos domingos por violentas saraivadas de tiros e encontrar os bichos que delas fogem refugiados no quintal. As odes raivosas são dirigidas à alegria com que as pequenas lebres saltitam entre o hipericão, largando bolinhas de excrementos nos trilhos empoeirados ou engasgando-se nas ciledónias, mas os gritos das carabinas despertam também os ratos, que fogem achando-se um pitéu de igual gabarito. Como o pudor lhes escasseia, é sem medo que se entalam nas frinchas do portão e se escondem entre os vasos das hortênsias, esperando que a pertinácia lhes devolva uma oportunidade. Quando a escuridão da garagem lhes é finalmente oferecida pela porta que alguém deixou apenas encostada, as patinhas animam-se; os membros felpudos tremem com esforço do sprint, a cauda, comprida e tingida de um rosa insalubre, vibra de antecipação; o focinho húmido funga freneticamente, como se vitima de uma constipação que em vez de mascarar o olfato, o agudiza. Assim são levados os roedores ao novo lar, cada parte do seu corpo é um componente, uma roda dentada bem oleada.

A vida de um rato na minha garagem começa calma e farta. A luz fluorescente só é ligada quando vamos buscar lenha, batatas ou nozes; quando chove muito e é necessário retirar água à piscina; quando queremos dar uma volta de mota e o amor que nos impõem ter à vida obriga a toda uma logística cheia de método, como se nos preparássemos para ir à Lua. Estes quandos dispõem-se sobre uma linha temporal extensa, cheia da paciência dos infinitos e das coisas eternas; são eventos suficientemente espaçados entre si para que os ratos se sintam seguros e petisquem os diferentes materiais que têm à disposição, desde a sarapilheira dentro da qual guardamos as pinhas à flanela tosca dos panos que cobrem as motas, protegendo-as do pó e dos papões que vivem no motor da piscina. No início, são regrados, tímidos na imensidão de tralha avulsa, mas depressa se acomodam às prateleiras metálicas, cheias de latas de tinta insertadas; às caixas de ferramentas e luvas grossas; aos baldes, às enxadas, ao carrinho de mão amarelo e verde que uso para ajudar o meu avô a trazer água da bomba. É aí, quando a rotina namora o descuido, que a sorte dos ratos muda. Aparecem as primeiras sacas esburacadas. Vou até à drogaria,

— Senhor Levi, tem veneno para ratos?

— Outra vez, menina?

ligo extraordinariamente a luz fluorescente e polvilho o chão quadriculado com veneno, como se enfeitasse um bolo com icing sugar.

Para a Felismina, acredito que o veneno tenha sido mesmo isso: o icing sugar sobre a sarapilhera, sobre a verga do cesto das nozes, sobre as caixas de cartão, e, pior que tudo — achei isto de um atrevimento supremo —, sobre uma das malas laterais mota.

— Olha para isto! — O meu pai estava tão lívido e as rugas submergiam com tal exuberância que a testa parecia o lombo riscado de uma zebra. Peguei na mala, repeti o que fizera com a saca de sarapilheira algumas semanas antes, mas não consegui ver de imediato os dois buraquinhos excêntricos. Tive que pousar a mala no granito da mesa da cozinha e estudá-la com atenção para descobrir as marcas daquela gula roaz.

A mala acabou por ser a última traquinice da Felismina. Não foi o veneno que a matou — se não o usou como doce, então engoliu-o como farinha e usou-o para fazer pão dentro do seu bucho monstruoso. A ratazana fugiu. Talvez tenha percebido que fora longe demais quando sentiu o tecido devidamente impermeabilizado nos dentes amarelados; ou talvez seja um espirito simples e livre, levado pelas suas rodas dentadas brilhantes e por desígnios panteístas. Após o nosso fugaz encontro, o primeiro e único, não apareceram mais buracos nas sacas de sarapilheira:

estava a estender roupa interior no pequeno estendal branco, em frente à porta da garagem, quando ouvi atrás de mim o barulho distinto de patinhas, o tic-tic-tic leve e despachado de um caminhar animalesco e furtivo. A curiosidade torceu-me o lombo e fiquei virada para trás, segurando nas mãos as cuequinhas pretas e o par de molas com que as prenderia ao arame metálico, juntando-as ao festival furta-cores de peças menores. No chão de calçada, procurei a origem do barulho. Numa fração de segundo, influenciada pelo choque, pensei tratar-se de um coelho, mas os coelhos saltam, não se arrastam pelo quintal apoiados em patas amorfas, subdesenvolvidas; os coelhos têm orelhas longas e verticais, não pequenos apêndices ovalados. Aquilo era uma ratazana, com o nariz cego e desorientado pelo excesso de estímulos naturais, desconhecidos no ambiente de garagem fechada ao qual se habituara. O lombo do bicho oscilava ao ritmo da passada — um ritmo lento e pesado, uma ilusão de arrastamento —, criando ondas que matizavam o pelo com várias tonalidades de cinzento. Mas a parte mais terrível era a cauda, uma longa e gorda minhoca, rosada como um recém nascido, espetada para trás como uma cobra retesada pelo perigo, quase do comprimento do corpo bem nutrido da ratazana e com a grossura do meu indicador.

A Felismina atravessou o quintal até se esconder debaixo do arbusto dos chuchus, uma planta enorme que comia todas as que estavam à volta com as suas folhas verdes, do tamanho de mãos abertas. Estendi as cuecas que segurava nas mãos sem me aperceber realmente de que o estava a fazer; só olhava para o enorme vegetal que engolia a enorme ratazana. Aproximei-me, afastei as folhas e procurei a bicha. Nunca mais a encontrei, mas fiz questão de lhe dar um nome.

 

*pelos vistos, aceito sugestões via Twitter. Talvez um dia responda àquela questão sobre o linóleo.

 

S. White

despesadiaria às 08:28
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Terça-feira, 7 de Outubro de 2014

 

Uma tragédia 

 

Chamava-se Miguel Maria do Patrocínio João Carlos Francisco de Assis Xavier de Paula Pedro de Alcântara António Rafael Gabriel Joaquim José Gonzaga Evaristo Ferreira e Peres da Rocha Vaz. E já não era filho de Carlos Fernando Luís Maria Vítor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão da Rocha Vaz, apesar de ainda o ser de Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana Ferreira e Peres.

Seu pai tinha sido um homem muito importante, fundador e presidente da Associação Comercial dos Nomes Compridos, e sua mãe uma mulher menos importante, como também ficava bem naquela época.

O nosso herói tentou seguir-lhe as pisadas, mas perdeu-se e não conseguiu. Ou se calhar, conseguiu. O problema residia precisamente nele. Por estar a atravessar uma fase em que não se conseguia decidir por que métricas avaliar a sua importância. E até mesmo a dos outros.

Tudo lhe parecia trocado, com os marcos e os pólos invertidos, e as velhas fórmulas davam resultados que agora não resultavam. Perguntava-se, por exemplo, se ser desconhecido da opinião pública aumentava ou diminuía a sua importância, e vice-versa.

Nem a ciência parecia capaz de o ajudar. Estava demasiado ocupada a viver uma situação semelhante, embrulhada em termos e definições indecifráveis, e votada ao mais obsceno desprezo, na sua vertente comercial.

Coitado do nosso herói! Não era uma fase. Tinha resistido ao estilhaçar de Deus com bravata, mas só para agora se ver estilhaçado pela derrota da Verdade.

Porque, na verdade, Miguel Maria do Patrocínio João Carlos Francisco de Assis Xavier de Paula Pedro de Alcântara António Rafael Gabriel Joaquim José Gonzaga Evaristo Ferreira e Peres da Rocha Vaz já não sabia quem era.

 

M.M.P.J.C.F.A.X.P.R.O.W.T.A.G.P.A.A.R.G.J.J.G.E.F.P.R.V.

despesadiaria às 22:58
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Segunda-feira, 6 de Outubro de 2014

 

Caderno tropical - 08

 

A estrada que ameaçava desaparecer por completo debaixo do aguaceiro, apenas escorregou um pouco para a direita. O melhor é esperar outra coisa, ou então não esperar nada. Encavalado sobre um galho, sem agitar as pernas, simplesmente a observar os mosquitos, cheios de vento, a voarem de lanceta à frente e a espetarem a fundo onde quer que encontrem córregos subterrâneos de sangue. Os bacilos apalpam, perscrutam, afundam nas artérias. São como os crocodilos que umas vezes à esquerda, outras à direita, seguem ao sabor da corrente, nem mais depressa, nem mais devagar que ela. E os anticorpos, cheios de rodeios no seu retorno à terra, descem numa glande de vincos engomados para quebrarem-se contra os vibriões em arestas finas e terminais. A chuva parou. Já nos posso ver atirados contra uma dessas árvores mortas de que o rio está cheio. E a água, no pino do calor, é um intermediário entre o tecido e o creme: é que ela, aos poucos, foi esvaziada da velocidade adquirida nas quedas. Já a minha cabeça é um insecto gelatinoso semidevorado pelas folhas que baloiçam sem nervura nem pecíolo. Quinze dias atrás, eu podia dizer (e dizia): tudo que está à esquerda é pastagem; tudo que está à direita é lavoura. Mas agora a vida é como uma floresta inteira incapaz de fotossíntese. E a minha narina direita inchou como se lhe tivessem metido dois caralhos para dentro; a juntar a isso, engoli um pedaço de dente. A metade que ficou na mandíbula escora-se numa bolsa de pus. Só agora estou convencido: foram quatro dias a pé mal se tendo nas pernas. À mula de carga também: de tanto andar, os joelhos lhe entraram no corpo. Nesse labirinto de caramujos, todos sentem a mesma contradição. Longe de nos alargar as vistas, a ida do mato ao rio é como o fecho pontudo dessa correia complexa que nos prende por todos os lados, à maneira de uma apoteose que se vai a voar.

 

Peor

despesadiaria às 00:17
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Domingo, 5 de Outubro de 2014

 

II

 

Ao longe, uma figura arredondada oscila na rebentação das ondas. Naquela distância, e com a imprecisão ocular de um canivete que esboroa um pedaço de madeira bichoso, não é possível discernir a identidade daquele objecto ou ser que teima em não naufragar. Sobre a pele que reveste os joelhos, as filigranas de areia começam a tecer o seu manto arquitectural, uma cidade futurista, o recobro de outra, desaparecida, entre ambas, uma caverna de centopeias mínimas, luminescentes. Levanta-se, ajeita o vestido que não acaba além da areia tatuada, desce a duna como um gato doméstico que fareja, de barriga cheia, a presa: não é a fome que a move, mas um desejo primordial de (re)conhecimento. Os pés descalços traçam a linha assimétrica do caminho que vai deixando atrás de si, de repente, uma vontade enorme, gigante, avassaladora, incontornável, de urinar. Pára, olha em redor, ninguém à vista, baixa as cuecas, agacha-se e deixa escorrer um fio amarelado que forma uma nascente no segmento do areal onde parou e que esbrava caminho até ao rebordo do mar, desaguando exactamente no ponto onde aquela figura se movia. Levanta-se de novo, segue a rota traçada pelo que libertou, mas, no momento em que a inesperada vereda embate na coisa que ali estava, esta desaparece, evapora, liquidifica no mar ancião, o princípio de todas as coisas, de onde tudo vem e onde tudo chega.

 

gisandra

despesadiaria às 03:58
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Sábado, 4 de Outubro de 2014

 

Die Königin der Nacht

 

Foi uma pessoa do tipo D que eu vi. A receita não domino, mas o processo de decomposição ia avançado e, pelo aspecto, não se podia dizer que tivesse levado um grão de açúcar. Avançava à minha frente, o peso do seu corpo alto e esguio transposto de um pé para o outro, lentamente. Velha, andrajosa, de longos cabelos grisalhos e maltratados, imponente no seu reino por terra, dava meia dúzia de passos, estacava e abraçava-se. Via-lhe as mãos, uma de cada lado do lombo, divagando timidamente. Depois retomava o passo, que alternava com a dança, o passo e a dança, o passo e a dança, alheia às regras do baile.

Eu ainda não apodrecera o suficiente para atingir o estádio do ritmo possível, pelo que não tive outro remédio: ultrapassassei-a.

Penso nela muitas vezes, chego mesmo a vê-la, linha de horizonte imaginada, indefectível.

Para lá caminho.

 

Menina Limão

despesadiaria às 23:56
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Sexta-feira, 3 de Outubro de 2014

 

Especialista

 

- Na verdade, é um excelentíssimo filho da puta…

A frase persiste no ecrã branco, já a apagou 15 vezes e dá pelos dedos a escrevê-la de novo, como se a sua vontade ou falta dela não fossem tidas nem achadas para o caso. “Que merda”, pensa. Quinze anos de carreira em suspenso por não conseguir escrever um mísero perfil de 1500 caracteres sobre Radomilo Takitango, o novo avançado do Crotemburgo. Um puto de 22 anos, quatro de reformatório, feitio difícil mas muito talento, dizem os medíocres comentadores que habitam nas televisões. Mas Altério Ferubal sabe que Radomilo nunca passará de ser um excelentíssimo filho da puta e não consegue escrever coisa diferente.

Vai à varanda fumar um cigarro. Nos últimos tempos tem relembrado mentalmente todo o seu percurso. O puto chato que não jogava nada mas lia religiosamente os jornais desportivos; o adolescente que sabia de cor os plantéis da 4ª Divisão Zona Sudoeste de Cima; o estranho caso do leitor desconhecido que enviou uma crónica o director do jornal a explicar porque é que o 4-4-2 de Eviro Stálio era um erro profundo. A recordação de ter sido a primeira vez que o jornal publicou um texto sem saber ao certo quem era o autor. Um estrondo tão grande que o próprio Eviro se demitiu duas semanas depois e emigrou para a Farabénia, onde nunca ganhou nada. Passados dois meses, Altério Ferubal estava no gabinete ao fundo da redacção.

A enciclopédia viva, o crítico feroz, o homem mais temido por jogadores, treinadores, presidentes e pela senhora da limpeza, encarregue de lhe esvaziar cinzeiros e apagar os vestígios de uma existência pouco compatível com sabões, detergentes ou lenços de papel.

E o ecrã permanece em branco, com os mesmos caracteres filhos da puta a insistirem na verdade inconveniente. Foi há coisa de dois meses que Altério descobriu que estava farto de futebol. Farto ao ponto de se agoniar perante a visão do relvado. Farto ao ponto de ter cancelado o serviço de televisão por cabo. Farto ao ponto de ter começado a ouvir obsessivamente os concertos de Esteltin Koporev para clarinete e violino.

E foi por isso que Radomilo Takitango ouviu a campainha da porta tocar a meio da noite. Estranhou, gritou o mais ameaçador “quem és tu!” que conseguiu congeminar, estremeceu quando ouviu a resposta: “Altério Ferubal, preciso de saber se ainda tens contactos nas Ilhas Surdomelas”.

Cinco meses depois, Radomilo ganhou a bota de ouro. Não colheram os protestos dos defesas Arrebatinho e Falaquéquio, rivais de clubes adversários e súbditos de um mesmo cirurgião que lhes prometeu a cura para o que resultou dos inadvertidos choques a piton de aço com a jovem estrela. Radomilo agradeceu o troféu a “um gordo que a esta hora deve estar a beber copos na praia”. Quase todos pensaram que falava do pai - morto de cirrose há dias - e não da lenda sumida que, desde há várias semanas, enchia manchetes de jornais, os cornos dos tipos da esquadra de investigação criminal e o temperamento irrascível de um director de jornal sem respostas para os leitores.

Ontem, o maestro da Orquestra Metropolitana Central  recebeu uma estranha carta de um “estudioso de partituras” que denunciava a falsa virtude do novo solista. Ainda não conseguiu deixar de pensar no que leu…

 

DoVale

despesadiaria às 10:33
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Quinta-feira, 2 de Outubro de 2014

 

Resiste, ainda, ao motor do progresso, uma pequena barbearia, na Rua Direita. O proprietário é um homem que conheço desde muito novo - era o barbeiro do meu avô e do meu amigo Soeiro. Trata-se de uma pequena loja, um edifício isolado, com uma decoração modesta, ignorada pelas marcas de cosméticos. Pelas paredes permanecem uns posters do Águia, um clube que há mais de 50 anos deu origem ao União, juntando-se ao Operário e à Ginástica. A clientela resume-se a septuagenários debilitados e a uma rapaziada que, tal como eu, não consegue conceber o seu desaparecimento. Quando ontem lá entrei, o homem estava a terminar um serviço com o velho Campainhas. Recebeu-me, como sempre, a perguntar pelos toiros da última corrida de Setembro mas, não pude deixar de estranhar o som raro que saía do rádio pousado na prateleira junto da porta das traseiras. O Zé Careca, como é conhecido, apesar da sua farta cabeleira branca, tem por costume ouvir a Rádio Amália e, por isso, habituamo-nos ao corte do pêlo ao som de um fadinho maroto. Porém, desta vez, a música era outra. Não demorei a conhecer a voz de Nat King Cole e, confesso, também não me surpreendi por ser ele o escolhido. Cantava as canções latinas, com aquele sotaque ternurento que o Zé Careca ia trautiando com uma frase ou outra. Foi então que me disse "O Nat King Cole". "Reparei" - respondi -  "e até estranhei não estar nos fados". "Não... às vezes, ao fim da tarde, ponho este. Comprei-o no outro dia. Tive em disco, há muitos anos. Agora comprei o CD." A conversa prosseguiu animada. Lembrei-lhe que era Dia Internacional da Música. Falámos do Júlio Iglesias, do Roberto Carlos, do Tony de Matos e, um pouco a medo, mencionei Nelson Ned, que ele aceitou entusiasmado. Contou-me dos seus hábitos, de como se deita a ouvir a rádio, com os auriculares porque a mulher "não gosta de música"; de como acorda e a primeira coisa que faz é ligar o aparelho; de como ao Domingo se senta no sofá e ali fica a ouvir os discos que foi coleccionando ao longo dos seus dias. Disse-o com a solenidade de quem guarda um castelo e isso emocionou-me. Acompanhou-me à porta e despediu-se de mim. Quando eu já seguia o meu caminho, chamou-me e disse num tom irónico "E hoje também é o dia do idoso". 

jorge c

despesadiaria às 09:58
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Quarta-feira, 1 de Outubro de 2014

 

Tenho algumas dificuldades em escrever o que quer que seja neste dia em particular. Quarta-feira, dia 1 de Outubro de 2014: que merda de dia de merda. Comecei logo por acordar mal disposto, devido certamente a determinadas condições gastro-cósmicas desfavoráveis. Saí atrasado de casa (e desconfio que o fiambre do pequeno-almoço estava estragado), apanhei um trânsito desgraçado, e, para piorar, já não arranjei estacionamento. Fui obrigado a deixar o carro na rua, mas não tinha trocos para o parquímetro. Já lá deve estar o Agente Venâncio, todo ufano, a passar a merda do papelinho, colocando-o, de seguida, no pára-brisas, onde toda a gente poderá ver a merda de incumpridor que eu sou (ver os gajos que me lixam o carro todo ao estacionar, isso é que está quieto). Pode ser que uma gaivota o leve, à merda do aviso.

Aqui no escritório o cabrão do telefone não pára de tocar, o FAX guincha que nem um porco a ser degolado, a Fátima ri-se como uma hiena, e, no andar de cima, o martelo pneumático martela que nem um desvairado há mais de uma semana. Ainda gostaria de saber que merda de obra andam ali a fazer (uma câmara de tortura?).

Felizmente tenho aqui um corta-unhas. Nem imaginam como pode ser relaxante cortar as unhas no escritório. Agora que reparo nisso, diga-se, em abono da verdade, que o corta-unhas é um belo objecto. Toda uma evolução metalomecânica para suprir determinada necessidade: o engenho humano no seu esplendor. Já o mesmo não se pode dizer da merda do papel higiénico. No tempo do CERN e do Bosão de Higgs ainda temos de limpar o cu à merda de um pedaço de papel. Enfim, incongruências do género humano. Mas, por falar nisso, até o caralho do papel já se acabou na casa de banho. Só me falta agora apanhar uma caganeira do caralho para o dia ser perfeito.

 

nev

despesadiaria às 12:36
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