Domingo, 30 de Novembro de 2014

 

Third world problems

 

Do alto deste prédio, ninguém parece uma formiga. Não há abismo, como nos filmes; uma abstracção a convidar ao esvaziamento. Vê-se perfeitamente a mercearia do Sr. Esteves, o sapateiro do Sr. Augusto, o aleatório casal cansado e um passeio impecavelmente limpo. Que belo bairro. Faz todo o sentido que não seja o meu. É tão cedo; oito da manhã a cortar a respiração, a respiração a cortar o ar gélido, os meus melhores agasalhos, as contas todas por pagar, as mensagens de Natal exemplarmente ignoradas. Pelo canto do olho esquerdo, vejo entrar no enquadramento uma mulher de passo largo e ondulante, cabelos ao vento, cachecol colorido, pernas longas em collants transparentes. Um súbito abatimento. Ainda não é hoje que me atiro. Não fiz a depilação.

 

Menina Limão

despesadiaria às 10:32
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Sábado, 29 de Novembro de 2014

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Escreveu:

 

Estimado Miguel Capelo Sousa Viveiros,

Quero começar por prometer que a frase que escrevi antes desta será a última mentira que lhe dirijo. Porque de “estimado” você nada tem. Absolutamente nada. Mandaria a prudência que, na hora em que apresento a minha demissão, me mostrasse agradecido pelo emprego que me proporcionou nestes seis anos que levo na sua empresa. Deveria, talvez, louvar o seu espírito de liderança, a justeza das suas decisões, a amabilidade no trato.

Mas estaria, mais uma vez, a mentir.

Na verdade, quero que saiba que você foi o pior patrão que alguma vez conheci nestes 25 anos que levo de profissão. O mais arrogante, o mais ignorante, o mais lesto a apropriar-se das ideias alheias para as fazer brilhar como suas. Não sei se tem noção do quanto as pessoas destes escritório o odeiam. Não, Dr. Miguel, ninguém acha que você tem graça, ninguém acha que você faz uma boa imitação do professor Cavaco Silva, ninguém pensa que os seus reles comentários sobre as mulheres que entram no escritório têm graça (já pensou que o facto de existirem três casais nesta casa pode tornar as pessoas mais sensíveis?), nem tão pouco o empregado do restaurante onde você almoça todos os dias acha alguma piada às suas graçolas sobre o estado do tempo ou o tempo verbal em que faz o pedido.

O que o senhor precisa definitivamente de compreender é que você é uma pessoa de merda. Ou uma merda de pessoa, como queira. Talvez a sua extrema vaidade seja a razão que o impede de ver o quão cruel e arrogante consegue ser para os que o rodeiam. Será tão difícil compreender que as pessoas detestam que lhes peça para ir à lavandaria ‘num instantinho’ ou que lhes vá buscar uma encomenda pessoal ao correio ‘num pulinho’; que o contabilista tenha de tratar do seu IRS e das declarações de mais cinco membros da sua família ou que as suas secretárias fiquem todas as semanas hora e meia para lá do horário de serviço porque precisa do ‘favorzinho’ de uma boleia para levar sua mulher a casa?

Já agora, quero que saiba que não, a sua "jovial e encantadora" esposa não é a mais bonita que já vimos. Nem sequer é a mais bonita que já vimos hoje. É até uma mulher bem desagradável, talvez seja o hálito a leite azedo que a prejudica. Ou será das mamas desproporcionadas que você lhe ofereceu no Natal passado?

Por isto tudo e mais alguma coisa, despeço-me sem um adeus. Espero sinceramente que só nos voltemos a encontrar em tribunal (o seu advogado explicar-lhe-á) . Diria passe bem, mas seria mais uma mentira.

Quero que você se foda.

 

Gravou o texto. Quando o computador lhe perguntou o nome do ficheiro não precisou de muito tempo para pensar: carta de despedimento v45.
São nove e meia. É melhor começar a abrir o correio que o cabrão deve estar a chegar.

 

DoVale

despesadiaria às 10:25
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Sexta-feira, 28 de Novembro de 2014

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A Casa Smithes

Peso da Régua, Julho de 1855

 

Querida tia Dotty,

Com enormes saudades lhe escrevo, nesta breve paragem que faço na Régua. Sigo a caminho do Porto, depois de uma prolongada visita à região vinhateira. Lamento não lhe dedicar o tempo que seguramente lhe devo nesta e em tantas outras cartas que falho em escrever-lhe; devo, porém, embarcar para a cidade em poucos minutos. Mas não irei sem lhe deixar, para seu informado cuidado, estas três páginas escritas com a pressa com que ultimamente correm os meus dias. Digo-lhe, ao demais, que para compreender o novel emaranhado que é a minha vida, bastará o anúncio breve das suas principais linhas para se poderem atar os nós decisivos do entendimento.

Fugindo à partida dos variadíssmos problemas que me enlameiam o passo, digo com alegria, a si, querida tia, que a vindima deste ano, apesar da parca quantidade de uvas, deverá produzir vinhos prodigiosos. No presente estado de desolação que se abateu pelo Douro, será um sopro abençoado e de esperança. A praga continua a alastrar pela terra. Todas as aldeias desesperam quando o labor do fio de meses é perdido em poucos, nefastos dias. Há sete anos, quando visitei pela primeira vez o país do vinho, pareceu-me ter descoberto um paraíso habitado, não por anjos, mas por uma raça de criaturas toscas e sujas, em plena comunhão com o mundo natural e todos os seus seres inferiores. Não esperei nunca a sua amizade, e menos ainda a sua confiança. Depois, com mais atenção, vi como dominavam e subvertiam as leis desse mundo e sobre ele estendiam o edifício rústico, mas aprumado, da sua sociedade. Ora, assistimos a um tempo de estranha novidade para a ordem antiga que subsiste no Douro. Esta nova moléstia não estava prevista nem foi contada em nenhuma prece ou lição deixada pelos séculos. Nada sobrevive no escuro; as pessoas estão desamparadas.

Um dos primeiros lavradores com quem estabeleci negócio foi o senhor Motta, actualmente um grande amigo da nossa casa. Com ele aprendi o cuidado que se deve a tudo o que cresce da terra, homem ou planta. Sendo lavrador com extensíssimas terras no distrito de Covas, impressionou-me a sua profunda angústia quando a moléstia primeiro atingiu as suas vinhas. À primeira vide doente, dedicou dias inteiros de cuidados, passados quase sem comer e sem dormir. Toda a comunidade da quinta se mobilizou em meios e braços para suster a praga. Quando, ao final de sete dias, a vide que ele tão extremosamente tratou, cuidou como pode e como não sabia, com ínfimas poções em que se descobrisse o milagre de um remédio; quando a vide, por fim, morreu, todos se juntaram ao senhor Motta, que permaneceu de joelhos, de mãos na terra, prostrado sobre o cepo seco e morto. Durante essa fria noite, entre ele e entre todos que o viram partilhou-se o mais íntimo desalento.

O luto tem-se espalhado de aldeia em aldeia, da Régua até para lá da Valeira. A terra sofre, e as pessoas que nela crescem sofrem com ela. Sempre foi assim no Douro, contam-me. Porém, como a força do rio que por lá corre, as dores calam-se nos dias de lavoura e a esperança vai renascendo naquela gente, não sei ainda por que misteriosa luz. O senhor Motta, ao longo de muitas e laboriosas semanas, tem inventado formas de, se não anular, ao menos abrandar os efeitos da terrível doença. Graças a ele, ao seu engenho e perseverança, nesta vindima os nossos vinhos deverão sair já com o vigor que lhes é sobejamente reputado em Inglaterra.

Queria tia, muito contente lhe conto que o sucesso da nossa casa se deve à estimável e preciosa parceria com os lavradores desta terra. Os terraços da nossa belíssima casa de Lamellas, em Covas, dificilmente rivalizarão com o seu magnífico jardim de Entre-Quintas; mas a bênção que aquela casa é!, por nos permitir a gerência de todos os negócios na região, a visita dos nossos queridos amigos e, ainda e mais que tudo, o repasto das doces tardes de verão. Não há decididamente sol tão puro como neste país – a tia sempre me disse. E desse sol, lhe digo, vem toda a excepcionalidade deste vinho.

As grandes casas de lavradores do Douro percebem isso. Uma figura, em particular, domina com perfeita mestria essa maravilhosa alquimia que transforma o sol em vinho. Os nossos compatriotas no Porto vêem-na apenas como mais uma nativa ignorante, indigna do seu interesse. Messr. Greig pensava precisamente o contrário, e escreveu-lhe pouco antes de partir recomendando os meus préstimos e incentivando o negócio com a casa. Foi assim que conheci Dona Antónia. Estávamos na Régua, eu e Henry, que tinha vindo visitar o país por altura das vindimas. A inteligência de Dona Antónia cativou-me de imediato e desde então tenho-me correspondido regularmente com ela. Planeio, aliás, uma grande parceria com a sua casa, se assim no Porto me derem os meios para tal. Dela tenho recebido preciosos conselhos. O senhor Motta entusiasma-se sempre com os relatos do trabalho na sua mais requintada vinha, o Vesúvio. A sensibilidade daquela grande senhora para o vinho e para os negócios são já lendárias entre as gentes do Douro. Como já o confessei a Henry, tenho a inteira certeza que, se pretendemos o contínuo e crescente sucesso da nossa casa, Dona Antónia será a chave para o alcançar.

Mas eis que se levanta a magna e indignada oposição dos nossos compatriotas no Porto. Já lhe contei, tia Dotty, como me sinto tristemente excluído, duplamente expatriado, da excelsa comunidade inglesa naquela cidade. Nem as elogiosas palavras de Messr. Grieg valeram à minha boa aceitação. Os capitais que me faltam para firmar o meu nome como sócio de propriedade, em pé de igualdade com Mr. Archibald e o irmão em Londres, impedem a minha plena inclusão no grupo dos comerciantes. Dificultam a minha entrada no club, ignoram-me em todas as festividades que animam os salões. Com grosseiro descaramento, concedem-me os fundos necessários à administração dos negócios apenas ao juro que se pratica aos portugueses de crédito duvidoso. Cheiram e apregoam publicamente a ruína! Todas as portas se fecham e nas minhas costas vão segredando as desgraças da nossa casa, antes próspera, agora irresponsavelmente deixada ao cuidado de um simplório do Yorkshire. Sei que o dizem e magoa-me – não por mim, mas por todo o respeito que eles devem a Messr. Grieg, e a si também, tia Dotty, a quem eles tanto devem.

Não me queixo do desprezo que me votam. Aliás, agradeço-o. Sem ele dificilmente teria descoberto e jamais entendido os segredos do Douro. Os ingleses vivem já com dificuldade na urbe imunda do Porto, nunca se veriam entre os vinhedos da região. O desabafo vem também do meu amigo Mr. Forrester, a notabilíssima excepção a esta regra –  ou, talvez, nem por ela contemplado, já que o cofre da sua nacionalidade há muito que abandonou as ilhas britânicas, e está agora preso ao curso deste rio. Foi ele a inspiração do meu plano. O sucesso da sua firma deve-se, quase por inteiro, à sua desmesurada dedicação à terra do vinho. Sigo confiante no seu encalço.

Conto-lhe, por fim, que me agarro a este plano nas noites em que desfio as humilhações que no Porto me têm preparado. No meu pensamento o terei também quando ler os votos do meu casamento. Ainda não conheci a minha noiva, Miss Teage, com quem me casarei em breve. Não importa conhecê-la. É apenas um expediente, uma mercadoria, tal como eu o sou, tal como o casamento será o preço para aceder a um estatuto aceitável dentro da comunidade e aos seus valiosos capitais. Os Teage são dela um importante pilar de respeitabilidade. Demonstraram a sua imensa generosidade ao ceder a mão de uma de suas filhas a um pária como eu. Aceito todas as condições em nome da nossa ainda periclitante casa, e em nome deste plano que me preenche as horas. Sinto genuína pena por Miss Teage. Talvez venha a amá-la, talvez não, talvez ela compreenda o negócio do nosso casamento; talvez não. Espero, pelo menos, dar-lhe uma vida digna e honrada. Dar-lhe-ei também o meu sonho, se ela dele quiser comungar. Dar-lhe-ei, com a mesma benevolência com que o sol acaricia a terra, a promessa de criar algo novo e belo. E talvez o amor.

Devo partir, tia Dotty. Escrever-lhe-ei assim que chegar ao Porto, em dois dias. Deverei encontrar-me com Henry em Outubro, por altura das vindimas. Quando dermos por terminada a lavoura, marcarei o meu casamento para a semana seguinte. E embarcarei para Inglaterra por altura do Natal. Apresentar-lhe-ei Miss Teage, digo, Mrs. Smithes nessa altura. Anseio por vê-la, querida tia, mais do que qualquer outra coisa neste mundo.

O seu devoto sobrinho, que lhe guarda todo o afecto e saudade,

John

 

p.a.leitão

despesadiaria às 14:28
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Quinta-feira, 27 de Novembro de 2014

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(Micções)

 

A velha impressora X LFH-7615 andava a manifestar, desde há umas semanas a esta parte, um comportamento deveras estranho. Sempre que recebia uma ordem de impressão, a vetusta máquina iniciava uma série de rugidos interiores, como se, tomada de uma crise intestinal aguda, fosse a qualquer momento regurgitar toda a porcaria ingerida numa pândega realizada na noite anterior. Porém, após alguns minutos de revolver visceral, a ameaça não se cumpria. Tampouco imprimia o documento que lhe fora pedido, seguindo-se um período de silêncio e placidez que perdurava até nova ordem de impressão. Os sintomas de má digestão perduraram por vários dias, aumentando, porém, o grau e intensidade dos tugidos internos da velha impressora sempre que os seus serviços eram necessários. De igual modo, continuava sem expelir das suas entranhas o que quer que fosse, dando a sensação que, à medida que os dias iam passando, cada vez ficava mais inchada. As perturbações intestinais, essas, já eram tão frequentes que se manifestavam agora a qualquer altura do dia. Aos bramidos interiores, que por si já assustavam todo o escritório, acresceram pequenos e súbitos movimentos da impressora, como se estivesse a ser dilacerada por cólicas infernais.  

Incomodado e saturado com toda a situação, o velho Dr. F. decidiu que estava na altura de substituir a impressora X LFH-7615, cujo préstimo, aparentemente, se esgotara. Encomendou um novo modelo, de última geração, e mandou que lhe levassem a impressora para o electrão mais próximo. Coube ao estagiário R. a ingrata tarefa de a transportar na sua última viagem. E foi durante o trajecto que o inusitado sucedeu. A velha impressora, após dias de desarranjos intestinais, começou a imprimir ininterruptamente. Como numa torrente contínua de diarreia, saiu do interior da impressora um total de 217 páginas, todas numeradas, contendo um texto com 91.357 palavras. Estupefacto, o estagiário R. passou o resto do dia e da noite seguinte em leitura desenfreada daquele extraordinário texto. No final, sabia que tinha em mãos algo de prodigioso. Todavia, faltava-lhe um título. Resolveu, após dias de desespero e inúmeras tentativas, chamar-lhe “A Cólica”. De seguida, enviou uma cópia a várias editoras, que prontamente se digladiaram entre si pelos direitos de publicação.

“A Cólica”, romance de estreia do escritor R., vai, hoje, na sua oitava edição, com mais de 100.000 exemplares vendidos em seis meses. Com os direitos de tradução já negociados, é presença permanente nos escaparates das livrarias, e a crítica não fala de outro assunto. “A revelação do século”, “Um romance visceral”, e “A melhor obra em prosa escrita em português”, tudo frases que constam da contracapa da última edição portuguesa.

 

nev       

despesadiaria às 15:09
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Quarta-feira, 26 de Novembro de 2014

 

Uma Aventura na Pós-Adolescência

(dedicado a Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada)

 

Álgebra linear, ou lá o que é,” explicou o Chico, no seu jeito abrutalhado. “Sabes como é o Pedro. Deve estar a chegar. E o João? Não o vejo há três meses, desde aquilo.”

Luísa arregalou os olhos e inclinou-se sobre a mesa. “O João passou-se, ninguém te contou? Pediu a Teresa em casamento. Foi uma cena tão triste. Foi lá a casa com o fato das entrevistas de emprego e duas alianças de latão. Fazia questão de falar com o nosso pai. O problema é que se esqueceu de a avisar primeiro. Ela entrou em pânico, evidente, pediu-me para o meter na rua e depois trancou-se no quarto. E o João no vestíbulo: ninguém o convida a sentar-se, ninguém lhe oferece um café, não é nada disto que ele viu nos filmes.”

Em que século, em que planeta, é que esse gajo vive?” perguntou Chico, com um ar divertido.

Depois do acidente a Teresa deu-lhe demasiada confiança. Saiam todas as semanas, ele andava sempre a arrastá-la para a Cinemateca. Uma vez, repara bem nisto, vão a um filme italiano e ele tenta impressioná-la com aquela coisa que ele faz, deves saber_”

Estou mesmo a ver.”

_e começa a debitar os diálogos com vinte segundos de antecedência. A Teresa, porque gosta de armar caldo com malucos e também porque deve ter concluído que estava a lidar com uma criatura inofensiva, decide dar-lhe a surpresa da vida dele e começa a mexer-lhe na coisa.”

Epá”, disse o Chico, levantando-se energicamente e começando a pontapear o chão com a biqueira da bota.

O João cala-se logo com os diálogos e fica muito quietinho no assento, os olhinhos abertos, os lábios rígidos, mas ela garante que a respiração dele continua normalíssima e jura a pés juntos que a batida cardíaca seguiu imperturbável. Mas abaixo da cintura_”

Eu quero lá saber disso, ó Luísa!”

_tudo normal. Segundo ela, que eu não perguntei. Tamanho um pouco acima da média, asseadinho. Palavras dela. Mas isto sendo o João, o que é que ele faz? Antes de se vir, desvia a mão da Teresa, puxa de um lenço bordado do bolso do casaco e enrola-o à volta da coisa como se fosse ofensivo se ela o visse a_”

Eu sempre disse que ele não batia bem.”

_ estás bem a ver? Não é um guardanapo que havia ali à mão, Chico. Um lenço bordado no bolso do casaco.”

Quem é que anda com lenços no casaco?”

Quem é que se esporra para lenços bordados?”

“Não é normal.”

A Teresa nem sabe onde é que ele enfiou o lenço depois. Fica tão abalada que nem presta atenção ao resto do filme. Ele tenta comentar uma cena qualquer à saída e ela até tem medo de lhe dizer que não se lembra, pois o mais certo é que ele desate a papaguear as palavrinhas todas. Lá lhe diz que tem dor de cabeça e apanha um táxi. No dia seguinte baldou-se ao turno no supermercado com medo de o encontrar. Depois, dá para adivinhar, começa a ter dúvidas.”

É mesmo da Teresa.”

E vem-me com 'Ai, Luísa, será que estou a exagerar?' bla bla bla. Convence-se de que, na verdade, foi um gesto galante, eloquente. Ele continua a telefonar, deixa-lhe mensagens engraçadas (eu ouvi duas quando ela estava no duche e não achei graça nenhuma). Já com certeza de ter reagido histericamente, é ela quem faz o telefonema seguinte e o João é todo rococós e cavalheirismos e pergunta-lhe se pode passar lá por casa. Diz que tem uma surpresa. Ela põe-se logo a imaginar um gesto romântico, um ramo de flores, ou outra coisa qualquer com um simbolismo de cinema que ele depois tratará de explicar detalhadamente.”

Santa paciência.”

E a Teresa começa a cair na fantasia, a achá-la confortável. E uma hora depois ele aparece-nos à porta com a cara mais solene e assustadora do mundo e diz que quer falar primeiro com o nosso pai. A surpresa está no bolso, diz ele, com um sorrisinho. E saca do lenço.”

Não pode ser.”

A Teresa fica branca e eu também, pois pensei o mesmo: que ele ia fazer um daqueles truques de ilusionista e começar a sacar lenços esporrados, um para ela, outro para o nosso pai, outro para a nossa mãe e sabe-se lá quem mais. Mas dura pouco, pois no momento seguinte ele abre o lenço e mostra-lhe duas rodelas de latão e diz que a ama, e etc, etc, e ela percebe que está metida num grande sarilho, mas um sarilho diferente, pois entretanto o nosso pai chega da cozinha a perguntar o que se passa.”

Mas olha lá, o lenço era o mesmo ou não?”

Ó Chico, o que é que isso interessa?”

Silêncio. O Chico enfiou as mãos nos bolsos e voltou a pontapear o chão com a biqueira da bota.

O gajo nunca mais foi o mesmo desde que o Faial morreu.”

 

Alice G.

despesadiaria às 09:56
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Terça-feira, 25 de Novembro de 2014

 

Também eu tive um sonho, um sonho que partia do patamar a que já teríamos sido içados pelos fundilhos se não fossem as falhas na corrente elétrica. Nesse sonho, em que dava por adquirida a igualdade entre os homens e entre estes e as mulheres, a paz universal cobria a terra habitável com o seu manto doce (°Bx ≥ 22) e as gomas ácidas tinham desconto de cinquenta por cento em cartão todo o ano. No meu sonho, a televisão tinha deixado de chamar desertificação à comodidade do despovoamento e os comboios partiam com aquela segurança que só eles para destinos desconhecidos. No meu sonho, todos, baixos e altos, gordos e magros, ruivos e negros, androides e janelas, ateus e agnósticos, desempregados e inativos, cretinos e idiotas, todos e todas podíamos andar sós nas ruas da noite sem medo de acordar três dias depois numa valeta de Timisoara com um rim a mais ou uma colónia de larvas no gesso. Os povos falavam todos a mesma língua gestual e as buganvílias, as buganvílias, nem sei que contar das buganvílias senão que haviam abdicado dos espinhos por respeito aos passarinhos que, agradecidos, esvoaçavam pelas esplanadas, piu piu, polvilhando os queques com escitalopram. Do fim do sonho esqueci-me quando o estremunhar foi substituído pelo susto da pontualidade, a realidade de um ônibus com o seu percurso ondulante agarrado a uma hora, uma hora certa. O estado em que ficou o ursinho que me deste no nosso terceiro aniversário diz-me que talvez tenha sido pelo melhor mais este esquecimento.



E.

despesadiaria às 13:23
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Segunda-feira, 24 de Novembro de 2014

 

Que empregos já experimentou?

Os que estavam disponíveis. Jardineiro, cabeleireiro, cozinheiro e técnico de lavandaria. Todos horríveis.

Parece novo para tanta experiência.

Fazem formação em posto de trabalho, pode começar-se qualquer um a todo o momento; até nos incentivam nesse sentido.

O que é que correu mal?

Com qual?

Com todos.

Não me lembro.

Lembra-se que foram horríveis.

Está mesmo interessado?

[aceno]

Meteram-me a trabalhar com gajos que acreditam ser o Kennedy, o Napoleão ou o Dom Sebastião. Está a ver o dó de imaginação que para aqui vai, mesmo para um gajo que bate mal dos cornos? E não estou a brincar, era assim que chegavam ao trabalho. Bom, estou aqui, pensei eu, vamos lá, mas o esterco faz-me um bocado de confusão, e convenhamos que uma lavandaria tem tudo para correr mal. Foi o primeiro. Nesse trabalhava com dois tipos que se atropelavam para receber os clientes. Desafiavam quem entrasse com apostas sobre os respectivos poderes de adivinhação. O primeiro, filho de um astrólogo daqueles da televisão, garantia saber de caras o signo e ascendente de qualquer pessoa. Falhou de todas as vezes. Olhe que não estou a exagerar, nunca acertou. À primeira pelo menos. O segundo, que era filho de um feirante, garantia que acertava no tamanho e copa dos soutiens das senhoras que tinha à frente. Nunca falhou, mesmo quando estavam tapadas com casacos grandes e golas altas ou écharpes compridas. A infância deste infeliz foi passada a vender soutiens numa feira, e, numa feira, experimentar é complicado. Sei lá, acho que isto não é talento, é repetição, mas a verdade é que acertava sempre. Obviamente que nenhuma delas achava piadinha nenhuma a isto, a maior parte ia-se embora, algumas ficavam, deslumbradas com o outro tonto que sabia imenso de astrologia, e que tinha acertado à terceira ou quarta vez no signo. Enfim, pedi para ir para uma cozinha depois disto, confiante que não veria clientes, mas entrei numa sala fechada com seis doidos rodeados de facas e de recipientes de água a ferver. Tive medo, mas estava a ser estúpido. O trabalho de cozinha é de uma apatia que quase me comoveu, mas deste fui expulso.

Porquê?

Não resistia a fazer certas coisas e não aturava certas merdas.

Não estou a perceber.

O quê?

Pode dar-me exemplos? A que é que não resistia?

Bem, segui para a jardinagem, o problema é que tinha de escolher sempre um, compreende? Não podia estar ali sem fazer nada, escolhi jardinagem. Foi onde encontrei o Kennedy.

Fale-me desse.

Do Kennedy?

Estamos a falar do seu colega, não é?

Há outro Kennedy?

Hum

Estou a meter-me consigo [risos]. Este maluco pensava que era o Kennedy, é verdade. O Presidente dos EUA, o que foi assassinado. E tinha de levar todos os dias com isto. Atirava-se para o chão a qualquer barulho, fazia discursos, mas sobretudo nunca fechava a matraca. Este gajo trabalhava a falar em permanência. Eu acabava o dia com os nervos desfeitos. Bom, andávamos ali pelos jardins municipais. Os serviços da Câmara eram chantageados para nos adjudicar tudo o que quiséssemos, porque - está a ver não é? - coitadinhos, e um dia estávamos por acaso no jardim do hospital e o Kennedy pega num gancho e encosta-o ao pescoço de um desgraçado que só ia a passar, era o contabilista, tinha mais de um metro e noventa e urinou-se todo pelas calças abaixo, nunca mais nos esquecemos. O Kennedy só dizia que ia ser assassinado e chamava pelos serviços de segurança. Bom, vieram os enfermeiros e levaram-no e o gajo lá gritava que era o Booth, que era o Booth, o estúpido. Quer dizer, o Booth tinha para aí um metro e setenta

O Oswald.

Como?

Ele não gritava Oswald?

Sim, e o que é que eu disse?

Desculpe, continue.

Estive lá os três anos, depois um gajo tem de ir à sua vida, acaba o emprego protegido e eu fui à procura, mas passados seis meses estava de volta, não arranjei nada e fui ao que faltava: cabeleireiro. Não passei da formação e nunca devia ter começado. Felizmente deste não tive de pedir para sair, o curso foi interrompido. Estava para lá um, que entrou ao mesmo tempo que eu, uma bisarma descomunal, cabelo rapado, barba de meses, a primeira coisa que me disse foi que não era maluco como os outros. Olha-me este, está-se mesmo a ver. Eu sei que sou maluco, não tenho é paciência para malucos, que é bem diferente, mas dizia eu, que ele diz-me isto e estende-me a mão para apertá-la. Tenho justificado orgulho no meu aperto firme, mas este gajo esmagou-me os dedos de tal forma que soltei um grito, fraquejaram-me os joelhos, acredite, e o sacana com um sorriso cândido sem tirar os olhos dos meus. Olhe que, convenhamos, merdas de macho alfa num cabeleireiro, com franqueza. Ninguém passou do primeiro dia. Não sei se sabe, nestas formações treinamos com manequins. Este animal, só com a escova a puxar o cabelo das bonecas, arrancou a cabeça a três. Depois pedia imensa desculpa, parecia uma criança, mas aquilo tinha de parar por ali e uma das formadoras lá ganhou coragem e disse-lhe que não podia continuar, tinha de escolher outro ofício e o tipo passou-se e destruiu aquilo tudo. Espelhos, cadeiras, secadores, em cinco minutos o chão era um mar de entulho e a formação acabou para todos. Agora cá estou.

Já lhe perguntaram o que é que realmente gostava de fazer?

Sim, perguntam sempre.

E responde o quê?

Repositor de supermercado.

Está a falar a sério?

Repositor de supermercado.

Mas isso não deve ser complicado de conseguir.

É complicadíssimo. Já tentou candidatar-se a repositor?

Quer dizer, não, mas

Há sindicatos, há lobbies, isto é o emprego que toda a gente quer. Arrumar artigos, compor cinco prateleiras em altura, é trabalho criativo, dá gozo.

Nunca tinha visto as coisas assim.

Por isso é que é jornalista.

Eu não sou jornalista.

ah não?

 

Gouveia

despesadiaria às 15:08
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Domingo, 23 de Novembro de 2014

 

McClintock (não-ficção que só passa ao domingo)

 

Quando aprendi a conduzir, dividi o meu instrutor com outra rapariga, a Mariana. Era uma gaja de pacote à qual acrescentaram demasiada água — de resto, cozinharam-na na mesma forma bem enfarinhada, igual a tantas outras garotas geminadas, frutos de um mesmo ovo partido em pedaços exatamente iguais. Um estereotipo para apresentar à mãe. Mais alta e mais morena que eu, usava o cabelo comprido e atirava-o para o lado, contrariando o risco — uma rebeldia ensaiada, a única a que se permitia. Vestia apenas peças de corte senhoril, tinha uma predileção por casaquinhos de malha nos ombros, pérolas nas orelhas e tons sóbrios em todo o lado. Preferia o castanho e muitas vezes vestia-se integralmente dessa cor. Eu via-a cruzar a esquina a caminho do carro, todo o comprimento de perna enrolado nuns collants de mogno. Parecia um palitinho de All-Bran. Eu não duvidava que ela cagasse em função do calendário.

Fomos obrigadas a passar algum tempo juntas enquanto aprendíamos a dominar o Hyundai prateado. Em sessões de duas horas, alternávamos assentos: uma hora para ela, outra hora para mim; ela exibia-se na marcha atrás, eu mostrava-lhe como se faziam os pontos de embraiagem. Nas retas, trocávamos algumas palavras, mediadas pelo instrutor — ou a Mariana atirava-as contra a minha nuca enriçada. A familiaridade dos seus grandes dentes brancos convidava à partilha e os detalhes de uma vida-tipo iam sendo soprados através dos estreitos intervalos: estudava farmácia como quem busca minério, gostava de estrelícias, era capricórnio e via-o como uma característica mais definidora do que a rigidez com que as suas costas encaixavam no lugar do condutor. Em vez de histórias, eu devolvia-lhe migalhas — sim, não, a sério?, pois. A Mariana não levava a mal; as minhas respostas descuidadas ficavam soterradas no All-Bran, na estereoquímica, nas pérolas maiorquinas; a Mariana, como tantas outras, só queria ouvir o som das suas palavras refletido num par de olhos despertos.

No dia do exame de condução, a mão fina agarrou-me pelo braço e puxou-me com sorrisos através do átrio do centro de exames. Notei alguma urgência na forma como os longos dedos me pressionavam a carne. Parámos na casa-de-banho das senhoras. A Mariana encostou-se à fila de lavatórios.

— Tenho quase a certeza que me veio o período — disse, fazendo a cabeça rodar entre a porta entreaberta do cubículo em frente e as minhas sobrancelhas enrugadas.

Eu também tinha quase a certeza que lhe tinha vindo o período: eu estava com o período — adiantado, anormalmente doloroso, como uma porta arrombada. O meu útero e o da Mariana de mãos dadas, saltitando rumo ao pôr-do-sol sangrento. A passiva-agressividade feminina que cumprimenta com uma mão para logo esbofetear com a outra: menstruações sincronizadas. A realidade detestável de ter uma parte de mim, mesmo que tão primária e tão pouco exclusiva, influenciada por outra gaja.

— Queres… queres alguma coisa para isso? — perguntei, começando prontamente a vasculhar a minha mala.

— Tens um penso? Tens um penso?

O meu primo de sete anos usava o mesmo jeito ansioso e os mesmos agudos entusiasmados quando procurava por caramelos no armário da cozinha. A cena não me irritava menos por causa disso.

— Não. Tenho tampões — e uma vontade quase irresistível de os atirar contra o nariz que se arrebitava de embaraço à minha frente. Um jogo de dardos. Um apedrejamento. Confettis!

As minhas botas pretas despertaram um súbito interesse na Mariana. Aproximou-se um pouco de mim e procurou o seu reflexo nas biqueiras por engraxar. Depois, apontou-me um olhar que acreditava ser autoexplicatório. Mostrei-lhe que não o era empurrando a cabeça para a frente, num movimento de pescoço brusco. Uma dança de interrogações e traduções falhadas. Ela acreditava na empatia, mas eu sabia que, entre nós, os únicos elementos capazes de comunicar no silêncio eram os nossos úteros.

— Eu sou virgem — acabou por dizer.

— Hum. Eu também.

— Mas tu usas tampões…

Fez-se silêncio. Até o candeeiro retangular, que do teto observava toda a cena, parou de fazer o seu barulho típico de iluminação industrial. Passara os últimos dois meses com aquela caricatura no banco de trás: não aguentei mais. Senti a minha cara contorcer-se: a boca abria-se, os olhos a fechavam-se; ondas de calor avermelhavam as bochechas salientes, sucessivas gargalhadas que quase passavam por guinchos, um curto roncar porcino e brutalmente sincero. O meu corpo curvou-se, abracei a barriga que tremia com um braço e estendi o outro para a bancada de mármore. Nunca me tinha rido tanto em toda a minha vida. Entre os meus guinchos, ouvi o estampido de uma porta furiosa, o papel higiénico a ser puxado sem cerimónia,

— QUAL É A PIADA?

Ria-me com tal vigor que logo comecei a tossir. Abri uma torneira e atirei uma mão em concha de água para a minha cara. Depois, com a humanidade libertada pelo ataque de riso, voltei a olhar para a escuridão da minha mala. Acabei por encontrar a embalagem cor-de-laranja de um penso higiénico superabsorvente. Lancei-a para dentro do único cubículo fechado.

— Obrigada. És uma pessoa horrível.

Fiquei verdadeiramente aliviada ao ouvir aquela frase.

 

S. White

despesadiaria às 19:38
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Sábado, 22 de Novembro de 2014

 

905

 

Manhã chuvosa e eu outra vez à tua espera. Não me queria estar sempre a queixar, mas dou por mim muitas vezes à espera de alguma coisa e, vamos dizê-lo sem mais rodeios, nos ultimos tempos é de ti.

A chuva também não quer saber se fico ridícula aqui à beira da estrada, coberta de plástico e de guarda-chuva em riste, como se fosse um pescador. As ondas batem com estrondo nos prédios em meu redor e a água chega por todos os lados. Ela não está à tua espera e por isso não percebe. Quer que eu volte pra casa.

Mas o pior ainda é fazeres-me sentir tão impotente perante o ritmo da tua passada, do teu caminho. Porque tu sabes que eu preciso de ti, que quero ir contigo. E por isso fazes-me esperar, essa antiga prerrogativa do poder. Fazes de propósito, só pode ser. Ah, que raiva sinto por precisar tanto de ti.

Mas preciso que venhas, e que venhas rápido. Preciso do teu calor, do teu conforto, do suave balanço do mundo visto pela tua janela. Preciso que me tires desta realidade cinzenta e chuvosa e me leves embora daqui para ser feliz ou infeliz, quem sabe. O padre está sempre a dizer-me que a paciência é a virtude mais difícil de obter mas também a mais frutuosa. Mas ele só sabe falar de eternidade, quando o que lhe pergunto é tão urgente. Não tenho a vida toda.

Anda, por favor! Já estamos cá todas, como sempre. E mais virão, à tua espera. Não há posse nem ciúme, nem podia haver, era ridículo. Sinto, sei bem, como elas precisam de ti tanto quanto eu. Pressinto o vazio e o bloqueio que se apoderaria da minha vida se uma delas te tivesse só pra ela. Somos todas Irmãs aqui, estamos todas no mesmo barco.

Acendo um cigarro, fecho os olhos e imagino que te vejo vir. É o suficiente para o primeiro sorriso do dia. Cada uma de nós tem que arranjar técnicas para suportar a espera. Há quem goste, por exemplo, de se manter sempre ocupada, a ler, a escrever ou a falar ao telefone. Mas pra mim, isso é só para fingir que ainda não se submeteram, que não te esperam, como se estivessem ali por acaso.

De repente, um burburinho entre as vigias, velhas cadelas de olhos tão pequenos quanto míopes, mas capacidades auditivas tuberculosas (pudera, com este tempo!). São sempre as primeiras a ouvir o rugir que anuncia a tua chegada. Abro os olhos e vejo-te aparecer de rompante ao fundo da rua. O cigarro!, ainda pensei numa tentativa quasi-científica de racionalizar tanta excitação e alívio, com vista a posterior replicação em situação de semelhante angústia. Mas já não havia tempo para superstições, tu vinhas claramente disposto a compensar o atraso.  

Pus-me a jeito, e fiz-te sinal.

 

r ow t ag

despesadiaria às 19:55
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Sexta-feira, 21 de Novembro de 2014

...

É preciso, e é preciso bastante, que estejamos avisados de que, logo após o canavial que cobre tão regularmente a ravina, há uma casa que parece feita de renda de madeira; tem a estrutura flexível, suave, fina como os ossos de um gato (mas sem as ripas pregadas nas cambotas para guardar postura de vida). Sem tapeçarias, sem corante nas paredes, parece existir apenas para si mesma. Mistura de carvalho, azevinho e medronheiro, por duas vezes foi incendiada e reerguida no mesmo estilo de reconstrução de Hiroshima. Na ida de um cómodo a outro (são dezasseis), pode-se ver um rebanho de Yahoos a correr como uma descoberta enfiada na outra. E não há limite a partir do qual evidencia-se por dentro: uma arquitectura que é só externalidades, uma exoarquitectura. Só mais tarde lhe vem o sentido: a ligação entre as coisas é parte das coisas; uma parte que podemos ultrapassar sem merecer, e que vai um dia se tornar uma assombração na minha cabeça, sentada no meu cérebro entre as duas orelhas como se estivesse na sanita. Vou ter de levá-la por toda parte, espécie de chapéu-coco, ou daquelas coisas que esforçamo-nos muito para ver mas que, apesar de tudo, não podem ser maiores do que a nossa incapacidade de vê-las. 

 

Peor

despesadiaria às 03:51
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Quinta-feira, 20 de Novembro de 2014

...

deves adivinhar que é novembro, aquele mês em que os dedos te surgem crestados pela fuligem do carvão e das castanhas que golpeias, uma a uma, com a navalha afiada na pedra pomes destas tardes frias de outono. nem reparas em mim quando me aproximo, quase sem falar, e, na concha da tua mão, deposito a moeda que trocas por uma meia dúzia que velavas em câmara ardente. 

sigo o meu trajecto de volta a casa neste cacilheiro que galga as ondas em velocidade de cruzeiro, enquanto lá fora a chuva que começou por cair miudinha se estatela agora de encontro ao vidro fosco das janelas. o barco, esse, balança numa dança de convocar fantasmas e enjoos. posídon e mil dos seus cavalos em fúria viram o tejo do avesso. 

com o que me resta de dignidade, recuso dar-me ao pânico e, fora eu homem de menos esguardo, diria que não é coisa própria dos deuses invejarem um deleite tão mortal.

 

eram só castanhas, senhor.

 

- azeite

despesadiaria às 21:50
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Quarta-feira, 19 de Novembro de 2014

 

VI

 

Entre ele e o objecto, um vazio inominável. Da sua mente ausentaram-se os nomes, a funcionalidade do mundo existia à margem de qualquer definição, os usos tinham retornado aos serviços mínimos, um animalzinho gestual. Acordava pelas duas da tarde, as insónias nocturnas eram leves, concentravam-se num mostrador com um pêndulo que balançava, matemático, medidor do tempo que não consegue conceber. Mesmo com a ilusão do olhar a ceifar o vidro, o exterior não se traduzia, nos estilhaços do seu entendimento tudo se tornava indecifrável. Movia-se entre a sombra e a luz; numa, escondia o cansaço, noutra, deixava que um arrepio electrizante lhe estremecesse o corpo da cabeça aos pés, não existindo nada além de si mesmo, um palimpsesto humano. O final da tarde trazia sempre uma imprecisão nova repetida: alguém lhe entrava pela porta, a mesma indumentária a ferir de branco. Entregava-lhe as mãos, a língua, o peito. As sensações de frio e calor, em alternância, deixavam-no desatento, esgotado, desistira de compreender, apenas porque a desordem de si lho ordenava. Findava o encontro, um travo ácido descia-lhe pelo esófago para depois subir, na senda do sangue, à hipótese de cérebro. Uns minutos depois, o embrião de uma palavra gerava-se-lhe na boca, mas autodestruía-se logo a seguir, mesmo antes de conseguir levantar os dedos e, com o olhar (trans)lúcido de comoção, apontar para o relógio.

 

gisandra

despesadiaria às 00:23
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Terça-feira, 18 de Novembro de 2014

 

Paulo

 

Desisti que a realidade me acontecesse, mudei de estratégia. Agora digo às pessoas que me chamo Paulo. Ficam confusas, assumem que ouviram mal. «Obrigada, D. Paula.» «Paulo, Paulo», insisto. Sorriem, baixam os olhos, pisgam-se dali para fora. Evidentemente, não sou um homem. Não estou a fazer nada para ser um homem, apesar de me lembrar frequentemente do conselho de Don Corleone quando dou por mim à espera da felicidade, com as lágrimas a rolar-me pelas faces. Continuo a ir à casa de banho das senhoras. Até agora ninguém reclamou, apesar dos meus esforços em falar no masculino com quem se encontra na fila de espera: "Minha senhora, já viu como está o tempo? Cheguei todo encharcado." Mais consternacão disfarçada de indiferença. Alguma coisa está prestes a mudar na minha vida, tenho a certeza. Mal posso esperar para saber o quê.

 

Menina Limão

despesadiaria às 18:35
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Segunda-feira, 17 de Novembro de 2014

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Escritório

14h28. Era agora inevitável reconhecer o desastre anunciado. O prazo expirara há precisamente 28 minutos, o computador recusava-se a aceitar o formulário, estava agora tudo arruinado. Dois anos de esfrangalhamento mental, a pesar prós e contras, deve e haver, peso e medida. Tudo escrito, reescrito, desaprovado no geral mas ainda assim a permitir a leve esperança de que talvez o destinatário não achasse assim tão mal.

A decisão que não se toma é mil vezes pior do que a decisão errada. Passou a manhã a preencher as alíneas - Estes caralho querem saber tudo, pensou - estava tudo pronto, bastava carregar na tecla “enviar”, “send”, “go” ora foda-se, porquê Tristão, porquê?

Ele sabia que esta era a sua oportunidade. Um novo país, uma nova era, amarras cortadas, tudo certinho, limpinho, tábua rasa para começar do zero.

Mas não. Sentado à velha secretária do escritório, procurando escrutinar a paragem do autocarro por entre as lâminas vencidas do velho estore de madeira, percebeu que a derrota era inapelável e definitiva. Pegou no telefone.

- Sr. Jaime, daqui Tristão Valente. A que horar posso ir ao seu escritório para vermos essa questão do IRC?

 

DoVale

despesadiaria às 14:45
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Sábado, 15 de Novembro de 2014

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A Casa Smithes

Porto, Fevereiro de 1848

 

John sabia que a fortuna não lhe reservara qualquer lugar ou missão digna de nota. Nesse aspecto, era um jovem desiludido em paz com a vida. Pelas suas humildes origens, fora já uma sorte a tia Dorothy ter conseguido empregar os irmãos Smithes numa prestigiada casa bancária da City londrina. E agora surgia, para ele, a incrível possibilidade de aspirar à posição de sócio numa firma comercial com escritórios na Península. O epíteto de “negociante” agradava-lhe. Via nele, nesse papel, uma condição de aventureiro respeitável, pronto a viagar pelo mundo em busca de aliciantes oportunidades de lucro. Mr. Archibald, o sócio sénior da casa, contara-lhe das viagens que fizera com o pai nos primeiros anos do negócio: a cavalo pelas serras portuguesas cortadas em vales mais belos do que ousa a imaginação; cruzando a galope as planícies infindáveis da Andaluzia até ao repouso final e justo das praias do mediterrâneo. Se John não aspirava a uma vida de opulência e desmedido sucesso, esperava ao menos – queria ao menos – ver o mundo que existia para lá do seu Yorkshire natal. E a tia Dorothy, qual celestial benfeitora, atendera fielmente ao seu pedido.

John desconfiava, no entanto, da sua aptidão para merecer o que a sorte singelamente lhe propunha. Contara à tia Dorothy as suas apreensões, sobretudo o grande medo de não conseguir vingar aquela vontade que ele ardentemente sentia. E logo se apressava a desculpar a sua aparente, mas não sincera, ingratidão; eram apenas palavras de conforto que procurava. A tia Dorothy, como de costume, deu-lhe isso e mais ainda: entregou-lhe um precioso pedaço escrito de si. À partida de Inglaterra, há exactamente um ano, confiara a John as cartas que escrevera durante os treze meses de cerco à cidade onde morou na sua mocidade e para onde John partia agora – o Porto. Baixinho lhe confessou terem sido estes os dias mais excitantes da sua vida. A tia Dorothy conhecera o seu marido, Mr. John Procter, num baile em Lonsdale, sua aldeia de origem perdida nos pastos férteis do Yorkshire. Ao tio Procter, sócio de um negociante de algodão, cedo lhe foi pedido que se mudasse com a sua jovem esposa para aquela peculiar cidade da Península. Dorothy levou algum tempo a acostumar-se à nova casa, numa ladeira sobre o rio a que, no Porto, davam o nome de Entre-quintas. Mas depressa percebeu que os seus dias seriam, no menor dos casos, sempre intensamente preenchidos. O país travava uma terrível guerra consigo mesmo, alimentada pelas inquietantes ideias de liberdade e de progresso que chegavam da França e da Inglaterra. Os dias viviam-se por inteiro, ninguém parava um segundo para respirar. E depois veio o cerco. Às primeiras horas do levantamento das barricadas, Dorothy suspeitou possuir uma capacidade que nunca experimentara, provavelmente fruto daquelas extraordinárias circunstâncias: bastava-lhe querer, apenas querer, para deitar mão ao curso dos acontecimentos. Assim fizera. Aos primeiros dias do cerco, abriu a sua porta à causa e aos amigos do Rei Libertador. Ria cada vez que se lembrava com que solenidade os ministros e oficiais do Estado-Maior, reunidos à volta da sua mesa de jantar, proclamavam a chegada do seu querido amigo, «sua alteza, o Rei Libertador». Mas era quando o rei se sentava com ela à varanda da casa de Entre-quintas para tomar chá que ele, condoído, lhe confessava, no mesmo tom que John usara, «ponho em séria dúvida a minha capacidade de defender esta causa, caríssima amiga». Dorothy lembrara ao rei estas palavras quando, no final, vencido o cerco e a guerra, e já com Maria da Glória, sua filha, coroada rainha, ele viera ao Porto e à sua porta agradecer a valentia da cidade e o consolo dos lanches de Entre-quintas. Com a mesma gratidão com que louvara o Porto com o título eterno de cidade invicta, também Dorothy recebera, do seu coração, a graça de siege lady.

Era uma das histórias favoritas de John. Não admira que a cidade idealizada pelos contos de galhardia e heroísmo lhe tenha parecido deslocada da cidade real, burgo lúgubre e bolorento dobrado de velho sobre o rio, sempre em frenética actividade, como que para prevenir que a humidade infeste e apodreça as suas fundações: são as ruas largas que se abrem sobre vielas medievais, os palácios que se constroem sobre as ruinas de outros, chafarizes novos que se oferecem aos bairros decadentes, as igrejas que se renovam ao estilo da época, cafés novos que abrem portas às ideias novas. Estava mudada a cidade que Dorothy trocara alguns anos depois da guerra pelo conforto burguês da Inglaterra vitoriana.

John chegara ao Porto há exactamente um ano, numa manhã fria de temporal cheia de neblina, como são por costume as manhãs de Fevereiro. A falta de visibilidade obrigara o capitão do navio onde John viajava a encurtar a viagem e a atracar na foz do rio Leça, evitando assim a entrada na perigosa barra do Douro. Messr. Grieg, que o esperava, estava habituado a estes contratempos próprios daquele mar sempre bravo, e prontamente se apresentou em Leixões para o guiar à sua nova casa. Assim fora o seu primeiro encontro com Messr. Grieg, o amparo de John nesse ano e quem ele, em pouco tempo, tomou como mestre.

No prédio alto da Rua de São Francisco, Messr. Grieg recebia-o todas as noites para jantar. Conversavam sobre os assuntos da política, da ciência e da religião enquanto John saboriava os vinhos da firma. Messr. Grieg, pelo contrário, bebia quase sempre cerveja importada da sua Escócia natal. Nunca mais lá voltara desde que, aos 18 anos – a idade de John quando deixara Inglaterra – saíra de Edimburgo para se alistar na marinha mercante. Apesar de cedo ter deixado a vida de oficial, o velho criado português ainda o tratava por “senhor capitão”. Grieg era um cavalheiro recolhido mas toda a comunidade britânica na cidade o conhecia e admirava. Era exemplar o extremo empenho que dedicava às suas duas missões de vida: a administração da casa comercial, com escritório na Rua dos Ingleses, à Ribeira, e em constante e cordialíssimo contacto com casa-mãe em Londres; e o enriquecimento da biblioteca do club local, que pela sua mão se tornara uma das mais completas bibliotecas inglesas fora das ilhas britânicas. A trajectória diária de Messr. Grieg era simples de desenhar: de casa seguia para o escritório logo pelo raiar do dia; no final do expediente dirigia-se ao club, onde ficava a ler até o sol pôr, altura em que voltava a casa para jantar com John. É curioso notar que estes três pontos eram intersectados por uma linha geográfica real, a Rua dos Ingleses, que, entre os seus extremos (a casa da rua de S. Francisco e o club) não distava mais de trezentos metros. Tudo isto John relatava à tia Dorothy nas laboriosas cartas que lhe escrevia semanalmente. Dorothy, em resposta, revelou-lhe por que razão a obstinação quotidiana de Messr. Grieg se tornara lendária na cidade. Contou-lhe que essa linha de trezentos metros que ele todos os dias percorreu em trinta e dois anos de serviço à firma, se tornara, nos treze meses que durou o cerco, na principal linha de fogo das baterias inimigas instaladas em Villa Nova. Mas nem por isso Messr. Grieg deixou de a talhar nesse tempo. Quando já toda a gente, ingleses e nacionais, tinham abandonado a zona ribeirinha, ele persistia em fazê-lo, impassível. Foi o último a abandonar a Rua dos Ingleses. Só quando o inimigo incendiou os armazéns da casa comercial em Villa Nova, Grieg se viu incapaz de continuar com a sua rotina. Já nada restava para administrar a não ser a sua própria vida.

Catorze anos passaram-se desde então, período durante o qual Messr. Grieg recuperara as instalações de Villa Nova, o normal funcionamento do negócio e, em especial, a sua rotina. John ia com ele todas as semanas ao armazém onde o quase centenário Senhor Domingos misturava e preparava os lotes de vinho que eram depois enviados para Inglaterra. Messr. Grieg obrigava John a escutar pacientemente as lições do Senhor Domingos, na opinião do escocês o mais refinado provador de vinhos da cidade.

No dia em que se completava um ano desde a chegada de John ao Porto, Messr. Grieg anunciou ao jantar que em breve deixaria a firma. É a minha despedida, disse. Voltará à Escocia, perguntou John. Não, nunca mais lá voltei desde que tinha a tua idade e não pretendo fazê-lo agora; não irei passar os meus últimos anos enterrado na neve e dilacerado pelos ventos do Árctico. Pelo contrário, irei ter com o meu irmão Hector à ilha de Malta, onde ele assume o cargo de secretário do Governo do arquipélago. Messr. Grieg descreveu a John como aquela ilha vivia sob o sol implacável do Mediterrâneo, como eram altos os muros brilhantes, intransponíveis da capital, Valleta, nunca derrubados por qualquer armada. Contou-lhe como, ao final de cada dia, se sente uma serenidade tão plena nas ondas que acaricíam as baías da ilha que se crê que o mar as escolhe para lá passar a noite descansado… Mas antes, vou levar-te ao Douro, declarou. O livro de contas agora pertence-te. Começarás a assinar as cartas da fima. John, meu rapaz, agora estás tu ao leme. Toma-o bem, segura-o firme. Partiremos para o Douro em três dias, a tempo da feira da Régua.

Naquela manhã de Fevereiro, John escrevera à tia Dorothy especialmente ansioso. Messr. Grieg esperava-o no cais. Era a sua primeira viagem à terra do vinho; e era a sua primeira aventura como "negociante", dotado de livro e de firma própria: John Smithes, wine merchant. Naquela carta, pediu perdão à tia Dorothy pelo tempo que passaria sem lhe escrever, ocupado em longas e fascinantes viagens pelos vales do Douro. Messr. Grieg ajudou-o a entrar no barco; deixá-lo-ia em breve, pensou. O vento corria forte, as velas enfunaram-se num sopro. E John viu a cidade afastar-se, cada vez mais longe de si.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 18:51
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Sexta-feira, 14 de Novembro de 2014

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O poço (um outro)

 

Não havia entre Minho e Lima um melhor vedor do que Carolo, como então era conhecido na aldeia de N. A eficiência no seu ofício era tal que, mesmo bêbado, o que sucedia amiúde (diz-se que se meteu na bebida ainda novo, após um desgosto de amor), nunca falhou uma veia de água. Estes raros atributos, combinados com os rudimentares instrumentos que utilizava (por regra um arame dobrado em Y, ou um ramo de oliveira com o mesmo formato), conferiam-lhe, apesar da vida desgraçada, uma certa aura mística respeitada pela generalidade do povo.  

Mas foi com grande surpresa que, naquele dia, Carolo ouviu do Sr. Comendador o estranho pedido (ou melhor, a ordem) para ir à propriedade da Casa da Torre detectar água para abertura de um poço.

– Mas o Sr. Comendador não tem já um poço lá em cima? – perguntou Carolo intrigado.  ­

– Tenho Carolo, mas quero abrir outro. O que lá temos agora não tem profundidade suficiente e é já muito antigo.

O Sr. Comendador havia adquirido a propriedade e o palacete da Casa da Torre ainda nem há seis meses, após a morte da viúva Noronha de Azevedo. Os herdeiros, todos por Lisboa e Porto, depressa se desfizeram do património da família quando o Sr. Comendador lhes abanou as notas no focinho. Não se falou de outro assunto na aldeia durante semanas.

– Foi o meu falecido pai que detectou a veia para esse poço, ainda no tempo do velho Noronha de Azevedo – acrescentou Carolo. – E segundo creio nunca lhe faltou água, mesmo nos Verões mais secos.

– Pois, ó Carolo, mas eu quero abrir um novo poço, o mais profundo de toda a freguesia, e onde possa meter a minha mulher.

– A Sr.ª Dona Isabel? – perguntou gaguejando Carolo.

– Além disso, faz o que eu te digo Carolo, bem sabes como eu pago bem a quem trabalha para mim – disse já furioso o Sr. Comendador. – Ó Laurinda, quando te deve aqui o Carolo em vinho?

- O Sr. Comendador não precisa…

- Está calado Carolo – praguejou o Sr. Comendador. – Fica pago Laurinda, e serve-nos uma taça de vinho a cada um.

A sobranceria do Sr. Comendador era bem conhecida em toda a aldeia. Logo após a compra da Casa da Torre, ela própria construída sobre o morro que dominava toda a freguesia, mandou subir o telhado da torre dois metros. O Sr. Comendador não admitia viver numa casa que em altura só perdia para a igreja paroquial.  

Também conhecida era a forma bárbara com que tratava a sua mulher, a D.ª Isabel. Não eram raras as vezes que D.ª Isabel aparecia na missa com um lenço escuro sobre a cabeça, na vã tentativa de tapar as nódoas negras e os cortes no rosto. Por vezes tinha até de se abrigar em casa de vizinhos, para onde fugia dos pontapés e ameaças de morte do Sr. Comendador. Acreditava-se na aldeia que o Sr. Comendador, além dos ciúmes (apesar dos quarenta e muitos, D.ª Isabel ostentava ainda os traços da rara beleza que a distinguia quando era mais jovem), não perdoava a mulher pelo facto de nunca lhe ter dado um herdeiro.

 

Após o inusitado e ameaçador pedido do Sr. Comendador, Carolo entregou-se à bebida com mais denodo do que era habitual. Esteve uma semana sem aparecer em casa, vadiando em contínua borracheira, dormindo pelas valetas ou sumidoiros que encontrava. Isto até ao dia em que o Sr. Comendador o arrastou desde a taberna da Laurinda até à sua propriedade, curando-lhe a bebedeira a murro e pontapé.

Foi necessária toda uma manhã para Carolo, andando de trás para diante, da esquerda para a direita, segurando a vara de vedoria, encontrar um local onde pudesse ser perfurado um poço. Finda a tarefa, Carolo volveu à actividade interrompida pelo Sr. Comendador.

Porém, passados dois dias apenas, o Sr. Comendador voltou novamente à taberna da Laurinda para arrastar novamente Carolo. E desta vez deu-lhe tamanha carga de porrada que o desgraçado ficou de cama por uma semana. Sucedera que, após os primeiros metros de escavação no local indicado por Carolo, os pedreiros encontraram um bloco de granito tão duro e maciço, como nunca haviam visto em toda a província do Minho. Viram-se obrigados a abandonar a empreitada, à força das picaretas partidas e do pouco avanço na perfuração durante dois dias de trabalho contínuo.

À segunda tentativa, sob coação do Sr. Comendador (que previamente se munira com uma das suas caçadeiras), Carolo não se enganou, indicando um local passível de ser perfurado, e onde existia uma farta veia de água. O poço foi escavado em menos de uma semana, resultando num furo com a profundidade de 32 metros, uma marca sem precedente na aldeia.

O Sr. Comendador decidiu aproveitar o dia do seu aniversário, num Domingo, para celebrar, com toda a pompa e foguetório, a inauguração do novo poço da Casa da Torre. Assistiram à inauguração e bênção do poço todas as entidades civis e eclesiásticas da freguesia e arredores. O Sr. Abade, explodindo de contentamento, espumava-se só de imaginar o grande repasto que se seguiria. E, de facto, o Sr. Comendador mandara matar um porco e abrir uma pipa de vinho de propósito para o acontecimento. Foram lançados os foguetes, e a procissão seguiu para o velho palacete dos Noronhas, onde iria ser servido o almoço festivo.

Uma ausência que se notou durante a manhã, e se confirmou ao almoço, foi o de D.ª Isabel. O Sr. Comendador inquiriu os criados, mas ninguém sabia do paradeiro da senhora. Encetaram-se buscas pela casa e pela propriedade, bem como nos terrenos vizinhos, e nenhum rasto foi achado. Partiram a cavalo, pelos campos e montes da freguesia, três moços em busca da senhora. Porém, regressando ao final da tarde, não lograram descobrir quaisquer notícias de D.ª Isabel. Nesse momento alguém mencionou o poço. Foram chamados os pedreiros que o haviam perfurado uns dias antes, e, com o auxílio de cordas e iluminação, desceu-se ao poço. E lá estava D.ª Isabel, já cadáver, juntamente com o cadáver de Carolo, ambos afogados no novo poço da quinta da Casa da Torre.

 

nev

despesadiaria às 15:20
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Quinta-feira, 13 de Novembro de 2014

 

Sim, já estou melhor, obrigado. Tenho vindo a já estar melhor desde __/__/__ (ano/mês/dia). Começou logo a seguir a ter deixado de piorar, após um curtíssimo período de travessia da planície. Aliás, essa evolução foi tão amplamente publicitada que não considerei a hipótese de haver quem ainda o não soubesse. Mas, agora noto, já por vezes se anuncia aquela sensação de bolha imobiliária na cabeça que só desaparece quando a desço uma rua, o sinal de que em breve ficarei quase farto de já estar melhor. Ou de que ando a comer demasiados carboidratos. Em qualquer dos casos, talvez seja novamente chegado o momento em que o círculo evita, da maneira mais eficiente que conhece, fechar-se: armando-se em espiral sinistrógira. Ou seja, sim, ainda estou melhor, obrigado. Tenho vindo a ainda estar melhor desde que me perguntaram.



E.

despesadiaria às 16:00
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Quarta-feira, 12 de Novembro de 2014

(voltamos a apresentar)

 

Como é facil de calcular, quando Alexandre, por não usar luvas, tirou o gorro, o atirou à cara do Capitão e lhe gritou Exijo satisfação, está-me a ouvir? Um duelo, nós, já!, com Cazé, tarde demais, a puxar-lhe o braço, os três agentes de pé e mãos nos coldres, a situação estava mais uma vez, pela terceira vez, descontrolada.

Menano, ainda assim aliviado por Alexandre ter escolhido a taberna e não um beco para o confronto, fez sentar os homens. Limpou a cara com um guardanapo, procurou o seu mais conciliador sorriso, e esticou a mão com o gorro na direcção de Alexandre

- Meu rapaz, há aqui excessos imperdoáveis de parte a parte, devemos reconhecê-lo, mas está a propôr a um agente da autoridade um duelo. Está a sugerir uma ilegalidade para resolver o nosso problema, há formas

- O capitão desculpar-me-à, não pude deixar de ouvir, e o assunto interessa-me muitíssimo. Na verdade não é uma ilegalidade. Melhor, não é necessariamente uma ilegalidade.

Menano e os agentes, Alexandre e Cazé, olharam o homem que da mesa ao lado tinha decidido intervir, e que, já de pé, estendia o cartão de visita de firma de advogados continuando

- Nada impede um duelo de poesia.

Alexandre, cansado, incrédulo, revirou os olhos,

- De quê?

- Tem morrido muita gente de poesia, jovem.

Menano interrompeu

- Caro Dr...

- Antunes Pinto.

- Antunes Pinto. O doutor sabe melhor do que qualquer um de nós que o Estado tem o monopólio do uso da poesia, não me posso envolver poeticamente com um civil.

- Excepto em duelo, aliás a mais bela das excepções. Repare, quando o legislador proibiu os duelos em 1899, foi da mais desavisada especificidade, proibindo todos os confrontos com as armas que, à altura, eram utilizadas, e enumerou-as no decreto. A poesia, tendo sido criminalizada há apenas alguns anos, não foi considerada, pelo que estamos perante um dos mais magníficos vazios legais, provocados pela intersecção de duas proibições.

Menano não respondeu, consultou seus agentes por uns minutos e todos concordaram com o advogado.

- Não há necessidade de chegarmos a isto

disse ainda a Alexandre, que sem responder arrastou Cazé para junto do balcão. Cazé era o mais antigo amigo de Alexandre (e o mais robusto, o que talvez o tenha levado a ligar-lhe antes de entrar), mas mesmo este tipo de lealdades têm dificuldade em entender determinadas decisões.

- Cazé, a Raquel não pode saber disto.

- Tu nunca contaste à Raquel que andavas metido na poesia?

- Não, pá! Quando a conheci já a poesia era proibida e, de qualquer forma, eu tinha deixado uns anos antes, não sei o que fará se descobre isto

- Meu, avisei-te tanto...

- Opá, 'tá bem, já sei, o que é que queres agora? Não passa uma noite sem que me lembre de todas as pessoas que sofreram por me ter metido nisto.

- Bem, tu nunca

- Eu nunca o quê?

- Nunca escreveste. Pois não?

- Cazé, eu declamei poemas meus em público. Não sobreviveu ninguém naquela sala, ninguém.

- Foda-se, Alex...

- Ela não pode saber disto. E não é só, porra, arrisco-me a matar o velho.

- Ou morrer, man, ou morrer. Estes gajos andam na poesia todos os dias, os jornais estão cheios de histórias de putos desarmados que levaram com uma estrofe pelas costas. E estes porcos sempre a protegerem-se uns aos outros, que só mandaram versos para o ar.

- Não tenho medo nenhum deste gajo, nem dos três que estão com ele. Acredita, não sou eu quem vai sair mal disto.

Cazé não respondeu mais e regressou à mesa. Conferenciou com o outro padrinho as condições possíveis. A Menano, por ter sido desafiado, coube a escolha das armas. Alexandre estranhou a confiança com que ouviu Camões, sonetos. Invertidos. Do último para o primeiro verso, mas não podia ter ficado mais satisfeito. De resto, pouco a acrescentar, seria até ao fim, quaisquer que fossem as consequências.

Alexandre e Menano enfrentaram-se em silêncio por mais de quinze minutos. Dir-se-ia que combinaram acrescentar tensão ao drama e a julgar pelos presentes estavam a consegui-lo. Começou Alexandre, de olhos presos no Capitão. Com voz lenta e melódica arrancou:

Senão a mim, que de matar-me vivo.
Ó pastores! fugi, que a todos mata,
As setas traz nos olhos, com que tira.

Mas com as armas foge ao moço esquivo.
Para tamanha empresa, não dilata;
A Ninfa, como idóneo tempo vira

Antes que adormecesse, pendurava.
Num ramo arco e setas, que trazia
A vir passar a sesta à sombra fria,
Cupido, que ali sempre costumava

As amarelas flores apanhava.
E subida nũa árvore sombria,
Sibela, Ninfa linda, andava um dia;
Num bosque, que das Ninfas se habitava.

Que espectaculares violência e desenvoltura. Cazé e os agentes duvidaram se alguma vez tinham lido o poema de outra forma, mas a partir de agora os silêncios terminavam e o Capitão, com o queixo exageradamente levantado, de tom mecânico mas deslumbrante ritmo, respondeu de imediato,

Para tão longo amor tão curta a vida.
Dizendo: − Mais servira, senão fora
Começou a servir outros sete anos

e assim por diante, até ao fim, com segurança despreocupada. Os dois homens atiravam-se ao soneto seguinte como se não tivessem acabado de levar em cheio com catorze versos e nisto ficaram durante horas. Quando acabaram a lírica conhecida, trocaram de sonetos e declamaram o que o outro tinha escolhido, tantas vezes quanto as necessárias.

Ao fim de quase quatro horas sem interrupções, Alexandre estava no chão, de joelhos, com um corte no olho direito e arranhões por todo o corpo, as dores eram inacreditáveis, a respiração pesada era só o que ecoava pelas paredes da taberna. Os versos de Menano tinham sido de uma crueldade surpreendente, sobretudo vindos deste homem, uma interpretação sem paralelo com nada que Alexandre tivesse ouvido. Voltou o silêncio, doente de raiva e humilhação, encolheu-se ligeiramente, sentiu o chão debaixo das mãos e deixou cair uma lágrima derrotada. Levantou lentamente a cabeça para o Capitão que já olhava para os seus homens com caretas vitoriosas e não foi possível evitar mais o que se seguiu. Recuperou com tempo a respiração e, com uma espectral voz queimada, atirou sem qualquer remorso,

Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date

Não chegou a começar a segunda quadra, os agentes saltaram sobre ele, imobilizaram-no imediatamente e fecharam-lhe a boca com as mãos, com os braços, com o cassetete, Cazé agarrava-se à cabeça em desespero, o advogado chorava. Era com toda a certeza tarde demais. O Capitão, apanhado à traição por um soneto de Shakespeare pela ordem correcta, jazia no chão quase imobilizado excepto por uns aflitivos espasmos. Uma linha de sangue muito escuro escorria-lhe pelo ouvido.

Quando entraram bombeiros e restante força policial, já nada havia a fazer por nenhum dos dois.

parte I

Gouveia

despesadiaria às 16:18
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Segunda-feira, 10 de Novembro de 2014

 

Beicinho

 

A Diana está sempre a fazer beicinho. É das almofadinhas que lhe aconchegam os olhos e espremem a boca num trejeito eternamente desapontado; almofadinhas bem afofadas e mimosas, às pintinhas acastanhadas: por causa delas, a Diana parece estar sempre à espera do pacotinho de Sugus que a mãe não lhe comprou. A curva da boca em forma de coração: sempre forçada para baixo. As orbes protuberantes: sempre de um azul líquido. Quem não a conhecer, acha que os gestos lassos vêm de um estado de aborrecimento perpétuo. Mas a Diana é simpática. Descobri-o quando lhe dei um lenço de papel, num dia em que o ar condicionado do comboio estava particularmente agressivo e ela não parava de fungar. Por momentos achei que a resposta ao meu gesto seria uma língua rosada a querer apanhar ar. Mas ela sorriu, e quando o fez pareceu-me que a cara dela ia explodir como uma piñata derrotada.

Depois desse dia, passámos a sentar-nos juntas no comboio. Partilhamos meia hora de vida: o segmento diário da pequena atualidade onde a Diana é a estrela e eu apresento a meteorologia. Sim, a Diana gosta de partilhar o pacotinho de Sugus que comprou às escondidas da mãe: a primeira coisa que fez quando lhe estendi o lenço de papel foi assoar-se — ruidosamente, agradecidamente, aliviadamente; a segunda foi contar-me que trabalhava na receção de uma clínica.

— Tento sempre oferecer um sorriso às pessoas. — A Diana explica-me isto como quem anuncia ter aprendido a fazer contas de dividir com dois números. Aqui, sem referencial nenhum, vogando nas letras, esta é uma declaração simples; dentro da carruagem, no nosso pequeno segmento noticioso, sei que foi dia de consultas de psicologia na clínica. A seguir ao intervalo, não perca: histórias de quem faz terapia.

— Há esta miúda, chama-se — é inevitável, informa-me a colega, não decorar as caras e os nomes. Na maior parte dos casos, as visitas são semanais, e se não o são agora é porque já o foram antes. Os traços marcam, as pessoas são únicas e não há dois narizes que arrebitem da mesma forma; depois, alguns vazios são demasiado perturbadores para serem esquecidos: os nomes vêm classificá-los. Toda a gente traz uma etiqueta presa ao pescoço, alguns aproveitam para enforcar-se nela. A Diana conhece-as — as gastas, as carcomidas, as rasgadas — porque assim tem que ser, mas do outro lado do balcão branco, prefere mantê-las viradas para baixo, — e tem sempre um livro debaixo do braço. É a única coisa que sei que ela vai ter sempre: um livro debaixo do braço.

Um suspiro para a câmara, um encolher de ombros para mim. — Mas todas as semanas é um livro diferente.

Hoje a miúda usava um livro de mais de quinhentas páginas encostado ao peito, como um escudo. As pestanas murchavam com o peso das lágrimas. Uma moldura triste, a condizer com o quadro: escleróticas avermelhadas, linhas de água nuas e inflamadas. Nariz-torneira, corrimento mal contido por um lenço de papel encharcado. A Diana têm aquelas bochechas porque é na boca que segura a empatia, para a ter pronta a ser soprada a qualquer instante. Enquanto lhe tratava do recibo, reparou nos lábios avermelhados. O contraste entre a cor dos lábios — grossos, desenhados com precisão — e a pele branca sugeriu a interação:

— Eu disse-lhe que o batom lhe ficava muito bem. Ela olhou para mim com os olhos muito abertos. Parecia um desenho animado fanhoso. — A concavidade da curva infeliz acentua-se, entre as sobrancelhas nascem três risquinhos indignados. — Afinal não havia batom nenhum. Olha, ela nem sequer estava a chorar! Aquilo era alergia e os lábios estavam inchados do cieiro. Por causa da alergia, ela estava sempre a lambê-los. Nunca me passou pela cabeça que o cieiro ficasse bonito em alguém. Nela ficava.

Vamos seguir para intervalo. Dois minutos dedicados aos compromissos comerciais para tentar explicar à Diana que nem toda a gente gosta de Sugus: agarram-se muito aos dentes. Mas a Diana têm a infância nas faces de fora e nas faces de dentro. O mal entendido desilude quem leva a sério a tarefa de bem receber e a arte de perguntar por formas de pagamento, sistemas de saúde e tratamentos seguintes. Não teremos outro programa além do lábio bicudo montado no irmão de cima, todo empinado, orgulhoso. Regressamos com o prólogo, fatal e amuado prólogo: — Ela até se estava a rir enquanto me explicava tudo. Depois marcou a consulta para a próxima semana e saiu aos saltinhos. Estava feliz.

 

S. White

despesadiaria às 12:45
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Domingo, 9 de Novembro de 2014

 

O tempo é uno, indivisível. O tempo é sempre. Mas nós precisamos de dividir o tempo para contar e apontar o que contamos, e para isso criamos uma máquina monstruosa: o relógio. O relógio é um mecanismo criado por um génio supra humano para nos escravizar. É uma fonte inesgotável de desgraça, que espalha sem mercê desencontros por todo o mundo e ao mesmo tempo!

Mas não quero falar dos relógios em geral e sim de um especial: este relógio. Sempre ao meu lado, tic-tac-tic-tac, não pára de me chatear e de me lembrar constantemente o atraso de vida que levo desde que o comprei. Não é um relógio qualquer, tem despertador. Mas o principal é que ele é o tempo, o meu tempo. Parece uma coisa difícil de perceber, mas não desanimes. Insiste.

O atraso aparentemente já existe há muito tempo, o relógio só o tornou aparente. Por exemplo, quando me deito na cama junto dele e me embrulho no seu cheiro, ou quando mergulho no sonho da preguiça e fico lá em baixo sentada a ver passar os barcos, esqueço-me completa e desastradamente do tempo que passa com eles.

É então que o relógio se chega a mim com aquela voz maternal e ritmada e me diz: come, minha filha, come.

Um destes dias, não chega a tempo.

 

r. owtag

despesadiaria às 21:06
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Sábado, 8 de Novembro de 2014

 

A meio caminho entre o ponto para onde a sala a impelia e aquele para onde o quarto a puxava, ou seja, enfim, lá onde o senso comum a vê, a miúda acabou de entrançar um punho de linho na cintura. É agora uma abstracção recuada do espelho para avaliar o efeito. Eu - que há pouco ameaçava castigá-la em regime de pão seco - digo: quando cresceres, casarei contigo. Ela ri, e um ethos sedativo pula por cima da sua idade. Deixo-a cair no fundo dessa profecia. Ela sente no crânio o calor da minha palma. A minha beirada inteira vai bater contra suas arestas. O indefinido em carne e osso, a dizer frases inteiras sem uma única palavra, disparando cada projéctil através de uma nevoenta repugnância de pólvora salpicada de fagulhas: pescoço, peito, quadril, nessa ordem pavorosamente natural em que as coisas se ajeitam. Foi sempre assim: quem quer muito às miúdas, as quer contra os homens. A receita é simples: temos de confiar no diabo. Até porque o amor à infância, se curado, ao homem não resta nada. Ela aperta-me o abraço. Admira instintivamente. Não se incomoda de ser o meu supérfluo, uma vez que sabe que sempre me faltará o necessário. Cada afago, regressivo, escorregadio, emaranha e resvala numa rigorosa hierarquia de méritos. Depois esbate-se, liquefeito, contra o mesmo orifício de onde vinha num eco de pêlos e covinhas um gorjeio de pequenos e deploráveis espasmos. Se fecho os olhos, tudo o que vejo é uma espécie de clarão a piscar como uma cloaca (o mundo que lá ficou por pura inércia e os matizes menos intensos de que são feitos os rudimentos de uma precaução devidamente fingida). E o futuro todo enfiado em dois ou três minutos do passado, a transbordar intenções vazias, jogadas, numa estranha e pequena contracção pélvica, mais para dentro dela do que para ela: uma infância em estado natural, sem os homens, a desempenhar seu próprio papel, a esvaziar completamente o mundo como se este fora sua própria bexiga.

 

Peor

despesadiaria às 00:26
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Sexta-feira, 7 de Novembro de 2014

 

V

 

Era um bosque muito antigo, de caminhos estreitos e áridos onde já nem as ervas daninhas cresciam. Todos os dias, depois de um pequeno-almoço vigoroso de ensopado de boi, Actéon levava a sua matilha a esvaziar a raiva das entranhas. Em casa ficavam os seus açaimes, já lassos à força de tanto reterem as mandíbulas espumosas de ódio. A caça jorra vida pelo bosque, pululante e matinal, comendo para ser devorada. Enquanto um dos seus cães abocanha um veado pelo pescoço, Actéon, descontraidamente, puxa com os dedos a licra que o estava a oprimir a vazante. Ao fazer este gesto, apercebe-se de umas movimentações inabituais que vinham de uma clareira ali perto. Dirige-se até lá e vê Diana e umas amigas a chapinharem num riacho murcho, enchendo e esvaziando vasilhas, repetitivamente. Por se alegrar com aquilo que avista, aproxima-se cada vez mais, até ser descoberto por elas. Continuam no seu preceito, indiferentes ao olhar intruso. De repente, Diana parece ser surpreendida por uma memória antiga que logo se lhe enraiza no pensamento, reformulando a sua servidão à literatura. É nessa altura que cicia uma prece e Actéon se desumaniza, um quadrúpede com chifres, irmão do que tinha golfado sangue há uns instantes. No momento em que a sua consciência de homem morre, também o seu corpo cervídeo finda, dilacerado pela matilha servil que tinha trazido de casa.

 

gisandra

despesadiaria às 00:10
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Quinta-feira, 6 de Novembro de 2014

 

Nenhuma estrela

 

De onde me situo, um pouco de luz, alguma poeira, nenhuma estrela. Tenho os quarenta à porta, junto com a publicidade. Não pedi nada. Desde que desisti de limpar a casa, ficou difícil encontrar-me. Alpes de roupa por todo o lado. Há pelo menos dois anos que não consigo ver-me ao espelho na totalidade, surjo sempre entrecortado. Faz parte do plano. De vez em quando penso em sexo, mas não dessa forma. Não tenho o membro adormecido à espera do príncipe encantado. É uma questão de memória, o meu corpo ainda se lembra — e lembra-se bem. Óptimo, sou capaz de me fazer rir a mim próprio. É um princípio, e os princípios escasseiam. Neste ponto, em alto mar, olhando o horizonte, o que se grita é fim à vista. Não lamentes, é só um pouco grave. Mal ou bem, ainda tenho as mãos abertas, ainda me planto no meio do nada para me deixar inclinar pelo vento, ainda puxo de um papel para fingir que não me esqueço. Mas sei que estou quase lá, cada vez mais perto. Perto de encolher os ombros à finitude do universo.

 

Menina Limão

despesadiaria às 15:58
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Quarta-feira, 5 de Novembro de 2014

...

O padre Dionísio fechou a porta da Igreja às 14h28. Mais um domingo cumprido, sermão, comunhão, "ide na paz de Cristo" e eles foram, mas levaram a paz toda com eles porque o mar em cachão da alma de Dionísio há muito que não conhece calmaria.

O telefone toca. O ecrã do aparelho antiquado insiste-lhe pela terceira vez naquele dia que Ana F. exige explicações. E estas são devidas há quase três semanas. Dioníso não sabe se se apaixonou porque perdeu a fé ou se perdeu a fé porque se apaixonou. Há coisas que nem no pensamento se verbalizam, mas Dionísio sabia bem que o problema espiritual que o assombra é apenas um sucedâneo das vibrações da carne. 

Não resistira, era essa a verdade. Gostava de ir à cidade, de vez em quando, despir a batina e mergulhar anónimo nos bares onde fumava e bebia. Onde reparou nas pernas de Ana F., no decote de Ana F.. Onde deu por si na casa de banho a fazer....

 Paremos! há histórias que queimam só de as lembrarmos.

 E assim as viagens à cidade foram aumentando de cadência até chegar à quinzenal rotina de "olá amor" e dois dias de muita cama e pouca verdade. Ana F. toma-o por representante da indústria farmacêutica, muito viajado, coitado, sempre fora, nunca está ao fim-de-semana. Dionísio prometeu que, a partir do final de Novembro, terá nova função na empresa e até a hipótese de se estabelecer na cidade. 

Dionísio já não sabe qual a pior das mentiras nem a quem a disse. Entre fugir ficando e fugir partindo, a escolha parece-lhe inevitável. Não atende a chamada de Ana F., mas abre o menu dos contactos. D. Julião já se ilumina no ecrã antiquado - mas a bateria dá para cinco dias, não me venham com merdas de smartphones se nós aqui na serra nem sabemos que porra é essa do 3G!!!

 [o narrador pede desculpa pela linguagem, mas neste ponto já não vê o interesse em continuar a disfarçar o vernáculo que o padre Dionísio usa na intimidade]

 - Está, Vossa Excelência Reverendíssima...

- Ó Dionísio, se começas a conversa assim é porque vem aí problema

- O caso é sério senhor, posso aparecer em sua casa daqui a pouco?

 DoVale
despesadiaria às 10:28
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Terça-feira, 4 de Novembro de 2014

 

Bendicò

 

Quando Bendicò acordou a casa ainda dormia no profundo descanso da noite. No seu passo de sentinela percorreu o silêncio dos corredores, visitando as portas dos quartos, uma a uma, com circunspecção precisa e calma. No final da vigia, vendo que tudo estava imperturbável, voltou à almofada que tinha por cama e lá esperou que a alvorada chegasse; só aí saberia por cumprida a sua guarda diária do sereno sono da casa.

Mal o sol tocou nos muros brancos de Donnafugata, Bendicò sentiu a agitação no quarto de Don Fabrizio. Uns minutos apenas e o príncipe saía do seu quarto, já equipado e pronto para a jornada de caça que os esperava naquele dia. Bendicò cumprimentou-o com inesgotável afecto, como era seu costume e que sempre foi, desde o início da Criação, a dádiva dos cães para com os seus protegidos da espécie humana. Don Fabrizio afagou-lhe as orelhas. Com um estalar da língua, Bendicò soube ser altura de se fazerem ao caminho. O sol estendia-se pelo jardim de Donnafugata com preguiça de se levantar. Bendicò saltava pela erva e fazia crepitar o orvalho com o bater das patas. Passaram pelo portão e lançaram-se na direcção dos montes de giestas e carvalheiras.

Fabrizio era um jovem príncipe, soberano da sua vida como são todos os rapazes antes da idade adulta. Tinha no pulso o nervo contagiante dos heróis das histórias, e no corpo, incorruptível, a cor e o cheiro da juventude. Bendicò era a figuração do seu desbragado ânimo, na sua forma mais nobre. Corriam ágeis sob o raiar daquela manhã, lestos como o rio a seu lado, na ilusão pura e bela de serem, como ele, impassíveis ao andar do mundo. Sem descansarem um minuto, correram durante o tempo que o sol precisou para se espraiar sobre todo o vale. Então, junto de um penedo, num salto, Bendicò parou. Muito quieto, esperou que Fabrizio o alcançasse. A sua pose hirta indicava prudência, sinal que o jovem príncipe soube ler. Bendicò avançou, ligeiro, na direcção de uma moita de urzes. Fabrizio aguardava, preparado. Com o impulso das patas traseiras, Bendicò investiu entre a folhagem fazendo saltar uma lebre cinzenta que desatou numa fuga desalmada. Fabrizio apontou a espingarda e bastou um tiro certeiro para a abater. Ainda ofegante da corrida, o príncipe sentou-se no chão, encostado ao penedo. Logo surgiu Bendicò, vibrante de satisfação, depositando-lhe aos pés o troféu da caçada.

Durante a manhã repetiram várias vezes este exercício. Quando sentiram o sol do meio-dia queimar-lhes a pele, subiram ao cabeço mais alto das redondezas e sentaram-se, exaustos, sob a única sombra que lá havia. A vista alcançava todos os montes e leiras daquele verdejante vale por onde passava o rio. Ao longe, marcada por uma enorme palmeira, estava Donnafugata, a casa de campo da família Corbera, usada como parenteses dominical e refúgio da venenosa rotina de Palermo. Fabrizio tirou da mochila duas fatias de broa amarela com presunto, tomate e cebola, e um cantil com vinho tinto. Bendicò, que se lambia em antecipação, recebeu num jornal velho as miudezas cozidas guardadas para si do jantar da noite anterior. Ambos comeram sem moderação, como mandava aquela fome aguçada pelo cansaço.

Fabrizio deu o último trago de vinho que havia no cantil. Sentiu-se refeito, pleno de conforto. O calor daquele início de verão encheu-o de sonolência, suavemente acarinhada pela brisa fresca da tarde. Bendicò pousara o focinho no seu colo e já dormia profundamente, como se assim estivesse há muitas horas. O príncipe afagou-lhe as orelhas, o pescoço, o dorso. Dormia em paz, o fiel Bendicò. Fabrizio recordou-se da noite em que pela primeira vez dormira com ele a seus pés. Na altura (quantos anos tinham passado?), era tão pequeno que cabia numa caixa de costura. Agora, quando se apoiava nos membros traseiros, chegava com as patas aos seus ombros, esforçando-se sempre por lhe molhar o queixo com solícitas lambidelas. Riu-se com esta imagem. O peso do sono fê-lo fechar os olhos, mas teve ainda tempo de ver, ao longe, onde o rio desaparece entre os montes, os ameaçadores indícios de uma daquelas tempestades de verão que, fulminantes, não importa a que distância, acabam sempre por nos alcançar.

---

 

Era a última semana de Setembro. Ao regressar a casa, pousei a mochila das férias e o saco da tenda à porta, enchendo o chão de pó e folhas que trazia comigo. Disseram-me para que, mal chegasse, o fosse ver, que ele não estava bem. Que sofria muito. Quando entrei no jardim, vi Bendicò deitado no chão, inerte, à sombra de uma árvore. Tinha caído no dia anterior uma chuva leve que servira de tempero à terra seca. O cimento do chão estava ainda molhado, coberto por um manto de folhas já tingidas de amarelo. Era naquele quadro que Bendicò jazia, num gemido suplicante, quase silencioso.

Aproximei-me dele, junto ao chão e pus-lhe a mão no dorso. Ele acordou e viu-me, franziu as orelhas; foi tudo o que a força lhe permitiu. Afaguei-lhe a cabeça. Respirava a custo, cada fôlego exigia o esforço que já o abandonara. A perseverança pela vida é mais forte nos animais porque brota, intacta, do instinto natural, segundo as regras daquela antiquíssima ordem. Bendicò estava no chão, estendido e quedo, porque as suas pernas não lhe respondiam. Ao longo do último ano um tumor corroera os seus membros e deixara-o paralisado. O verão, que agora acabava, dera-lhe a convalescença dos dias quentes em que o seu corpo se foi aproximando cada vez mais do chão, até se colar a ele. Era como Bendicò estava agora, colado ao cimento molhado do chão. Morreria em breve.

Não. Falei com ele como já não falava há muitos anos. Como quando ele corria pelos montes junto ao rio, e caçava coelhos e corria atrás das galinhas e dos gatos vadios. Com cuidado, levantei-o com os braços. Senti-o contorcer-se de dores, mas Bendicò abafou qualquer gemido. Pousei-o sobre as patas, que tiritavam na arquitectura instável do seu corpo. Mas dele partiu a vontade, e avançou decidido com os membros dianteiros. Segurava-o pelo dorso. Bendicò arrastava-se no apoio dos meus braços, as unhas riscavam o cimento e os passos eram todos em falso, apontados ao chão. A determinação, no entanto, era dele. Arfava, com a língua de fora, como noutros tempos fora sinal de contentamento, e olhava para mim, de passo a passo, para se certificar de que, apesar do toque, eu o acompanhava; lembro-me agora que nesses relances estava ainda, vivo como sempre, o afecto com que ele todos os dias me recebia de manhã.

Iludido por uma esperança impossível, larguei-o. Ele parou. Não ousou avançar nem olhar para trás. Quando tentou um curto passo em frente, logo se precipitou num tropeçar de pernas que o atirou para o chão com um baque seco. A minha avó, que nos observava da escada de pedra, aproximou-se dele. Baixando-se, sacudiu-lhe com carícias suaves a sujidade do pêlo. «Pobre Bendicò», disse. «Veio para cá no mesmo ano em que o teu avô morreu. Já lá vão treze anos. Deu alegria à casa depois dessa altura. Foi uma boa companhia, este cão». Também ela estava triste. Bendicò fora para a minha avó a companhia dos primeiros anos da viuvez, os anos mais solitários. «Passaram treze anos», disse eu em voz baixa enquanto olhava o corpo moribundo de Bendicò.

 

Pensei no que significara todo esse tempo. Passara pela minha vida uma sucessão inverosímil de dias: dias de tédio em palestras inúteis, dias de ansiedade pelas paixões interrompidas, dias de entrega a empregos breves e devoradores, dias de ressaca pelos fracassos vários – palestras, paixões, empregos. Enfim, dias que nos dão, com sarcástico desfecho, a idade adulta. Em todos esses dias, Bendicò esteve lá, acompanhando-me ao longo dessa incrível sucessão em que se fizeram e desfizeram as ilusões do futuro

(e quando sobre as cinzas dessas desilusões se repetiu, vez após vez, o mesmo ciclo, num número de voltas necessariamente finito, limitado ao momento em que a força motriz se esgota pelo cansaço de suster a dádivas de esperança a construção de um altar imaginário; então a roda pára, passando a mover-se apenas com a força do vento; mas ainda conserva uma luz nossa, pequena e franca, que consegue projectar uma ou outra imagem mais querida com razoável nitidez; é isso a juventude)

Bendicò foi a minha companhia de juventude e dela a figuração na sua forma mais nobre.

 

Morreu, colado ao chão do jardim, no final daquela tarde de Setembro.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 09:51
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Segunda-feira, 3 de Novembro de 2014

...

(micções)

 

Nunca pensei que fosse tão pesada. Já tinha manejado as caçadeiras do meu avô, em criança, mas nada que se compare à sensação que se experimenta ao segurar uma Walther de nove milímetros com uma só mão. Roubei-a ao pai da minha mulher, reformado da PSP, enquanto estava ocupado a grelhar sardinhas. No último Natal chamou-me à parte e disse: «Tenho lá em cima, no escritório, a minha arma. Quero que fiques a saber onde a guardo, pois nunca se sabe». Agradeci-lhe o gesto de confiança, e afiancei-lhe que, por certo, nunca iria ser necessária. Agora que a tenho encostada à têmpora direita reconheço como estava errado. Nada mais é tão necessário. Meter um balázio na cabeça é, nas minhas circunstâncias, o único acto de dignidade que me resta.

 A coisa mais bela que vi em toda a minha vida foi um campo de urtigas, que crescia livre e exuberantemente, como um manto verde sobre o leito de um deus, no interior de uma fábrica abandonada e já sem telhado. Ia-mos para lá fumar e ver revistas pornográficas às quartas à tarde, e masturbava-mos virados para a parede, envergonhados. Foi numa dessas tardes que me apercebi daquele manto de urtigas. O meu desejo imediato foi despir-me e deitar-me sobre ele, entregar-me totalmente, sentir com todos os poros, ocupar o vazio da minha alma. Não fui capaz. Acobardei-me naquele momento. No fundo, fui honesto comigo próprio. Incapaz para a acção, a maior nulidade do nosso tempo, quem sabe o maior filho da puta vivo. É isto o que eu sou.

A dúvida que me domina, neste momento, é se serei capaz. Procuro forças em memórias antigas. Lembro-me como me era fácil disparar sobre as rolas com as caçadeiras do meu avô. Recordo-me até do dia em que matei vários galináceos da tia Etelvina à pedrada. No entanto, como me é difícil premir agora o gatilho. Sinto cada vez mais o peso da Walther a produzir o seu efeito inexorável sobre o meu braço, como se os portões do Inferno tivessem sido forjados em chumbo maciço.

Ouço gritos e os passos de alguém que se dirige para aqui. Atiro a pistola para longe. Não posso escapar ao que sou.

 

nev

despesadiaria às 14:54
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Domingo, 2 de Novembro de 2014

 

O pastor, o último pastor, chamou a ajuda, que lhe terá levantado o corpo da terra molhada onde em maio houve papoilas e prontamente levado para a unidade de referência. Depois de sujeita a estímulos de reanimação por profissionais certificados, não soube dizer porquê nem como, apenas quando, e mesmo assim.

A última recordação da noite anterior era a de uma luz que aproveitara a cortina aberta e a cegara; ou era da televisão que deixara ligada num canal de notícias.

Pessoas de escafandro observaram-na imobilizada numa marquesa de metal; ou era ela que as vira à distância, executando o ritual adequado ao vírus.

Fora sugada pelo desconhecido através da janela do quinto mas à altura de um sexto; ou descera as escadas e percorrera, com que meios e consciência, os quilómetros até ao conforto uterino do solo.

A ambulância fora filmada a partir de um helicóptero no seu percurso para o hospital das quarentenas; ou era aquela a ambulância em que ela própria havia sido transportada, vista de cima pelo seu espírito desprendido.

As cabeças inumanas trocavam entre si sons inacessíveis à sua interpretação; ou eram jornalistas sem rosto que misturavam o inglês com a traição simultânea.

Procurou com as mãos, escorrendo pela pele, as partes indispensáveis à vida; ou foram enfermeiras sem barreiras que a despiram e lavaram.

 

Veio a informação de que alguém, provavelmente de outro ramo da ajuda obrigatória, lhe investigara a casa e apagara o televisor, que nessa altura apenas transmitia estática. Não foram registados sinais de violência nem de arrombamento. A notícia era de uma paz suburbana perturbada apenas pela precariedade com que um portátil se equilibrava no abismo de uma mesa, ao lado da pasta de quem acabara de chegar de um emprego odioso.

(Fazia contas; ou dava graxa, mas em todo o caso na baixa).

Conseguia tocar na ponta do nariz com ambos os indicadores; ou o ambulatório sai mais em conta do que tê-la por cá.

O documento declara-a incapaz para pouco mais do que deitar-se e comer; ou tem apenas de tomar, ateiamente, um de manhã e outro ao jantar.

As costas estão empapadas no suor de quem não sabe por onde ir; ou permanece ainda no torpor da terra onde em maio houve papoilas.



E.

despesadiaria às 04:39
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Sábado, 1 de Novembro de 2014

 

Para determinadas pessoas, os primeiros dez minutos da manhã podem estragar um dia inteiro. Problemas com a água quente, problemas com o despertador, problemas com a torradeira, o leite que ferve para fora, um autocarro que se perde por segundos. Chamamos-lhe mau acordar. Para algumas pessoas, como Alexandre, ter de levantar-se e sair de casa estraga-lhe o dia, não são necessários pretextos acidentais. Mesmo assim, não deixou de ficar surpreendido quando, no eléctrico, perdeu a paciência e deu uma palmada na cabeça de uma senhora de alguma idade que, de costas para si, rosnava entredentes sentenças sobre a juventude por Alexandre não ter pedido desculpa quando lhe tocou na puta da malinha. Menos surpreendente foi o espectáculo que se seguiu, e uma paragem depois o guarda-freio sugeria-lhe que saísse. Com ele desceu um homem que o informou que a senhora com quem se tinha desentendido era a esposa do chefe da guarda. Alexandre suspirou fundo, amaldiçoou o seu humor matinal, a velha, a manhã, o dia, a sociedade, a vida, e tentou prever em que buraco se tinha enfiado.

Poucos dias depois, o Capitão Menano estava à porta de Alexandre para acertar contas. Durante este tempo pensou bem na forma de resolver a situação, e optou por não meter o quartel ao barulho, nem ir fardado, e muito menos armado. O Capitão Menano era um homem de evitar confrontos, como já tinha sido um jovem de evitar confrontos e uma criança de evitar confrontos, mas era suficientemente esperto para fazer crer à hierarquia que sabia resolvê-los sem recurso às últimas consequências. Pelo contrário, quase tudo no quartel ficava despachado à primeira ou segunda consequência. A verdade é que Menano era um cobardolas de primeira água, daqueles cuja função narrativa nos romances é a de sublinhar a valentia do protagonista. Mas o argumento da esposa era incontornável. Toda a gente do bairro viu ou ouviu de quem viu que um fedelho de vinte e tantos anos lhe tinha chegado a roupa ao pelo. Nós sabemos que não foi bem assim, em rigor chegou-lhe o cabelo ao couro, mas, fosse por força, fosse por liberdade de expressão, o rumor ia-se instalando com nuances diversas. Convinha que alguém agisse.

O Capitão Menano subiu as escadas do prédio ensaiando o que dizer a Alexandre a um passo que perdia velocidade a cada degrau. Pendurou o indicador no ar apontado à campaínha e respirou fundo mais do que uma vez. Quando Raquel abriu a porta, por pensar que era Alexandre que chegava, Menano ainda não tinha tocado. Raquel, namorada de Alexandre, era uma miúda por quem todo o bairro tinha justificado fraquinho, mas ninguém a tinha visto assim, com uma t-shirt branca que tapava o umbigo por uma unha negra, e umas cuecas de cintura baixa com padrão de stormtroopers. Menano supôs que as longas pernas de Raquel também ali estariam mas os seus olhos dispararam para cima o mais que pôde obrigá-los e, se já estava nervoso, a situação descontrolou-se, quis sair dali com urgência, mas quis muito menos ter de lá voltar, pelo que se resolveu pela Lei de Talião aplicada através de uma direita de punho fechado em cheio na cara de Raquel. Em cheio, enfim, em cheio planeava ele, mas depois de puxar o cotovelo atrás, e sendo Raquel muito mais alta, o impulso e inclinação desequilibraram-no e o soco apanhou ali meio lábio, meia bochecha, ainda assim o suficiente para a fazer cair para trás e lhe deixar solto um dos seus magníficos dentes brancos. E o Capitão Menano, que por pouco não caiu também, fugiu escadas abaixo.

 

(continua, em princípio)

 

Gouveia

despesadiaria às 08:15
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