Quarta-feira, 31 de Dezembro de 2014

 

As coisas mudaram muito desde a última vez, bebé. Sim, as coisas, tudo. Estiveste demasiado tempo fora. Já não são as mesmas regras, os mesmos lugares, as mesmas pessoas, especialmente quando as pessoas ainda são as mesmas. Que é o caso de quase todas, embora algumas tenham mudado de cara. Desta vez vais ter de recorrer a outros métodos, fazer o mais difícil e enganar-lhes o faro. Só há uma coisa que não mudou: as pessoas, as antigas, as novas e as novas antigas, continuam a não ser cães, a precisar deles como guias.

 

Dos cães. Era uma piada. Pensando melhor, não, não era uma piada.

 

Isso não chega, já te conhecem. Vais bater contra uma parede de betão pré-figurado.

 

Já pensaste na possibilidade de recorrer à automutilação?

 

Vamos, deixa-te de dramas, não tem de ser nada permanente, irreparável, se partirmos daquele princípio estúpido, segundo o qual todos somos obrigados a viver, de que existe reparação, regresso, essas tretas. Simplificando, estou a falar de algo na categoria III de Walsh & Rosen. Menos que isso não te leva a lado nenhum, mas não é preciso exagerar. Ou seja, pensa mais na Princesa Diana do que em Édipo Rei.

 

Esta também não era uma piada, embora seja sempre belo quando hierarquias sem relação previsível se encontram ao virar da esquina. Os gregos antes do Alex eram uns chatos, deviam ser proibidos, a quantidade de problemas que ainda causam. Depois de expurgados os seus restos da imprensa cor-de-rosa, o mundo também o seria.

 

Cor-de-rosa. Monótono, portanto. Deixa lá.

 

Isso não sei, não sou especialista, mas não terás dificuldade em descobrir. Há qualidades que não se perdem… Bom, perdem, até porque nem tudo se transforma, mas tu não as terás perdido, se de facto ainda te sobra uma vida. Sabes com quem falar, noutros lugares, com outras regras. A outras horas. O que posso dizer é aquilo que já sabes sem saber acerca da salvação com minúscula, a única de que temos alguma notícia: podem prender-te a alma, mas jamais conseguirão prender-te o corpo.



E.

despesadiaria às 10:35
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Terça-feira, 30 de Dezembro de 2014

 

Chegada a sua vez, Ricardo escreveu no papelinho que lhe foi passado pela direita as suas três carreiras de sonho, para o grupo poder discutir com ele cada uma das escolhas. O primeiro papelinho dizia vampiro, o segundo astrofísico, e o terceiro contrabandista de cerveja na eventualidade de uma proibição da cerveja. Vampiro era o que sempre todos escreviam, e percebia-se o apelo, o próprio moderador do grupo era um há já muitos anos. Mas as autorizações dependiam da densidade populacional do concelho e da caracterização das actividades económicas locais. Em Peniche era complicado. A astrofísica exigia um passado, ou pelo menos uma infância, e não era decisão que se pudesse tomar de um dia para o outro, mas os restantes ficaram animados com a ideia e debateram-lhe a viabilidade com entusiasmo. Nervoso, Ricardo foi obrigado a interrompê-los e confessar que só tinha escrito astrofísica por vergonha de deixar em branco o terceiro papelinho, optando pelo maior disparate que lhe ocorrera. Para a terceira carreira, a de contrabandista de cerveja, pediu silêncio e tentou explicar:

- Quando eu morava no Porto, havia na minha rua duas strippers que se encontram uma vez por semana num banquinho de madeira, já tarde; calculo que era quando largavam o serviço. Ficavam mesmo debaixo de um candeeiro, sob a minha janela, donde consegui um ângulo morto para poder vê-las e ouvi-las sem que dessem pela minha presença. Compravam sempre seis latas de Sagres cada uma e um maço de cigarros que dividiam. Conversavam sobre muitos assuntos, sem polemizar, sem quererem persuadir ou serem persuadidas, eram vagas e até crípticas, mas sem recorrerem a mitos ou metáforas. Eram muito interessantes e eu ouvia-as com gosto todas as noites. Nunca se embebedavam. Na última semana antes de me mudar para cá, uma delas trouxe uma garrafa de whisky novo e dois copos de plástico brancos, daqueles pequeninos de máquinas de café. Enquanto servia a amiga contou a seguinte história:

Hoje é whisky, Marina, mas eu explico. Neste dia fazia anos o meu pai, que como sabes era contrabandista em San Serife, onde conheceu a minha mãe e onde nasci. O meu pai contrabandeava tudo o que era proibido na ilha, desde cadeados a ukeleles, e nós levávamos uma vida sem dificuldades. Pensarás que num sítio como San Serife toda a gente levava uma vida sem dificuldades, mas não era bem assim. A ilha estava dividida em duas pelo paralelo 38 (sim, é engraçado, mas não, a nossa ilha era no Mediterrâneo, mesmo junto à Sicília). A Norte vivia-se do turismo e quem tivesse um emprego no sector tinha um rendimento aceitável apesar da exploração. A Sul, onde vivíamos, era tudo um bocadinho mais complicado. Só havia oliveiras, lagares, e contrabandistas. Long story short, quando o azeite foi ilegalizado o meu pai ficou muito contente e montou um negócio de turismo rural adaptando os lagares que tinham sido entretanto nacionalizados e posteriormente vendidos em hasta pública. Este negócio servia de fachada para o contrabando de azeite, mas quando, anos depois, se proibiu também a cerveja, o meu pai perdeu tudo para um contrabandista rival do norte, monopolista de lúpulo, que lhe levou o negócio e a minha mãe. Quando chegou a altura de escolher, a minha mãe, de malas feitas, disse-me «filha, tens de vir com a tua mãe», e o meu pai disse-me «filha, tens de ir com a tua mãe», portanto eu decidi ficar com o meu pai. Que no dia seguinte morreu enquanto lavava os dentes (engoliu a tampa da pasta, não sei como fez ele aquilo) e eu fui para o aeroporto decidida a apanhar o primeiro avião que saísse dali para fora. Por azar era Lisboa, ainda hesitei, mas tinha-me comprometido com o primeiro vôo e na altura pareceu-me importante. Cheguei lá sem dinheiro e com duas latas de mau azeite.

Passou e parou entretanto o camião do lixo e não consegui ouvir mais. Quando se foi finalmente embora, já falavam de escritores argentinos. Só que nesse mesmo dia, ou nessa mesma noite aliás...

 

Um alarme de telemóvel anunciou o final da sessão e todos os presentes arrastaram as cadeiras aliviados, acenderam cigarros e dirigiram-se para a Nespresso na mesa de apoio, excepto Ricardo, que ficou sentado de frase suspensa, a pensar na cerveja, em strippers e vampirismo. Uma mulher que partilhava com Ricardo ainda outro grupo de ajuda mútua, voltou com dois cafés na mão e perguntou-lhe se havia verdade na história. Ricardo passou a língua pelos seus decepcionantes caninos antes de responder.

 

Gouveia

despesadiaria às 13:47
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Segunda-feira, 29 de Dezembro de 2014

 

Keims

 

As cartas param, finalmente. Fico com quatro rainhas abertas em leque à minha frente. A vitória cheira ao pão com chouriço acabado de sair do velho forno do bar — só o cheiro, e assim se vai manter. Sobre as cartas que sobraram, inúteis, na mesa, cai a mão aberta da adversária da direita; as pálpebras da cor do champanhe mantiveram-se contraídas durante tempo suficiente para o lápis negro deixar um leve rasto de cinza no canto exterior do olho. Aí encosta-se um pontinho que vai dilatando de curiosidade. Fixa-se nas minhas cartas, como se quisesse ver através delas, e depois sobe como um irritante ponteiro laser, procurando as palavras-chave nas rugas na minha testa. Encontra apenas a dúvida e confunde-a com outra coisa; desvia-se num espasmo desiludido e vota-me à dormência pós-almoço — ou assim pensa. Há uma ténue vibração no fundo da minha garganta que é disfarçada pela gola da camisola. A reação mima o nervosismo de quem não quer perder o autocarro mesmo sabendo que não tem hora para chegar ao destino e que a carreira seguinte parte apenas dez minutos depois. Casos desses são falhanços de microscópio, mas a forma como se somam durante um destes jogos de cartas aproxima-se do intolerável. Detesto o keims; demais a mais, esqueço-me sempre do sinal. Olho para a parceira em busca de uma sugestão. A figura estica-se do outro lado da superfície de plástico amarelo como um copo de pé alto, do género usado pelas avós em dias de festa. O jeito como segura as suas cartas, unidas numa só e encostadas ao queixo, desconstrói-se numa canção de funk brasileiro; se fosse mesmo um copo, teria o desplante de exibir um guardanapo de papel no topo, e o penacho triangular murcharia com o vapor dos cozinhados. Não há nada para mim ali, além do quebranto da digestão em traços excessivamente pomposos. Ocorre-me coçar a cabeça; uns olhos ineptos examinam o gesto, e é tudo. À direita desta triste cúmplice, a quarta jogadora endireita-se na cadeira. Prepara-se para a substituição das cartas, é evidente que ainda tem pelo menos uma para a troca: a pose de mergulhadora denuncia-a. A atenção cola-se às mãos que retiram as cartas do baralho e as colocam lentamente na mesa, responsabilidade que torna à adversária da minha direita. Esta parece concentrar-se exclusivamente na tarefa, mas a franja pintada esconde a maquilhagem esborratada e a astúcia daquela rival. Enquanto coço o nariz, deixo de acreditar que o meu nervosismo é silente: só consigo ouvir o pulsar do sangue contra têmporas como se me quisesse rachar o crânio. Será que o sinal ainda importa? Pela expressão, a minha parceira delicia-se com um filme francês que suponho passar na ponta do meu nariz. Estou perdida em um, dois, três: à sua maneira, as minhas companheiras de jogo atacam a mesa. Eu mantenho-me quieta, com o esgar das quatro rainhas encostado ao peito. Numa questão de segundos, sentirão sobre elas o peso da derrota.

Credo, não posso levar as cartas tão a sério.

 

S. White

despesadiaria às 16:22
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Domingo, 28 de Dezembro de 2014

 

Pequena história de Natal (versão brasileira)

 

Stella saiu de casa apressada e atirou um beijo à avó sentada no alpendre. Com os sapatos de salto na mão esquerda e a pequena mala agarrada na mão direita, corria rua Rio Potengi abaixo como se estivesse a ser perseguida. Na verdade, quem perseguia era ela.

Quando virou à direita para a rua Dr. Mário Negócio, sorriu de alívio ao ver a paragem de autocarro cheia de gente. Se ainda não tinha passado, era possível chegar à hora marcada. Restava-lhe agora esperar que ainda fosse passar, pelo que resolveu aproveitar a pouca luz para se ir arranjando.

Alguns minutos depois, voltou a sorrir ao vislumbrar o seu reflexo na janela do autocarro. Estava perfeita, da maquilhagem ao cabelo. E as luzes dos automóveis que cruzavam a rodovia Governador Mário Covas faziam-na parecer quase uma estrela de cinema.

Saiu na paragem seguinte à do Hospital Colónia Dr. João Machado, mesmo em frente do Parque das Dunas. Era só mais uma caminhada de 30 minutos pelo meio daquele exuberante deserto urbano e pronto.

Quando reapareceu, foi mesmo em frente ao hotel, do outro lado da Via Costeira. Escondida atrás da vegetação, vestiu o sensual vestido que trazia dentro da mala, que substitui pelos calções e t-shirt, e calçou os sapatos. Tirando três mendigos, mais ninguém a viu.

Entrou no hotel, atravessou o lobby dominado pelo gigantesco candelabro modernista e dirigiu-se à recepção.

- Demorou! Pensei que você me ia deixar na mão de novo. Disse uma voz detrás do balcão.

- Me desculpa, Clayverson!  Tô aqui, não tô? Qué que cê acha?

- Tá linda!

- Onde ele tá?

- É aquele cara ali no bar, com a camisa azul.

Stella inspirou fundo, piscou o olho a Clayverson e dirigiu-se ao bar. Nem 5 minutos depois já o velhote lhe estava a pagar uma bebida.

- O meu nome é José. E o teu, minha linda?

Stella, que por aquela altura já o achava bastante burro, respondeu:

- Meu nome é Maria. Sabe, meu papai era português…

 

 

rwtg

despesadiaria às 23:48
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Sábado, 27 de Dezembro de 2014

...

Naquele momento a gente nem desconfia, não dá para saber que depois a coisa não pára mais. Ela me pegava na berguilha só para fazer alguma coisa nesse momento – uma mexidinha na berguilha dentro da média, ou talvez até um pouco abaixo dela. Quando aproveitei para lhe apalpar os ovários e o cu detrás duma cortina, tivemos apenas o tempo de nos beijar. E então ficamos abraçadinhos num temporal magnético com um monte de sensações. Ela começou a dizer, mas assim, apressada, que ainda não tinha idade. Então eu ri, bom, quer dizer, rimos, eu ali de pé com a alma dela nas mãos e os peitinhos.
Dois minutos depois, a gente viu faíscas vermelhas saltarem. Elas me saíam por todo lado, as faíscas. As faíscas dela também, indo para cima e aterrando nas minhas costas. E a gente ficava a mexer, a tentar equilibrar a cabeça em cima do pescoço.
Então, com a boca a fazer um bico dentro da sua orelha, eu disse alguma coisa. Mas acho que ela não me compreendia bem, simplesmente abria a boca na maior mancha roxa que já tive a oportunidade de ver, e toda a vantagem que assim nos oferecia criava também uns embaraços que ninguém esperava mais. O cheiro, esse idioma das mulheres, eu fiava-me um pouco nisso, para me mover e orientar.
Depois, cem pequenos ruídos de tamancos a vir e ir no chão molengo do corredor, ao mesmo tempo.
A boca funda como um desses buracos que a gente encontra num campo de golfe. E a vida que há por trás disso, e uma morte muito de acordo com o resto. Não que me sentisse embaraçado. A diferença tem a ver com o que está a passar. Mas uma coisa destas tem a ver com a fixação, é a coisa consigo mesma. Quando se está lá dentro, nunca se está acordado ou dormindo porque ela mesma nunca está acordada nem dormindo. É um terceiro estado, não um pouco de cada um, mas um outro, sem nada dos dois. Isso faz o mundo inteiro da gente desaparecer. Uma duna dessas é capaz de pôr a gente a se dar conta disso, daquilo, bolhas, galos, luxações, enigmas, fuxicos, coxas, cloacas, espumedos, tudo, tudo de novo. E essa coisa toda, só por curiosidade. E é como se tivesse sido grudada na gente na mesma hora, a confiança nos outros. Essa confiança que se põe de gatinhas e que vai ter de engolir todas as colheradas de merda que os outros conseguirem cagar numa semana. As gajas são um sítio todo em baixo d'água. E no fim estamos separados delas por todo o coito que tiveram de fazer por culpa nossa, de um modo ou de outro. Eu fiquei a socar, simplesmente, porque tinha pensado que era como deveriam acabar agora as coisas naquela noite. Toda a gente já deve também ter sido tocada pela façanha de crescer para ter a idéia de que estava crescendo. Bom, eu apresento isso hipoteticamente, não sei se é verdade. Em todo o caso, estava mesmo a pensar nisso, quando ela se inchou na barriga. As pernas se dividindo e depois reaparecendo juntas. Então eu pus os dois joelhos em cima, como se estivesse a subir na mesa ou na cadeira, ou ainda, como se estivesse a subir sobre a mesa e a cadeira ao mesmo tempo. E no instante seguinte, ela turbilhona que nem uma retrete. Fica em pé no quadril, por cima de nós dois. Balança, a bater um pouco a cabeça no meu ombro.

 

Peor

despesadiaria às 13:11
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Quinta-feira, 25 de Dezembro de 2014

 

IX

 

Uma lâmpada dependurada no tecto reverberava no alpendre como uma forca esquecida num outeiro em pousio. À sua volta, insectos multiformes esgrimavam entre si a melhor colisão com a luz, gravitavam como loucos por entre as mutilações e os suícidios produzidos pelo festim eléctrico. Uma cadeira com pernas e braços de madeira cinzelada pelo tempo decorava um dos cantos daquele espaço; o estofo tecido por uma breve lembrança do que outrora foi veludo a amaciar o firme revestimento de um esqueleto jovem. Ali esteve, tantas horas, quando a tarde começava a vespertar e o sol passava de margem em margem na transição entre estações com uma exuberância cor-de-laranja, a ferida exposta para secar melhor à luz dourada do dia a desvanecer. De dentro, o rebuliço entre gente que se conhecia há muito, a loiça tilintava, um cão ladrava ao longe alertando para o cair das sombras, ali estava, na ponte entre a marca indelével e a sua tentativa de cura, um fazer desnecessário entre a brevidade e a finitude. Agora, as ruínas compostas por uma digna persistência, atentas, e, dentro delas, objectos que ainda vivem da sua função inicial. Alguém deixara a luz acesa, iluminando memórias, alimentando os fantasmas dos intrusos.

 

gisandra

despesadiaria às 12:29
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Terça-feira, 23 de Dezembro de 2014

...

Para dizer a verdade, não lhe apetecia absolutamente nada que fosse Natal. Nada, nem um bocadinho. Enquanto passeava pela Baixa, com as musiquetas da época a picaretarizarem-lhe os tímpanos, o que lhe ocorria mesmo era um atentado. Assim daqueles bonitos, que fazem kachabum e o povo fica a falar neles dias e semanas e directos na tv e as famílias e tudo. Mas não, dizem que não dá jeito, que não é bonito, que agora está a dar um programa melhor na tv. E então lá vai comprar as prendinhas do costume, um guarda chuva, uma caixa de maçãs, duas moedas antigas, vinho do porto com a idade certa e arre gaita com tanto saco já vou ter de pagar um táxi. E é nisto que a divina providência providencia o escape perfeito. Um anjo, um anjinho, uma coisa catita com luzes e tudo a baloiçar por cima das cabeças dos transeuntes em trânsito. A coisa espatifa-se ao comprido (há quem diga que foi de lado, testemunhas oculares desenbocam sempre nestas versões contraditórias) e consegue, com jeitinho, acertar-lhe o suficiente na cornadura para provocar nada mais nada menos do que a semana de cama, sopas e nenhures que tanto desejava. Afinal o Natal pode ser uma coisa linda, às vezes quando esfrega as órbitas com afinco suficiente até lhe parece que está a ver o menino estendido nas palhas - já sem burro e vaca que o alemão agora confinado ao mosteiro não é muito dado a fábulas de estábulo…

DoVale

despesadiaria às 11:42
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Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2014

...

8h30

 

1. Gustavo deitou-se na noite de 8 de Março de 2014 às 23h50 e acordou às 8h20 do dia 9 de Março de 2006. Demorou a notar que o tempo regredira precisamente oito anos naquela noite. Só quando ouviu baterem à porta do quarto é que percebeu que algo estava errado. Era a sua mãe. Vinha chamá-lo para o pequeno-almoço. Mas isso não podia ser, Gustavo mudara-se há dois anos e morava sozinho desde então. Então reparou melhor: o seu pijama não era aquele com que se deitara, o quarto em que estava era diferente, o seu corpo parecia outro, mais delicado e ágil, mais novo. Gustavo percebeu então que estava no pijama, no quarto e no corpo dos seus dezassete anos.

Apesar do espanto, o que Gustavo mais sentia era um grande alívio: não precisava de ir trabalhar. Até perceber o que se passava, não passaria pelo menos aquele dia no escritório da empresa a corrigir orçamentos e a rever projectos. Tinha de ir para a escola, rápido!, dizia-lhe a mãe. E ele, perdendo toda a necessidade de lógica naquele estado de inverosimilhança, sentiu-se contente em conformar-se ao que a mãe lhe dizia para fazer. Tinha de ir para a escola. E assim foi. Durante quatro meses, Gustavo reviveu com desbragada alegria os seus dias de liceu. Reencontrou os seus amigos de 2014 nas salas de aula, nos campos de futebol e nos cafés. Gustavo reparou na espontaneidade daquelas amizades, no viço e na franqueza que desde então se tinham moderado até ao socialmente recomendável dos vinte e cinco anos. As tardes de conversa nos cafés eram tal e qual como a sua memória as preservara. Faziam-se e desfaziam-se planos inadiáveis como se fumavam cigarros. Alguns, poucos, cristalizavam-se no compromisso do grupo; e assim se marcavam as férias de verão, como se fez naquele ano de 2006.

Gustavo, entretanto, debatia-se com um dilema maior. Na primeira passagem pelos seus dezassete anos, renegara a todas as paixões na promessa de uma carreira estável e bem paga quando, em 2006, se inscreveu na faculdade num curso que sempre detestou. Os pais, os professores, os conhecidos, o establishment e, sobretudo e mais do que qualquer outra coisa, a razão e bom senso – os seus, claro; os seus medos – patrocinaram aquela escolha. Tiveram a sua chance, então. Desta vez, mandá-los-ia todos às urtigas. Aos vinte e cinco anos, Gustavo saltitava desiludido de estágio mal remunerado e frustrante em estágio mal remunerado e frustrante, e não alcança o vislumbre de uma janela para o futuro estável e bem pago que lhe tinham prometido. Pensou então que, para igual desfecho, mais valeria estudar algo de que gostasse realmente, ainda que lhe garantissem solenemente que o percurso seria incerto e tortuoso. Convencida a razão e o bom senso, fez então por convencer todos os outros. Seguro da sua decisão, foi mais fácil do que imaginara. Apenas o establishment se manteve intransigente. Mas, na verdade, pensou, quem se importa com ele?

Em Maio, no dia do seu aniversário, Gustavo anunciou que, ao contrário do esperado por todo, ele não seguiria Engenharia Civil em Lisboa. Decidira, isso sim, que se mudaria para Évora, onde ingressaria no curso de Estudos Urbanos. Todos esconderam o esgar de desaprovanção entre a língua a bochecha, e dificilmente acomodaram o sacudir dos ombros nos confins do esqueleto. Mas, pela primeira vez em oito anos, Gustavo sabia instintivamente que aquele era o caminho certo. Porquê? Talvez porque o instinto proceda das paixões, pensou Gustavo, enquanto recordava o processamento dos almoços sem ambição, sem sal e sem graça, dos seus vinte e cinco anos. E as paixões, como os almoços, concluiu, não se devem moderar nunca. 

 

p.a.leitão

despesadiaria às 19:31
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Domingo, 21 de Dezembro de 2014

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Três micro-contos de Natal (a partir de três tweets)

 

I

Era uma vez um menino alemão que pediu ao Pai Natal um Panzer. Queria, com ele, destruir o prédio vizinho, onde viviam judeus. Recebeu uma bomba aliada que destruiu todo o quarteirão.

 

II

Comprara o maior bacalhau de sempre, um portento de quase 1,5m de comprimento. O lombo mal cabia na panela. Na ceia de Natal morreu com uma espinha gigante atravessada.

 

III

Naquele Natal foi com o avô ao pinhal cortar um pinheirinho. No meio da casca veio uma centopeia escondida, que mordeu o Pai Natal. Nesse ano não recebeu presentes.

 

nev

despesadiaria às 12:55
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Sábado, 20 de Dezembro de 2014

 

Animação Cultural

 

Enquanto ela foi buscar gelo à cozinha, passei os olhos pelo salão. Tapetes caros, dois candeeiros japoneses, um poliedro de água suja com três malmequeres recortados, meia-lua de ferro forjado suspensa do tecto. Por cima da lareira um rosto desenhado a carvão, sem moldura. Levantei-me do sofá para o ver mais de perto: seria uma mulher já com idade avançada, de traços vagamente familiares. As sobrancelhas, o maxilar quadrado e o sorriso assimétrico sugeriam o rosto de Mariana, mas os cabelos eram mais lisos (e menos frequentes), os olhos embaciados, o pescoço, quase invisível atrás da queixada enorme, um amontoado de sulcos e trincheiras.

Mariana voltou, deixou cair os cubos de gelo dentro dos copos e veio pôr-se atrás de mim. Uma intuição: «É a tua mãe?»

«Sou eu. Ou vou ser eu, faz mais sentido dizer assim. Há uma ponte em Toledo ocupada exclusivamente por profetas desempregados. Um deles desenha a tua alma gémea, outro mostra-te como serias se fosses do sexo oposto, outro maneja malabares em chamas enquanto recita o teu testamento. Há de tudo.»

«E isto?»

«Isto é suposto ser a minha cara daqui a quarenta e seis anos.»

«Ideia gira.»

«Já me pareceu. Mas o que acontece é que cria uma auto-imagem que não nos é permitido influenciar. É como alguém a ler-nos a sina e depois passarmos o resto da vida a tomar decisões baseadas nesse prognóstico de feira. Não se passa um dia sem que me lembre deste retrato, cinco, dez, quinze vezes. Cada contratempo, cada desilusão, e interrogo-me: será esta a primeira ruga, será hoje que começo a ficar com as córneas amarelas? O espanhol apenas teve de olhar para mim dois minutos e fazer uma piada. Eu tenho de olhar para o espelho todos os dias e ver a piada cada vez mais próxima. Às vezes penso em encher a banheira de cubos de gelo, cortar os pulsos e deixar-me esvair em paz, com esta cara e neste mundo, para nunca chegar àquele, inventado por outro.»

«Credo.»

«Mas depois passa.»

 

Alice G.

 

despesadiaria às 20:15
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Sexta-feira, 19 de Dezembro de 2014

 

Cumpri o dever de nunca perder o norte nem tempo com a busca de um sentido nos objetivos que tracei. Ou que traçaram por mim, não tenho certeza, memória ou interesse em saber o que não pode ser alterado. A futurologia retrospetiva é para os sonhadores, quando dela se pretendem efeitos coletivos que se sabe serem inalcançáveis, e para os cobardes, quando se acabam os lenços de papel. Parto do princípio de que se tivessem posto portagens na autoestrada para Damasco, os factos a partir daí construídos teriam acontecido noutro ponto da rede viária. Que se não me tivessem quebrado os dedos com maldade na porta de fole do elevador, teria abandonado o piano por razões tão válidas como o eram os tendões. Os delírios acerca do percurso de cada um são apenas lenha para o azul da chama do espírito — e eu não tenho espírito, nunca precisei de espírito, tenho um guião que segui à risca e sem risco. Fugi de quem tive de fugir, deixei em branco os espaços que a ignorância permitiu, matei a fome com a carne que os grifos deixaram para trás. Mais que uma das esperanças de plástico importadas do Pacífico, tenho, enfim, o conforto virgem de poder dizer que, se não consegui falhar, foi só porque ainda não me deixaram.



E.

 

despesadiaria às 00:13
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Quinta-feira, 18 de Dezembro de 2014

 

Darya decidiu ir morar para um filme sueco ao pequeno-almoço. Espremia o sumo de uma toranja ao ritmo do moinho de café, cujo zumbido subia meio tom a intervalos regulares, como num blockbuster dos anos setenta acelerado a 78 RPM. Ainda era de noite. Parou ambas as tarefas antes de as terminar, e decidiu que a sua vida precisava de planos fixos e close-ups, precisava de relógios na parede. Fez mentalmente o enquadramento por cima do aparador vermelho onde estava um círculo mais branco do que o resto. Perpendicular ao fogão, deixou cair três fatias de bacon na frigideira de ferro fundido, e isolou o crepitar da gordura da restante banda sonora. Lutou pela supremacia deste, forçando ao silêncio o Frigorífico por breves instantes, ainda assim um feito extraordinário àquelas horas. Quando O libertou, o assobio da chaleira anunciou a fervura em simultâneo com o arranque do motor, e a gota suspensa da torneira caiu finalmente no inox. Desligou os dois bicos e olhou sobressaltada para a porta da cozinha. Christophe, de chinelos velhos de cabedal castanho quebrado por rugas e pijama azul de finas listas verticais. Christophe, com um Lucky Strike de maço mole amachucado no bolso do peito. Christophe, meio fora de plano, a tapar a cara com A Condição Humana de Malraux. Francês de merda, pensou Darya em russo.

 

Gouveia

despesadiaria às 08:43
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Quarta-feira, 17 de Dezembro de 2014

 

Um conto de Natal*

 

A campainha tocou quando faltavam dez minutos para a uma da manhã. Joana abriu os olhos, duas rolhas saltaram contra o teto produzindo dois baques secos, dois tiros. Tinha passado a última hora deitada na cama, debaixo da colcha azul e dos dois edredões; um esconderijo quente e abafado, onde se sentia uma panela de pressão envolta no próprio vapor. As mãos húmidas entrelaçavam-se sobre o umbigo nu e aderiam à pele com um revestimento de cola batom. Os batimentos cardíacos insinuavam-se através de uma artéria que tremia na perna direita; este compasso transformava o tempo numa sensação tátil e permitia-lhe saber as horas sem olhar para o relógio.

A luz do corredor entrou pelo quarto e Joana ergueu-se na cama, segurando as cobertas até às clavículas. Viu a figura da avó agarrar-se ao farto peito que lhe caía até à cintura em dois pesados sacos; uma figura amorosa, à qual a camisa de noite assentava como um largo abajur. Da ombreira da porta, olhou para a neta com temor interrogativo. Aproximou-se da entrada do quarto e estacou ao lado da cadeira onde Mimi se sentava agarrada ao joelhos ossudos, com o nariz escondido e cachos de cabelo a disparar em todas as direções. Parecia um animal selvagem. Os seus olhos rasgados cruzaram-se com os de Joana numa linha de partículas de pó; Joana percebeu tudo:

— É para mim, avó — disse, enquanto se levantava e vestia o robe riscado.

A avó chupou as bochechas para dentro e recuou de novo até ao corredor. Ficou à frente da luminária, cuja luz amarelada parecia enriçar as mechas brancas que lhe saltavam dos rolos e acentuar o ar cadavérico oferecido pela falta de dentes. Derrotada pelo tom veemente da neta, ainda se atreveu a perguntar: — A esta hora, filha?

— É para mim, avó.

Joana esperou até a avó se recolher ao quarto de onde viera para sair do seu. Ouviu Mimi saltar da cadeira e seguir atrás de si enquanto se dirigia à porta: estava trancada; um porta-chaves com uma estrela metálica pendia da fechadura. Quando Joana se preparava para rodar a chave, Mimi tocou-lhe no ombro com um dedinho magro e fê-la virar-se; estendeu o mesmo dedo na direção da sala e caminhou em direção ao braço do sofá que se disfarçava na semiobscuridade.

Na sala havia um grande aparador de madeira escura e estilo rústico. A loiça chinesa que o enfeitava tinha sido substituída há poucos dias por um presépio com chão de musgo e teto de hera. As figuras dos três reis magos perfilavam-se sobre uma linha de farinha entre a cabana iluminada por pontinhos de luz branca e uma grande pedra calcária, atrás da qual um pastor cuidava das suas três ovelhas de cerâmica. Mimi postou-se ao lado do pastor e cruzou os braços. O maxilar anguloso, o traço menos infantil que possuía, apontava ora na direção da pedra, ora na direção do caminho que Joana fez para a alcançar: o bafo imaginado das vaquinhas de brincar guiou-lhe os braços até à pedra, que agarrou e aproximou do peito. Mimi sorriu perante o querido gesto. A lua não estava cheia; o que dela passava através da janela da sala alumiava os pontos mais salientes da cara da rapariga de um modo macabro e estranhamente familiar.

A porta da rua abriu-se com um queixume grave. Uma ligeira neblina abraçava os bolbos esbranquiçados dos candeeiros de rua e os tentáculos brilhantes com que o vizinho da frente envolvera o tronco de uma velha iúca. Joana desceu as escadas e desceu a pedra: encostava-a agora ao ventre, como carga num regaço. Um ramo de rosas excecionalmente pesado. Mimi foi a primeira a alcançar o portão. Empoleirou-se no topo plano do pilar ao qual se fixavam as dobradiças ferrugentas e cobertas de minúsculas gotas de água; cruzou a perna; cruzou os braços; esperou que Joana puxasse o trinco e arrastasse as pantufas até ao vulto que a esperava, encostado a um carro preto.

— Ouve, bebé, eu precisava de esclarecer as coisas — a voz restolhava. — Levaste tudo demasiado a sério. Nós só nos estávamos a divertir.

— Não. Não foi divertido — confessou Joana à pedra.

O rapaz tentou descolar a espinha do carro. Curvou-se para a frente e usou os braços como alavanca, mas assim que se achou sem apoio, uma força invisível atirou-o de novo contra a janela do carro. O movimento arrastou consigo uma massa de ar que se misturou no halo húmido à volta de Joana. Cheirava a álcool. Mimi soltou uma gargalhada que também restolhou, como uma lebre que se escapa entre as canas.

— Não percebi nada. Aproxima-te, pá! — E estendeu um braço mole para a fita do robe de Joana; tentou puxá-la, mas a pedra estava no caminho. Um veio brilhante, como as nervuras da carne de vaca cozida, cortava a pedra ao meio. Refulgia no jeito ameaçador de uma lâmina bem amolada. — Porque é que trazes essa pedra?

Mimi saltou do pilar e colocou-se atrás de Joana, que fechou os olhos. Duas tenazes agarraram-lhe os pulsos; deixou-se conduzir através do conhecido túnel branco, ao som de mil abelhas presas num televisor. Levantou os braços, expondo o laço que lhe fechava o robe. O rapaz estendeu de novo a mão e, à terceira tentativa, consegui puxar uma das pontas. Depois, a pedra do presépio rachou-lhe a fantasia ao meio.

 

*está bem, tenho que reavaliar a minha noção de piada; ainda assim, como já não vos vejo até lá, Feliz Natal.

 

S.White

despesadiaria às 15:22
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Terça-feira, 16 de Dezembro de 2014

 

Chapéus há muitos

 

Era a sua boina favorita. Tinha-a encontrado à beira da estrada, quando ia a pé para a escola. Seu pai tinha-lha tirado com o pretexto de ser uma boina de homem, e só a devolveu no dia em que J foi para a tropa.

A partir daí, usou-a sempre que teve oportunidade, mesmo em Angola, o que fazia dele uma espécie de anedota do regimento. Mas J nunca se importou. Ninguém lhe tirava da cabeça que era uma das razões para ter saído de lá vivo.

Era a sua boina da sorte, chamava-lhe M. Ele tinha-a posta quando a conheceu, e ela não pode deixar de sorrir quando o viu. As boinas estavam já muito fora de moda, por aquela altura.

Naquela manhã, M já não estava lá para se despedir dele com palavras doces e esperança no retorno. Mas ele tinha a sua boina, e isso bastava-lhe para ter a força necessária para sair de casa e ver outra vez o mundo. Eram cada vez mais raras as oportunidades que as mazelas do corpo gasto pelo tempo lhe davam para o fazer.

Olhou-se no reflexo da montra de uma loja fechada e confirmou o ar distinto que a boina lhe conferia. Era a sua boina favorita, e quando o frenesim causado pela ambulância do INEM finalmente passou, era a única coisa que restava dele.

No passeio, junto à paragem de autocarro.    

 

 

r. o. w. tag

despesadiaria às 21:31
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Segunda-feira, 15 de Dezembro de 2014

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Guardanapo 22

 

No século XI, quando a atracção ocidental pelo patético foi vista pela última vez em terceira pessoa a deambular pelos textos canónicos do Simbolismo Atmosférico, o enxuto catálogo de exemplos que forneceu, separou um dilatável cálculo de probabilidades sem variação daquilo que a fórmula encolhida (trívio) tinha por costume degenerar em mera circunstância biográfica. Da realidade que se propunha imitar, esse origâmi fonético anteposto a futuras encarnações de versos esféricos, cónicos, cúbicos, cilíndricos ou piramidais, esvaziou a tese de que a reprodução de um simulacro por outro subdivide o ridículo em um abecedário cartilaginoso que expele do mundo a necessidade de expedições ao Pólo Norte narrativo. Ao consentir com essa perda de associações, trouxe de um modo evanescente e modesto as maquinações transversais que vinte e cinco mil versos irregulares depois, arribaram em terras portuguesas e, ao dia seguinte, foram embora num impulso semelhante a uma carga de baioneta.

 

Peor

despesadiaria às 02:55
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Domingo, 14 de Dezembro de 2014

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é pouco mais do que um fiapo de ser humano, a mulher que me toma a dianteira na corrida para a caixa registadora. vejo-a pousar o cabaz cheio e os olhos vazios nas mãos de sopeira da dona augusta, que passa os códigos de barras a velocidade de cruzeiro, ao ritmo do chilreio electrónico que o dinheiro faz quando está a entrar em caixa. uma sinfonia para os seus ouvidos.

no cesto de compras da mulher que tem a espessura de um fio de cabelo, entrevejo um saco de batatas para assar, alguns dentes de alho, uma lata de polpa de tomate, 1 kg de arroz carolino e duas maçãs starking. no fundo do cesto, espreita a cápsula de uma garrafa de logan, muito tímida, por entre os restantes víveres.

ela, como se temesse a censura, põe-se a falar da fruta. elogia com desmando as propriedades das maçãs que leva para casa, lamentando o facto de já só haver duas senão levava mais. já a cicuta parece ser preferível às tangerinas que me viu ensacar para comer mais logo, depois do jantar, avisando-me que, quando as come, passa mal a noite e a manhã é toda feita a vomitar. aliás, ainda ontem voltou a tentar comer uma tangerina. o senhor doutor diz que precisa de vitamina c e, então, levou algumas daqui da senhora augusta. o resultado foi o de sempre. nunca mais. 

ao devolver-me o troco (renitentemente, como é seu hábito), a dona augusta acha por bem informar-me que ontem não teve, em momento algum, tangerinas para vender. 

gente assim só dá mau nome à hortifruticultura.

 

- azeite

despesadiaria às 14:39
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Sábado, 13 de Dezembro de 2014

 

VIII

 

Os cumes da cidade revelavam, agora, não aquela magnitude de quem os observa de um ponto mais baixo, mas uma planície plácida de betão, com um ou outro olho de vidro a reflectir o horizonte. Uma risca rósea atravessava o céu, dissipava-se aos poucos num lento estilhaçar da horizontalidade. O isqueiro faiscava uma e outra vez, a ameaça de lume sempre a desvanecer. O cigarro pousado nos lábios ia absorvendo a neblina que começava a cair e uma nuvem de fumo aspirava à memória, a última seiva de nicotina para sossegar a chusma interior. Acima de tudo, era importante registar as mudanças atmosféricas, os sopros de ventos, a vertigem das chuvas, regular os acontecimentos externos, calendarizar ocorrências. Uma tempestade começava a formar-se; por dentro, os presságios do corpo em alerta. Tudo parecia regressar à ordem iniciática: muito ao longe, as serranias ressoavam o seu grito perpétuo, uma sombra vinha, completa, imensa, cobria-as da noite com a noite. Testemunhava e recuava, um passo atrás para interiorizar melhor os efeitos da subida, a sua presença e atenta auscultação impulsionavam a trepidação daquele mundo em ebulição. O homem-caos em partículas arremessado no ar, um torvelinho de vento a embalar a doce emancipação. Caído, um caderno com anotações, setas ascendentes, cruzes, uma nódoa de números e linhas, a lista imperceptível de eventos celestes. Quando voltou a descer, o seu lugar havia sido ocupado por uma ave tricolor, nos afazeres da manhã preparava o voo, iria trazer-lhe a refeição mais gulosa; era, agora, parte do bando.

 

gisandra

despesadiaria às 16:19
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Sexta-feira, 12 de Dezembro de 2014

 

Querida Luísa,

 

Não cheguei a dizer-te e agora já é tarde para sentires a tragédia, que foi dar em comédia graças ao tempo que passa e leva, mas no dia que sucedeu àquele em que perdi o guarda-chuva, choveu a potes, mas ao céu só lhe deu para rachar minutos depois de eu ter saído de casa, eu que inicialmente decidira ir a pé mas fora convencida pelo João a deixar-me de extravagâncias: ameaçava chover e era longe e eu sou deusa – e as deusas andam de autocarro. Condição pouco divina era aquela em que me encontrava: sem passe e sem dinheiro, prometi-lhe que iria ao multibanco carregar o maldito com os 10€ que me restavam na conta, mas enquanto já pingava sobre o meu cabelo solto, fui informada de que o carregamento mínimo era de 15€ e, então, com aquela desmoralização muito própria dos vivos, fui a pé para o trabalho, à chuva, ao frio (a falta que me fez um lenço ao pescoço) e a sentir-me a mais miserável, no meu melhor número Charlie Brown. Quando cheguei ao silêncio de nenhum olhar em volta, soltei o drama todo que acumulara pelo caminho e chorei, chorei, chorei, até ser patético o suficiente para eu parar de pactuar com a minha veia artística. E foi assim que, já muito calma, me plantei ao balcão do estabelecimento comercial de que sou funcionária para vender o dom da palavra aos vencedores desta vida. Em retrospectiva, não era nada de muito grave, mas sabes quando pequeninas derrotas se sucedem até formarem um drama? Uma coreografia tão implacável de marteladas na cabeça que foi fácil ver-me desaparecer pelo chão.

 

P.S. Eu sabia que alguém me ia levar o guarda-chuva; um guarda-chuva com gatinhos... Mas não é verdade que nesse dia eu fui triste para casa. 

P.P.S. Gosto de ti. Telefona-me.

 

Menina Limão

despesadiaria às 22:02
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Quinta-feira, 11 de Dezembro de 2014

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A pobre Charlotte já se tinha queixado. Água fria pela manhã é uma daquelas torturas hoje muito em voga, em que se acredita que o mero acto de sofrer é, em si, uma coisa boa. Mas Charlotte nunca alinhou nessas merdas. Nunca correu, nunca fez jogging, nunca fez running nem fará o que caralho chamarem a essa merda a seguir. Não se mete em iogas, dispensa o reiki, manda despachadamente para o caralhinho a primeira pessoa que lhe vier com conversetas de alinhamento dos chakras ou leitura da aura ou equilíbrio espiritual ou o quinto dos infernos que os guarde a todos.

Já lhe basta a ginástica diária que o ofício lhe impõe. Não precisava mesmo é que a puta da pensão tivesse agora uma avaria na caldeira - é o que lhe gritam do rés-do-chão. Charlotte, diga-se sem rodeios, é puta. Não foi bem um acidente, acabou por ser uma escolha. Percebeu cedo na vida que curvas rimam com notas, não se fazem muitas perguntas, tem clientela certa e bem educada, às vezes até mete viagens, gostou muito de Paris no mês passado, ora pois, quem não gostaria?

Mas, nas últimas semanas, começou a vacilar. Um novo homem, apresentado por um velho cliente. Não sabe explicar, há qualquer coisa nele de diferente. Um certo jeito de olhar, de falar, de mexer as mãos. Nem consegue perceber porque é que um homem daqueles precisa de uma mulher daquelas. Dessas. Dela. E ele fez-lhe uma proposta. Largar tudo e embarcar na segunda-feira para o Brasil.

Na verdade, não há muito - não há nada - em que pensar. Já arrumou as traquitanas, ia só tomar um duche antes de se vestir e apanhar o táxi para o aeroporto. Mas avariou a puta da caldeira e ela ficou puta da vida e, sentada na cama e embrulhada em dois lençóis de banho, deu-lhe para pensar. "Porque é que ele me pediu cinco mil euros adiantados para o bilhete e estadia, não era suposto ser ele o rico?"

DoVale

despesadiaria às 00:29
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Quarta-feira, 10 de Dezembro de 2014

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A Casa Smithes

Bristol, Outubro de 1961

 

John Henry agarrou-se firmemente aos braços da cadeira quando o avião deu início à corrida de descolagem. Nunca se habituara à ideia de voar, ele que, nas tardes de maior calor, gostava de sentir o moer da terra crua nos seus pés descalços. O soluço do avião no instante de pular da pista fê-lo suster a respiração e fechar os olhos. Pareceu lembrar-lhe a vertigem que o afrontava sempre que subia ao terraço mais alto e mais íngreme do Tua, dobrado sobre a garganta do rio. Esse fora o único voo que experimentara até à idade adulta: um planar sem amarras nem medida, tão aterrador quanto belo. Abriu os olhos. O encosto da frente estremecia com as voltas irrequietas do passageiro. John olhou para baixo. Pousado no colo estava um lápis e um caderno aberto, com páginas solenes e pesadas de tão brancas. Suspirou. Pela janela via-se a noite clara de Londres, e toda a cidade em paz. Começou por escrever

The whole structure of our firm has been indeed a family one, at all levels, especially on the Oporto side, and still is to this day. From 1848 onwards, all the partners in the firm were of the four original families. In the lodge and cooperage there are third and fourth generations on the staff. The Douro Commissary is fourth generation, and the great grandfather of one of the best foremen in the Douro was the master stonemason who worked with old John Smithes building the fortress-like walls of the firm’s quinta at Tua.

John Henry tinha 51 anos. Durante décadas, o seu pai, Archibald, encarregara-se dos trabalhos nas adegas e nos armazéns da firma e, assim, John foi crescendo imerso no vinho, nos reluzentes socalcos das quintas e na penumbra bolorenta das caves. Aprendeu a adorar a memória de um homem que ele nunca conhecera mas cujo legado venerava acima de todas as coisas. Fora o avô – John, como ele – que erguera do nada a grande casa comercial que enviava o vinho com o seu apelido estampado nas garrafas para todas as pontas do mundo. John Henry era filho legítimo desse desígnio crumprido a décadas de esforço e dedicação. Na direcção da firma em Londres estavam agora o tio Ernest e o primo Fred. O parentesco com John Henry não era de sangue, antes fruto de uma parceria comercial que se firmara há quase 150 anos. Foram os antepassados de Ernest e Fred que primeiro montaram o negócio em Edinburgo, e depois em Londres. Mas jamais a empresa teria sobrevivido e prosperado em tão longo e largo tempo se o avô John não tivesse deitado à terra do Douro as raízes da casa.

This quinta is called Tua on its gates, but on the maps is down as Quinta dos Ingleses. It was bought in the 1870s by John Smithes from the famous old lady Dona Adelaide Ferreira. Prior to this purchase he had always stayed at the Ferreira’s quintas, as the two firms did very much business together. John Smithes married in Oporto first a Miss Teage, who died within a year or so of the marriage, and some years later, a Miss Cobb. He retired to Hampshire in the year the Douro railway was finished, with his whole family, consisting of wife, six daughters, one son, a Portuguese nurse and a Galician butler. The last returned to Porto to die 39 years later in 1926.

John pousou o lápis. A hospedeira estendeu-lhe uma chávena de Earl Grey. Estavam a meio da viagem. Da janela via os candeeiros das aldeias adormecidas sucederem-se em borrões iluminados. Como se encontrara naquele ponto, pensou, algures entre Londres e Bristol a mais de 30.000 pés de altitude? Quando aterrasse… (Já não faltava muito, um par de horas). Quando aterrasse assinaria os termos definitivos do contrato e todas as suas cláusulas anexas.

Almost, not to say, all the partners, right up to the present day, seem to have made their main spare time the pleasures of the British country, like farming, gardening, shooting and fishing. Old Johnnie Teage was so keen on fishing and shooting that it is reputed he used to sleep fully clothed on a wooden table on which were drawn the record trout caught at Ancora, so as to be certain to be up at dawn the next morning. Old Cobb apparently hearing at dawn that a flight of woodcock had come in rushed out without his license and was thrown into gaol, where he spent the night. Apparently he did not mind as he had already shot twelve woodcock to his own gun!

Passaram-se cinco anos desde que o primo Fred discretamente lhe sugerira num jantar de directores a venda da firma. Propusera o negócio a uns antigos clientes da casa que logo se mostraram interessados. O primo Fred garantiu a John Henry que nada mudaria. O espírito da casa seria o mesmo de sempre, os novos donos manteriam a essência do negócio, os seus vinhos, todos os empregos em Gaia, as boas de relações com os lavradores do Douro, a casa do Tua. Lembrava-lhe Fred que o mundo mudara, que já ninguém vendia vinho como no tempo do avô Smithes. O mercado exigia organizações mais dinâmicas, mais sofisticadas, mais modernas; aquela bela relíquia de empresa familiar oitocentista não tinha lugar naquele tempo. E o investimento para uma renovação adequada da casa era de tal envergadura que nenhum dos sócios da nova geração o poderia comportar, quer pelos capitais que não possuíam, quer pelo rasgo que lhes faltava. Sim, faltava a ambição do avô Smithes, mesmo em John Henry, que sem ilusão o reconhecia.  Os prejuízos persistiam ano após anos. A necessidade dava razão ao primo Fred. E, entretanto, a venda foi-se consolidando na consciência de todos. Em 1960, passou ao papel. Os directores anuíram e John, impotente perante as evidências e perante si mesmo, fechou com a sua palavra a consumação do facto.

They all seem to have been much the same, full of life and verve – perhaps because they so much enjoyed their own wares! Uncle Willie is perhaps the best example of this, as it seems he bought ten pipes of port from the firm when he retired in 1895, but had finished it in a few years and ordered another five. But he was a very, very generous man and no doubt gave much away.

Pediram-lhe que escrevesse as suas recordações pessoais, as memórias da firma. Explicaram-lhe que seriam de particular interesse para as actividades promocionais, por mascarar a operação de engenharia empresarial, contrária à antiga tradição do sector. Na verdade, disseram-lhe, toda a gente gosta de uma boa história, uma anedota, de preferência contada na primeira pessoa – ainda para mais por um autêntico Smithes! Os nossos clientes não precisam de ler relatórios enfadonhos, rematavam, e John Henry fingia compreender. O que mais lhe custava era isto, verter as suas queridas lembranças para instrumento e deleite da nova administração. Fariam aquelas histórias parte da transacção? Talvez lhe tivesse escapado por entre os anexos do contrato. Por quanto venderiam na praça o avô Smithes, a tia Marion, o relato heróico da tia Dorothy, as chalaças tio Willie, do avô Teage, a infância com os primos de Londres, os verões em família na casa do Tua, a memória do seu próprio pai? John sentiu todo o desconsolo assomar-lhe à boca.

The firm has always shown great independence and a lack of fear in going its own way. It has always bought and made its wines at the vintage and all over the Douro district, from Rede, below Régua, to Batoca and Freixo Espada à Cinta, right on the Spanish frontier. Before the railway, all work was done by boat and of course in horse-back. The journey from Porto to Regua took about four days. When the partners began to travel by train apparently at almost every station one or more farmer friends brought them large hampers of cooked foods and wines, complete with cutlery, plates and glasses. And the scene was repeated over and again until they reached their final destination.

Iniciaram a descida de aterragem. Os advogados estariam à sua espera no aeroporto. Asseguraram-lhe desde o inicio que manteria as suas funções no escritório de Gaia. Trataria dos assuntos do vinho como sempre fizera, sujeito apenas às gerais e vaguíssimas directivas de Bristol. Se quisesse, poderia mesmo optar por se dedicar à promoção da boa imagem e relações públicas da empresa. Seria um respeitável senador do vinho do Porto, uma autoridade no sector. Nada que lhe causasse maior repugnância. John olhou novamente pela janela e pensou que àquela hora os lagares do Tua estariam transbordantes de música e alegria, no início de mais uma longa noite de cantigas para acompanhar a pisa. Era a primeira vez em toda a sua vida que faltava ao precioso ritual que celebrava o fechar do ciclo de um ano inteiro de trabalho na vinha. Chamaram-no à pressa do Douro em plena temporada de vindimas. Era impensável tal coisa, imperdoável o mero pedido. Por isso nunca se perdoaria por ter embarcado naquele avião em Londres. Aterraram suavemente em Bristol às 7h20 da tarde. John, que permanecera vários minutos de olhos cerrados, espreitou pela janela para o escuro. Veria acenderem-se os lumes das aldeias do Tua e as lanternas dos arrais nos barcos parados junto à margem, aguardando novas ordens. Mas não escreveu mais nada. Guardou caderno e lápis e dirigiu-se para o aeroporto.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 20:43
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Terça-feira, 9 de Dezembro de 2014

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(micções)

 

Naquela fria manhã de Dezembro ninguém deixou de reparar na alegria mal disfarçada de Ermelindo, quando este, pontualmente (como era seu apanágio), entrou ao serviço.

Ermelindo era, há mais de vinte anos, funcionário da 2.ª repartição de Finanças da cidade de N. E desde que fora atropelado por uma carroça de ciganos, conquistara o dom da profecia. Indivíduo recatado, fazia por guardar os seus vaticínios para si próprio. Sempre soube, além disso, não misturar os deveres laborais com as suas predições, nunca lhe tendo passado pela cabeça beneficiar-se, ou beneficiar terceiros, à conta dos seus poderes. Em abono da verdade, também nunca prejudicou ninguém. Uma criatura simples e exemplar, em todos os sentidos do termo. No serviço era conhecido sobretudo pela extrema timidez e reserva, que contrastavam com a sua competência e afinco no labor. Todos os dias da semana, pelas doze e trinta, saía sozinho para almoço, o que fazia também de forma pontual. A escolha recaía, invariavelmente e há mais de vinte anos, no mesmo restaurante: Casa de Pasto Manuel Brás – Cozinha Tradicional. Não existia outro período do dia tão feliz para Ermelindo como a hora de almoço.

Mas o motivo para a invulgar satisfação naquela manhã prendeu-se com a profecia que Ermelindo fizera na noite anterior. E neste particular diga-se que as predições de Ermelindo raramente falhavam. Conseguiu prever a queda do meteorito de Sanfis com vários dias de antecedência; profetizou a queda do Governo do partido PLC, que se verificaria um mês depois; adivinhou o vencedor do pentatlo moderno nos Jogos Olímpicos de X. Contudo, a natureza da profecia daquele dia era diferente: Ermelindo predisse um cozido à portuguesa como prato do dia no restaurante Casa de Pasto Manuel Brás.

 

nev

despesadiaria às 13:39
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Segunda-feira, 8 de Dezembro de 2014

 

Levantamento de Informação Geográfica de Suporte ao Ordenamento de bruno

 

Será útil reflectir sobre bruno não como área urbanizada, mas como um espaço de complementaridades resultantes da diversificação de condições naturais no território.

O maciço central de bruno foi erguido (na década culturalmente incorrecta) pela ascensão tectónica contínua de uma coluna magmática, o cone vulcânico perfurando a rugosidade arrepiada da superfície topográfica - a camada de recordações sedimentares constituída por escoadas basálticas, margas, vanessas, cristinas.

Essa cobertura sedimentar foi sendo progressivamente desmantelada por agentes geomorfológicos erosivos. Fluidos de escorrência escavaram a rocha mais branda, ajudando à decomposição de aspectos consensuais, depositando aluviões e permitindo a formação de áreas deprimidas, independentes, construindo uma Península (alice).

bruno permaneceu ladeado por plataformas diletantes. Alguns desses micro-relevos acidentais eram compostos por materiais carsificados, cavidades de moral e humidade variada, possibilitando a dissolução do calcário por novos, insuspeitos afluentes. A idade das areias pode ser determinada medindo os sinais de Outono na Península.

O paleossolo testemunha o escoamento, a dimensão do que se ganhou, do que se perdeu. A área emersa foi atingida por colisões eólicas, colonizada por novas vegetações, cujo florescimento permitiu que regimes de erosão ocorressem em segredo. Faunas adquiriram vocabulários próprios. As vertentes declivosas de bruno, com alto teor de argila e esquecimento, tornaram-se propensas a perder a coerência morfológica na presença de fluidos terceiros. A Península derivou.

A fauna ganhou extravagância e, protegida por copas frondosas, afirmou nos seus alfabetos privados que odeia o Outono. Nas enseadas gémeas de bruno, suportadas por cartilagens amnésicas, águas salobras sepultam redomas de sal e relevos submersos.

Será útil reflectir sobre bruno não como um espaço de complementaridades passível de ordenamento, mas como uma grelha em que cada quadrícula é um olho, a piscar na direcção Poente, para longe do que é agora um arquipélago.

 

Alice G.

 

despesadiaria às 19:47
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Domingo, 7 de Dezembro de 2014

 

Um partiu para escrever a nova história da sua vida. O percurso e a escrita confundiam-se, o movimento das pernas virava o da caneta, redigindo um presente que se relacionava com o pretérito como dois ossos de um cadáver esquisito. Uma boleia para longe fazia as vezes de páginas corridas, uma braçada através do rio cosia os restos de um capítulo que cicatrizava. E depois da cordilheira esquemática, superada às custas das articulações, preposições e caligrafia, o oceano da obra inacabada: nem um índice ligava aquela inexistência ao frontispício donde trouxera a matéria.

 

Dois ficou parado no espaço para não se ver no espelho das épocas. Enredado no micélio que escrevia a história dele sobre si mesma, até a página única mais não dizer que um borrão negro, absteve-se de sujar os dedos na tinta do porvir. Incunábulo invisível, insensível, intransmissível, a morte fingida antes da vida como forma de vida depois da morte. Tivesse Dois acontecido algures na viagem de Um e talvez ambos estivessem ainda entre nós, no sentido próprio da pessoa. Tivesse Um lido o abismado epílogo de Dois e talvez tivessem trocado de lugar no tempo, no sentido próprio da física.



E.

despesadiaria às 12:35
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Sábado, 6 de Dezembro de 2014

 

Dizia assim um bordado emoldurado na parede:

 

UMA CASA SEM LIVROS É COMO UM CORPO SEM ALMA
Cícero

 

Quem se deparasse com este pequeno mau gosto não demoraria a perceber que não havia um único livro nesta casa, uma ironiazinha reconfortante. É provável que também notasse, embora mais tarde, que a alma de Jaime lhe era realmente externa. Nas estantes, apenas pastas de arquivo, centenas de dossiers pretos iguais, com o registo total das ocorrências documentais da sua existência. Se um momento gerou um papel, Jaime catalogou-o e arquivou-o, um processo que começou ainda não tinha doze anos. Talões de restaurante, enunciados de exames, catálogos, correio recebido e enviado, flyers e publicidade, contratos selados, recibos de vencimento, ou umas palavras cruzadas, que podiam ou não estar terminadas.

Surgirá naturalmente a tentação de partir desta informação e inferir algumas outras que parecerão fáceis de adivinhar, e que provavelmente não estarão erradas, desde que uma delas não seja a presença de uma patologia no comportamento de Jaime. Aliás, quase se poderia dizer "muito pelo contrário".

O que se passa com Jaime, a sua tragédia, é que todos os seus fantasmas se materializam. São abundantes, como os nossos (como os de alguns de nós, pelo menos), mas manifestam-se de forma mais literal. Vêem-se. A maior parte deles fala, alguns com sentido, outros sem, uns observam apenas, outros ladram ou produzem ruídos metálicos, sons industriais como máquinas a vapor. Que factos originam estes fantasmas? Todos, do mais irrelevante ao mais traumático. Uma conta da luz por pagar, fantasma. Uma aula a que faltou no décimo ano, fantasma. Um amigo conta-lhe que engana a mulher, fantasma. Garrafas de vidro junto com o lixo orgânico, fantasma. E naturalmente tem ainda os seus fantasmas mortais, os que derivam de escolhas de vida erradas, de oportunidades perdidas, de fraquezas maiores, ou das consequências do amor.

Materializam-se de formas diversas. Alguns são espectrais, de aparência demoníaca, esqueletos em mantos como a Morte, homens que carregam as entranhas nos braços, e até o clássico lençol branco com buracos para os olhos, mas há muitos outros. Por exemplo, há um que assume a forma da Mila Kunis nua. Aparece quando Jaime está na cama com alguém e fica a olhar divertido sentado numa cadeira de verga, também ela uma cadeira fantasma (felizmente apenas um outro aparece nu, mas desgraçadamente na forma do Kissinger). Uma mão cheia deles são pessoas reconhecíveis, figuras públicas ou personagens de ficção, mas a maior parte são-lhe desconhecidos, humanóides, e vestidos de forma normal.

Não há uma omnipresença, ou, dito de outro modo, os fantasmas não estão sempre lá em simultâneo. Os que aparecem ao domingo de manhã são diferentes dos de domingo à noite, o que nunca houve foi um momento sem fantasmas até onde vai a memória de Jaime. Também não são todos desagradáveis. Com alguns até se consegue conversar, são sensíveis e inteligentes e Jaime recebe-os com agrado. A questão desesperante é que cada incidência tem potencial para criar fantasmas, donde a extrema organização documental. Só que inevitavelmente, e mesmo estando tudo muito melhor agora, há fantasmas que não consegue prever. Chegou a criar o fantasma de um fantasma, no dia em que, após ter combinado um cafezinho na baixa com um dos simpáticos, o deixou pendurado uma tarde inteira.

É nas decisões cruciais, naquelas de carácter especial ou aparentemente irreversível, que vive o grande terror de Jaime. Quando chegou à idade de escolher uma profissão tirou um ano sabático, e logo veio o fatídico fantasma da indecisão, um gordo careca, de rabo de cavalo, que hoje aparece muito menos mas que ainda vai e vem. É certo que para evitar novas assombrações foi sempre um aluno de excelência, estando portanto à vontade para escolher o curso que entendesse, mas cedo conluiu que não havia saídas seguras. A mãe sonhava-o em medicina, o que seria como abrir as portas do inferno em par, o pai sugeriu-lhe história da arte, mas bastou a Jaime considerar este futuro para levar com os fantasmas da fome e da miséria. Decidiu não ir para a faculdade, estudou em casa o que havia a saber sobre gastronomia e conseguiu emprego num restaurante vegetariano (a imagem de exércitos de fantasmas de novilhos e leitões ocorreu-lhe em cima da hora, já com alguns currículos enviados). Tirando um ou outro fantasma de gastroenterites, que nem tem a certeza de lhe pertencerem, tem uma vida profissional sem sobressaltos.

 

Gouveia

 

despesadiaria às 09:00
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Sexta-feira, 5 de Dezembro de 2014

 

Tabelas

 

Na cozinha, o fervedor gorgolejava entre o vapor escaldante. Já quase não havia água lá dentro: tinha passado a nuvem, e daí multiplicara-se em gotinhas cansadas deslizando pelos azulejos. A luz vermelha na base do pequeno eletrodoméstico desistira de piscar, a cor tornara-se permanente, aflita. Tropecei uma caixa de cartão para chegar à bancada da cozinha. A última bolha empolada estalou um agradecimento quando desliguei o aparelho. Do vulto sentado à mesa ouvi outro agradecimento, saído de uma gruta formada pelo corpo debruçado.

— Ias fazer chá?

A cabeça da Madalena não se levantou.

— Cafééé — respondeu o pompom do gorro que usava em casa, um gorro vermelho, feito com lã grossa. Inclinei-me ligeiramente para trás, tentando ver de onde vinha a sílaba arrastada, mas as orelhas do gorro tapavam-lhe a cara; as pregas de malha quase roçavam na madeira e terminavam em duas tranças de linha que se enrolavam ao lado de uma folha como duas cobras reguilas.

— Estás de ressaca? — perguntei, enquanto tirava do armário duas canecas e distribuía entre elas a pouca água que não fugira do fervedor.

— Ooooooh, nããão!

Mergulhei um saquinho de chá verde na minha caneca e despejei uma colher de café instantâneo na que pousei junto ao intenso labor da minha companheira de casa. O baque da loiça sobre a mesa fê-la endireitar-se na cadeira. Agarrou a caneca com as duas mãos:

— Está friiiiiio! — disse, a vogal tão aguda que a imaginei capaz de rachar icebergues. Olhou desiludida para a caneca meio vazia e depois para mim, que procurava encontrar espaço para apoiar os meus cotovelos na mesa cheia de lápis de cor e marcadores, — ontem tive um blind date — disse, e juntou os lábios para sorver sonora e cuidadosamente o café.

— Um blind date?

— Um blind date — repetiu. Estendeu-me a folha na qual estava a trabalhar.

Eu não sabia o que é que a Madalena fazia quando estava fechada no quarto a ouvir as suas gajas modernas chorando de amor. Interessava-me que pagasse a renda, coisa que oito horas diárias a digitar números lhe permitiam fazer com louvável escrúpulo e pontualidade. Também me interessava que ajudasse na manutenção da casa. Por sua sugestão, uma tabela de duas colunas e muitas linhas enfeitava parte do quadro de cortiça junto ao frigorífico; nela estavam discriminadas as tarefas domésticas e, no final de cada semana, as duas colunas colecionavam aproximadamente o mesmo número de pinos coloridos, colocados em função do que cada uma tinha feito. A princípio, pensei que fosse uma questão de justiça doméstica. Sentia-me ridícula em cada viagem que fazia até ao quadro; se trocássemos os pinos por estrelinhas, tornar-nos-íamos volúveis no tempo como Billy Pilgrim, saltitando entre aquele Outono da nossa juventude e a escola primária da nossa infância. Quando, ao fim de algumas semanas, reparei que as tarefas se dividiam sempre da mesma forma, questionei a utilidade da tabela. As tranças do gorro deitaram as suas línguas de fora (tsssssss): — Eu confio na tabela.

No sítio de sempre, a tabela das tarefas domésticas olhava para as duas pessoas sentadas à mesa. Ria-se da que se engasgava com o chá — gostava tanto de mim como eu dela.

O que eu tinha à frente também era uma tabela, construída com régua e esquadro.

— O que é isto?

— O meu date! — Os lábios desapareceram quando esticou a cara num sorriso estúpido. — Eu seeeeeeeei — virou os olhos para o teto —, ainda há campos por preencher.

A Madalena levantou-se. Entre as ancas e os joelhos, unidos num jeito puro e despropositado, o seu corpo desenhava um coração fendido. Procurei o vidro do fogão através da racha daquele coração. Só consegui ver o reflexo do meu nariz: estava franzido, como o de um porquinho.

— Vou mostrar-te uma coisa —, disse; levantei os olhos e juntei-os aos dela, que pareciam meias luas. O gesto era uma interrogação, um pedido, uma autorização.

O coração desfez-se em duas pernas finas, mas fortes. Mesmo descalça, os passos da Madalena soavam como os de um bailarino de flamenco. Ergui a minha caneca para acabar com o chá. O meu focinho rosado mergulhou na escuridão da caneca; reapareceu em dois goles, frente à pasta de arquivo que a Madalena atirava para cima da mesa. Virei-a para ficar com a lombada à minha esquerda. Muitos dos lápis e marcadores ali espalhados rolaram e atiraram-se para o chão em protesto. Abri a pasta e soltei as dezenas de homens no vapor que enchia a cozinha.

A Madalena voltou a sentar-se à minha frente. Cravou os cotovelos na madeira e apoiou o queixo fino nas mãos.

— Eu confio na tabela.

 

S. White

despesadiaria às 11:54
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Quinta-feira, 4 de Dezembro de 2014

 

Natureza morta

 

O homem assobia rua acima com uma passada descontraída e bem-disposta.

A cada reentrância na magnífica e viçosa sebe que o acompanha desde o início da rua, baixa-se e estende a mão. O gesto é feito com tanta dignidade e cerimónia que quem o observasse poderia pensar que cumprimentava, com uma quase vénia seguida de aperto de mão, um velho e admirado conhecido.

O homem abre a cancela e entra.

“Correio!”, ouve-se então por entre a cacofonia dos pássaros.

Está uma manhã límpida, com uma luminosidade franca e directa.

A rua é muito bonita, todo o bairro é, aliás. Atingiu aquele ponto em que já não é fácil distinguir o que tem interferência humana do que é natural e nativo. As casa parecem estar ali há pelo menos tanto tempo quanto as grandes árvores que ornamentam a rua e os jardins das habitações. A fronteira entre estes e a rua é cada vez mais ténue.

Do lado de dentro dos pequenos jardins, flores coloridas insinuam-se por todo o lado, lançando-se com o seu o perfume por cima dos muros. E nesta altura do ano, o jacarandá florido do Sr. H. dá uma pincelada exuberante de cor na linha de árvores que marca o horizonte.

 É um quadro idílico, e quando nos encontramos diante dele torna-se difícil pensar em tudo o que há de errado com o resto do mundo. É mais fácil imaginar que estamos no meio de uma floresta mágica habitada por pequenos gnomos que vivem em completa paz e harmonia.

“Correio! Sra. H?! Tenho uma encomenda para si!”, ouve-se, enquanto o homem se encaminha para as traseiras da casa.

O curto caminho de saibro rasga um relvado quase perfeito, pontuado por pequenos ajuntamentos de margaridas. Junto à entrada da cozinha, canteiros transbordantes de crisântemos, gladíolos e tulipas ladeiam o alpendre.  

“Sr. H?! Sra. H!? Está alguém em casa?”. O homem sobe ao alpendre e espreita pela pequena janela da porta da cozinha.

Lá dentro, a mesa está posta e guarnecida para um pequeno-almoço abundante. Há ovos mexidos, salsichas, fiambre, pão - torrado e simples, croissants, uma variedade de doces e compotas, manteiga, leite e sumo de laranja. No rádio, ouve-se a previsão do tempo, seguida de música. Um tão belo como redundante vaso de flores no centro da mesa compõe finalmente a cena.

De repente, o silvo de um fervedor ao lume. O homem repete o chamado pela ultima vez, num tom mais tranquilo, mas também mais desanimado: “Bom dia! Está alguém em casa?”.

O homem retira o telemóvel do bolso e liga para a polícia, cujo número já estava memorizado.

“Estou sim? Podia passar-me ao Inspector P? Eu espero. Bom dia, inspector. Tenho más notícias. Aconteceu outra vez. Sim. Igualzinho. A família H. Sim. Sim. Ninguém, como de costume. Não. Ninguém. Não sei, diga-me o senhor. Esta semana já é a terceira vez.”

 

rwtg

despesadiaria às 23:24
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Quarta-feira, 3 de Dezembro de 2014

...

O ritmo, reduzido a uma simples carícia à casca d'água, expõe dos remos alternadamente o lado emborrachado e a banda amadeirada de sua palheta. De tempos em tempos dois rolos espessos de nuvens se abrem; entre eles, através de uma velutina morna e esticada, as aves, num frenesi nutricional, coalham o rio em cima de uma manta de carne azulada da qual se alimentam. As asas, dobradas para o mesmo lado, cobrem à maneira de telhas o corpo escavado onde a pele estendida e o esforço daquele que a puxa criam uma trepidação que garante, ou melhor, esgota o valor dessa mesma trepidação. São as mesmas aves que estão a revirar nas ourelas, parecem frutas vivas a balançar os galhos. A partir delas, as dimensões não são meios de situar os objectos mas ao contrário os objectos que estão ali para situar as dimensões, para fazê-las saltar como uma contrarevelação onde a correnteza, desafogada e rápida, é varada por lajedos verticais. Escavadas num tronco de árvore ou feitas de tábuas costuradas à gavinha, as nossas montarias fazem água de todos os lados e acabarão por afundar. Continuamente esvaziamos o fundo com a cabaça, enquanto, ao longe, insinua-se a curva gradual de um abismo abaulado, um madrigal flutuante de arbustos, rígidos e salientes, que quase não estão pegados ao chão. Depois de rompermos um mofo grosso de folhas onde as cores haviam-se congestionado (o lilás tornara-se arroxeado, o pulso inchava-se, do rosa ao vermelho, e de um amarelo a puxar para o alaranjado), aos poucos, a vegetação dá passagem ao rio, coando-o, entre duas faixas de argila planas e esponjosas. Na margem, perto do pontão, uma estaca sai da água e o chão cresce directo da propulsão achocolatada da espuma. A terra e o rio foram içados, meio de barriga, meio de lado, por mil ventosas superaquecidas, e estão agora obrigados a abolir as distinções habituais entre si. Embriões de faúlhas articulam-se sobre losangos folhudos e placas de dentes silhares encravados até meio da parede, extraídas, não se sabe de onde, numa espécie de fosforescência mal distribuída. Enxurros de encarnações passadas. Aqueles alagados de vinte séculos de vício. Espécie de simum submetido a uma rede interna de entulhos e sangradoiros que há pouco lombrigava, a romper torcicolos de rios, e que agora é um naco de céu que cai e vem atingir o espelho d'água de que é prisioneiro. À frente, parte de um arco-íris o atravessava, dobrado, chapinhando pelos campos de ananás. Rente às tábuas, espiada através de breves parênteses abertos nas juntas vacilantes da canoa, a vida é menos do que uma tênue ondulação no rio, sobe num halo moribundo de plumas e escamas, circuitando-nos os flancos no meio dos quais evoluem insectos que quando se elevam é toda a piroga que parece se elevar acima da água.

 

Peor

despesadiaria às 02:41
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Terça-feira, 2 de Dezembro de 2014

...

é então que o choro é o teu último refúgio

que o torpor te abocanha as entranhas

como se a carne crepitasse por entre as castanhas

 

é então que te sentas na mesa do fundo

para que não te vejam gastar um euro que seja

em copos de vinho e rodadas de cerveja

 

é então que é outono

que fumas o teu cigarro como se não inventasses as luas

nem te confortasse o desespero a que em silêncio te habituas

 

- azeite

despesadiaria às 13:17
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Segunda-feira, 1 de Dezembro de 2014

 

VII

 

No meio do caminho da vida, contornou o passeio e entrou dentro de uma loja. Comprou vários tipos de material: gesso, pincéis, tintas, telas. Ia experimentando diferentes técnicas, maneiras de fazer emergir a torrente que o ameaçava engolir. Pegou num pedaço de gesso que estava junto a si. Sentiu-lhe a textura, tatuou-lhe presságios, uma ideia figurava a matéria. Com as mãos a articularem uma massagem infinita, os veios iam-lhe inflamando vida, esculpiam por dentro o que ia tomando forma por fora; a consciência a brotar de um amasso mais impetuoso. Quando terminou, ao fim de longas horas, viu que tinha erguido uma figura humana semelhante a uma mulher. Vénus desabrochou do doce leito quando a escultura já esperneava. Aprontou-se logo a assinar o despacho a autorizá-lo a desposar o que dele emanou. Por ser um processo demiúrgico em círculo, a matéria tinha ficado contaminada, a mácula estava ostentada no olho direito, o defeito estava simultaneamente na origem e no fim, precisava de ser destruída, recolher ao sentido inicial, uma amálgama disforme: um artista acidental projectara a ilusão mais perfeita, moldou-a, tomou-a para si, mas a realidade não podia coincidir com a criação.

 

gisandra

despesadiaria às 15:15
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