Sexta-feira, 30 de Janeiro de 2015

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Sabia que o momento haveria de chegar, ou melhor, sabia que a sua crónica falta de sorte só o poderia fazer esperar que esse momento chegasse. Mas, ainda assim, não estava preparado. Não tinha qualquer plano engendrado para uma narrativa convincente. Raio do puto, aos 17 anos não é suposto andar a vasculhar o armário dos pais (ou é?). A caixa de charutos escancarada, as fotografias de Moçambique e o pior é o que elas contam, apesar de já nem ele saber bem o que elas contam. Sabe apenas que não lhe apetece falar nisso há mais de quarenta anos. Promete ao filho que amanhã lhe conta tudo, agora tem de sair - e sai mesmo porta fora, apesar de o telejornal dizer que são horas de jantar.

Vai avançando pelo bairro, caixa de madeira nas mãos, indiferente à chuva que manda todos recolher a casa, à tasca, ao salão de jogos, às ruínas do velho cinema. Pára debixo do que resta do grande que outrora abrigava quem partia na carreira para a cidade. Pousa a caixa no murete de betão fora de prazo, abre-a, encontra o velho papel amarelecido mas ainda impecavelmente dobrado em quatro. Tira o telemóvel do bolso, marca o número.

- Sou eu. O meu filho descobriu a caixa, vou ter de lhe contar tudo.

Ouve um suspiro, um longo suspiro, um clique, depois o chilreio electrónico que estas máquinas sempre fazem quando querem sublinhar que o outro deixou de querer ouvir o que se tem para dizer. Regressa.

É tarde, mas ainda há luz na cozinha.

O puto está sentado à mesa, com os olhos fixos na porta que dá para o quintal, adivinhando que o pai vai entrar a qualquer momento.

Não há como dizê-lo de outra maneira, pensa, por isso o melhor é ir direito ao assunto.

- Tens duas meias-irmãs que nasceram em África. Moram ali para os lados da estrada do monte. Queres conhecê-las?

DoVale

despesadiaria às 23:38
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Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2015

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Salamanca

 

Nesse ano não se falou noutra coisa. Nos clubes, nos jornais e nos cafés da cidade, as conversas inflamavam-se num furor instantâneo. Desmedia-se a realidade, a razão e os cálculos, exaltava-se a glória e o sucesso do Homem quando alguém abordava o assunto. “Será a obra do século!”, diziam os promotores e as dezenas de apaniguados que proclamavam as maravilhas de todo o plano. O futuro traçar-se-ia sobre trilhos dourados: sobre eles desaguaria às portas da cidade toda a riqueza do continente, numa torrente semelhante à do rio que nela passa, uma força paralela e irmã – a dele ciclo impassível da natureza, a outra motor inextinguível do engenho humano, ambas constituídas por desígnio divino. A cidade mobilizou-se como se de uma revolução se tratasse. As projecções favoreciam as expectativas gerais e decidiu-se, com a fervente exaltação própria das euforias públicas, pelo início imediato dos trabalhos de construção. Não se adivinhava uma tarefa fácil; ter-se-ia primeiro de conquistar a terra que se estendia dos limites da urbe até às inóspitas planícies da fronteira, no leste longínquo. A cidade preparou-se então para verter todo o seu poder sobre o projecto, fazendo uso dos instrumentos que lhe eram conhecidos. Contra o rio, as montanhas e o tempo empregou a força, a ciência e os capitais. Contra a complacência das estações usou a ambição intemperada da multidão, fruto fértil em anos carentes de um qualquer propósito colectivo. Logo se eliminou esta falha, e a cidade tratou de providenciar o melhor lema que soube arranjar. Trabalhou-se nesses anos pela conquista da marcha do tempo.

O desenvolvimento inicial foi tremendo. Arrasaram-se montes, alongaram-se vales, estenderam-se pontes, maneou-se o ferro como se o material obedecesse dócil às ordens dos capatazes. Uma ilusão generalizada convenceu toda a gente de que o rio se ia ajustando ao correr do projecto, como se sentisse reverente perante aquela magnífica empresa humana, e não o contrário. A febre colectiva difundia-se por cada nova vila que a obra alcançava. Mas os efeitos visíveis eram, de facto, louváveis: encurtaram-se dias, semanas mesmo, na aproximação de aldeias e parentes, e do campo à cidade. A fome, que visitava de quando em quando as povoações perdidas nos montes, deixou de pairar sobre a terra como um nevoeiro iminente. Os filhos mais audazes partiam das aldeias, destroçavam os corações às mães que os viam embarcar, tentando sempre aliviá-los com promessas de um dia voltarem a casa de bolsos transbordantes. O inexorável progresso do caminho-de-ferro era celebrado nas igrejas como prova da graça de Deus sobre os homens.

Depois, a meio caminho, a natureza encrudesceu a sua oposição à vontade do homem. O rio fechou-se em vales escarpados, as margens verdejantes deram lugar a gargantas de rocha polida, a lajes aguçadas que pendiam sobre o rio como varandas nas montanhas. Sabia-se que a Índia estaria a quarenta milhas para lá dos abismos infernais que agora se levantavam. A cidade respondeu ao desafio dobrando os seus já muito sofridos recursos: agrupou a sua força bruta disponível, enviou máquinas de que necessitava e que outras indústrias dispensaram a custo, entregou capitais que já não lhe pertenciam, e obrigou a sua fiel campanha a travar um duro inverno contra a montanha. Eventualmente, com pesadas baixas, num esforço que deixou todos sem fôlego para continuar, a montanha foi transposta. Achou-se então uma vila nunca antes visitada por tão grande e aparatosa embaixada, e onde o caminho-de-ferro foi recebido com compreensível temor. No final desta epopeia, quando se goraram irremediavelmente todas as expectativas, seriam os seus habitantes e toda aquela terra de pobres lavradores os maiores beneficiados pela obra do cavalo de fogo, como lhe chamavam os ignorantes.

O rio abria-se agora num planalto manso, de suaves colinas fustigadas pelo sol ardente. Deitaram-se mãos à obra – as poucas que sobravam – para completar o troço final até à derradeira estação. Chegou-se então à linha de fronteira. Via-se do outro lado, a menos de vinte milhas de distância, as torres da cidade castanha, porta de entrada para o continente que as muralhas medievais escondiam atrás de si, juntamente com os seus infindáveis tesouros. Ao deitarem à terra os primeiros trilhos para lá da fronteira, chegou às mãos dos capatazes um telegrama de luto. A cidade definhava. Todas as ambições soçobravam porque a fome e a doença corriam desenfreadas pelas ruas, deixando muito pouco aos homens com que sonhar. Parar tornava-se imperativo por aquele grito de agonia. A empreitada acabava ali, à vista das portas da primeira cidade além fronteira. O rio, esse, há muito que virara a norte, depois das montanhas, deixando os homens sozinhos, entregues a si na sua quimera contra o tempo.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 22:46
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Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2015

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(micções)

 

Estou certo que já fizestes a seguinte questão: quantas vezes duas determinadas pessoas, perfeitas desconhecidas entre si, se cruzam fortuitamente durante toda uma vida? Tomemos como exemplo as seguintes: Juvenal, solteiro, maior, residente na União das Freguesias de Santo Tirso, Couto (Santa Cristina e São Miguel) e Burgães, concelho de Santo Tirso; e Maria, divorciada, residente na freguesia dos Olivais, concelho de Lisboa. Juvenal e Maria não se conhecem um ao outro, e tampouco supõem a existência de um e de outro. Mais, Juvenal e Maria residem e sempre residiram a mais de 200 quilómetros de distância um do outro. Não têm relações, amigos, ou conhecidos em comum. Trabalham ambos na área da residência de cada um, ele como contabilista, ela como cabeleireira.

Ora, sucedeu a Juvenal e Maria encontrarem-se, por coincidência, no interior do comboio Alfa Pendular que, às 09:20 horas do dia 28 de Janeiro de 2015, partiu da Estação de Santa Apolónia, com destino a Porto-Campanhã. Sucedeu ainda estarem ambos sentados de frente um para o outro, uma vez que, por um acaso do destino, foram-lhes atribuídos os lugares do meio da carruagem (únicos lugares em que os passageiros se sentam de frente uns para os outros, com uma pequena mesa desdobrável ao centro a servir de separador) junto à janela esquerda (no sentido da marcha).

Juvenal foi o primeiro a acomodar-se ao lugar. Maria entrou na composição apenas na Gare do Oriente, ocupando o seu lugar em frente a Juvenal. Nesse momento, e após replicar ao «bom dia, com licença» de Maria, Juvenal pensou para si: «Olá, queres ver que hoje estou com sorte». Não deixara, naturalmente, de reparar nas belas formas de Maria, e na cascata de ouro que descia languidamente até a uns seios de auspiciosas proporções. O perfume inebriante que exalou ao sentar-se deu a estocada final. Juvenal estava rendido. Na verdade, não foi preciso muito tempo para lhe despontar uma erecção, que procurou camuflar colocando o casaco sobre as pernas. Decidiu que havia de meter conversa com aquela mulher até final da viagem, nem que fosse a última coisa que fazia na vida. Porém, este era o género de actividade para o qual não estava minimamente habilitado e muito menos habituado.

Mas já lá iremos. Antes disso, quero informar que Juvenal e Maria, apesar de nunca se terem conhecido, já se cruzaram pelo menos três vezes (que eu tenha conhecimento) durante a sua vida. A primeira, ainda ambos por nascer, mas já em gestação (Juvenal com sete meses e Maria com cinco), aconteceu quando as respectivas mães, grávidas, se encontraram fortuitamente na sala de espera do consultório do Dr. Amílcar Roldão, médico obstetra de Coimbra, com fama em todo o país, corria o ano de 1980. Vinte anos mais tarde, seguindo na Auto-Estrada designada A1 no sentido Norte-Sul, a 400 metros da saída para Fátima, Juvenal inicia uma manobra de ultrapassagem, ocupando a faixa esquerda de rodagem. No sentido contrário, em igual manobra de trânsito, e nesse exacto momento, passou Maria a bordo de um Opel Tigra, conduzido pelo seu, então, namorado. Durante um período de tempo inferior a um segundo, nem cinco metros distaram entre Juvenal e Maria. Por fim, em 2011, no aeroporto internacional de Lisboa, Juvenal retém a porta de um dos elevadores do estacionamento, permitindo a Maria entrar nesse mesmo elevador, fazendo a ascensão ao piso das partidas os dois juntos. Admito que possam ter-se cruzado em mais ocasiões. Porém, as que acabei de enumerar são as únicas que, após longa e exaustiva investigação, fui capaz de descobrir, e para as quais reuni provas cabais de terem efectivamente acontecido (o que fiz por inquirição de dezenas de testemunhas, consulta de vários registos documentais particulares e públicos, e visualização de imagens vídeo e fotográficas de câmaras de vigilância diversas).

Estes dois desconhecidos estavam agora, como disse, frente a frente, na mesma carruagem, do mesmo comboio, e com o mesmo destino (Porto-Campanhã). Juvenal desesperava por conseguir arranjar as palavras certas para iniciar os seus intentos. Cheio de calor, vermelho, e banhado em suor, nem reparou na paragem do Alfa Pendular na estação de Coimbra B (ainda hei-de tentar perceber por que raio não arranjaram um nome mais digno para esta estação, como por exemplo o do sítio ou lugar em que está implantada). Nisto sente alguém a tocar-lhe no braço direito, situação que o fez repentinamente acordar do estertor em que estava. «O senhor, desculpe, será que se importa de trocar de lugar comigo?», pergunta uma velha senhora. «É que assim eu podia ir ao lado dos meus dois netos, que vão aqui» acrescenta ainda. De imediato e de um salto só Juvenal levanta-se do seu lugar, disponibilizando-o à velha senhora, e ainda ajudando-a com as malas. Seguidamente arrastou-se até ao seu novo lugar, sito no final da carruagem, junto às casas de banho daquela composição ferroviária. Até final da viagem dissipou-se a réstia de coragem que ainda tinha, e Juvenal acabou por desistir de seu malfadado projecto. Ficou-lhe apenas gravado, para memória futura, as formas e o perfume daquela bela loira com quem se cruzou no Alfa das nove e vinte.

 

nev

despesadiaria às 16:59
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Terça-feira, 27 de Janeiro de 2015

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Gear

 

Um verbo que ninguém a menos de uma dúzia quilómetros de uma cidade como-deve-ser sabe sequer conjugar - gear. Está-se mesmo a ver, fugir a ideia a uns quantos para o inglês. Mal. Quais cangalhadas tecnológicas, quais quê. Ali geou mesmo - dois grau negativos - quem quer, é aguentar.

Em Campos da Soberana ainda há dois caminhos. O da taberna dos ciclistas e o da casa de cada qual, que é como a não-sei-quê-que-o-não-sei-quê. Quilómetros nas pernas para seguir ao primeiro sem vergonha não há, por isso ele faz por arrumar os tarecos, caminho  do outro. A ver da parentela.

Pesam a rotina dos fechos, dos carregos, das limpezas, mas faz de conta que não. Já à pressa, procura o saco para a roupa suja no intervalo entre o armário das travessas e a parede mestra da cozinha. Sente um mover pequeno. Lento. Vem-lhe um tremor frio, uma repulsa em vaga daquelas súbitas, que vão de dentro para fora. Há ali coisa. Indistinta mas viva. Escura.

São dez e meia da manhã, não deveria sentir medo. Procura o dínamo, dá à manivela. Um rato não é. Abre a porta virada ao telheiro. Faz por dominar a impressão causada por aquele guinchar sumido. Pega na pá, na vassoura pequena. Estupor do morcego. Não entende como foi ali parar, ou onde se feriu. O primeiro toque de despejo faz repetir aquele som. Agora, cá fora, é deixá-lo ficar?  Apesar da respiração aflita, do mau movimento das asas, decide que sim.      

Quarenta quilómetros andados, pára quase na banda de aquém. Sente um peso de culpa, e dá-a ao cigarro acabado de acender.     

 

[Cláudia.]

despesadiaria às 10:00
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Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2015

 

Há quem veja nas mais recentes cortinas da sala um regresso à sua primeira intervenção, não só por voltar a utilizar a sanefa, a que creio nunca mais tinha recorrido, mas também pelos orifícios no tecido.

Tentei juntar nestas novas cortinas algumas ideias que fui explorando ao longo dos anos a uma revisitação. De certa forma, é a revisitação, já não sabemos se na forma de comédia, de opera-bufa ou de apatia em que vivemos todos. Aquelas primeiras cortinas tinham muito de uma efervescência que não faz sentido hoje, em que parecemos esmagados, sobrevivemos como se tivéssemos perdido o nervo. Se reparar, basta andar pela rua e ir olhando para ver que os cortinados de hoje tendem para uma opacidade simples, são aquilo em que materializamos o sonho da privacidade prêt-a-porter, a forma de separarmos definitvamente o espaço privado sobre o qual na verdade temos cada menos controlo de um espaço público que já não sentimos como nosso, que deixou de ser público. As minhas primeiras cortinas faziam sentido num tempo em que me corria nas veias o Pasolini do pós 1968, dos anni di piombo, daquilo que cá chegava, muitas vezes clandestinamente. A sanefa em madeira mantém-se, mas agora sem o forro de tecido, é apenas uma sanefa nua, uma estrutura em madeira simples, sem sequer verniz, e as duas camadas de organza sobrepostas substituíram o belíssimo cretonne de linho completamente opaco, estampado com rosas vermelhas, que hoje só poderia ser interpretado como um anacronismo.

 

Mas manteve os orificíos, uma opção que pode ser vista como uma ironia, uma referência a essa desadequação de uma reencarnação que não pode, de facto, sê-lo.

Sim, os orifícios. Eu sempre gostei muito de orifícios. Mas os orifícios das cortinas de cretonne transportavam para o interior uma esperança imaginada no exterior. Os orifícios na organza fazem parte daquilo a que, se quiser, podemos chamar a rebelião possível, dirigem-se ao exterior. A semitransparência da organza é anulada pela justaposição de duas camadas, que é por sua vez ridicularizada pelos orífcios mínimos, que projetam a liberdade já só ilusoriamente possível em nós, a que deixámos de poder procurar na humanidade.

 

E a escolha da cor. A sua obra sempre tendeu mais para as cores quentes, e aqui opta por um violeta bastante dúbio. Uma vez que, nos anos noventa, foi bastante crítico da síntese teórica, fica a questão de se tratar de mais uma ironia ou de uma nova abordagem a esse tema.

É porque vai bem com a nova carpete.

 

Mas fugiu sempre às cores frias, exceto nalgumas obras de juventude.

Sim, e também logo após ter frequentado Londres, uns anos mais tarde. A minha passagem por Londres foi muito importante, conheci muitas pessoas ligadas à belbutina e deixei-me imergir sem restrições. Embora naquela altura, essencialmente a partir do disco, Nova Iorque fosse o centro da ação, por ali passava muito do que era ainda incógnito mas que veio a não ter influência nenhuma uns anos mais tarde. E a belbutina, pelo  menos na época, só era inteligível em azul, especialmente numas cortinas completamente lisas, como as que aqui tive durante quase um ano. Mas foi uma das poucas explorações nesse campo. Tive, por um curto período do verão do ano passado, um conjunto de pequenas cortinas, quatro, o que para uma janela deste tamanho é claramente excessivo, em polyester glauco intercalado com amarelo cádmio, com umas figuras desbotadas alusivas à comodificação do imaginário infantil, mas não duraram muito tempo porque a gata as rasgou.

 

E pensou em deixá-la prosseguir?

Não, já estava bastante velha e vomitava pela casa toda. Deu-me cabo de dois sofás. Achei melhor mandar abatê-la.

 

Referia-me a essa experiência dos motivos infantis. Parece-me representar uma evolução natural da sua crítica.

Sim, e foi-o, com todos os incómodos que isso provoca num país tão paroquial. A cultura Iqueia não consegue integrar a crítica ao assalto destrutivo que todos os dias fazemos às cada vez mais exíguas hipóteses de futuro que ainda nos restam. Falou da minha queda para os tons quentes. Após a revolução, estávamos em pleno PREC, com o qual a morte de Pasolini coincidiu, e senti um certo esgotamento, que decidi expressar na janela da sala, que sempre foi o meu locus operandi de eleição, apesar de algumas aprendizagens com os candeeiros da entrada e com árvores de natal. Decidi retirar as cortinas, provocar um enfrentamento que representasse a ausência de um caminho claro e, a um tempo, o reivindicasse enquanto direito a um percurso libertador, o próprio percurso visto como libertação, através da vivência e da introspeção, por oposição à naturalização das axiologias que ocupavam todo os espaço disponível. Nessa época tinha-me desinteressado da militância obrigatória a que os quotidianos se viam cada vez mais reduzidos e refugiei-me na juventude, em Thoreau, Proust, [Anatole] France, Orwell. Esta era a minha atitude, demonstrar a inutilidade de cortinas na sala, quando se deu o 25 de novembro. Não houve boa vontade no entendimento da minha obra. E nunca mais tive uma vida fácil neste país. Enquanto outros autores da minha geração foram vistos como um farol do momento e dos momentos, mesmo quando recorriam à ironia do formulaico, eu nunca passei muito bem por algumas gargantas. A minha utilização conscientemente compulsiva mas crítica das cores quentes, e especialmente dos vermelhos, que dominaram o meu percurso intelectual desde a adolescência, serviu para tudo, para todo o tipo de interpretações e de perseguições e mesmo de ameaças. Chegaram a colar um autocolante das bananas Chiquita na vidraça da janela numa altura em que tinha umas cortinas fúcsia de renda que, evidentemente, provocaram engulhos a muita gente. Nunca abdiquei de ser um incómodo, de me mover fora do establishment, mas já não pretendo continuar nada a não ser o puzzle de dez mil peças do Castelo de Neuschwanstein com que vou cobrir a parede norte da minha antiga oficina. 

 

A sua relação com outros autores contemporâneos, entre quais os vizinhos do 1ºD, que julgo terem marcado bastante o seu trabalho, espelha também um pouco o seu progressivo afastamento dos temas tradicionais nas cortinas portuguesas.

Sabe, eu nunca me interessei especialmente por esses temas. Eles estão, como não pode deixar de ser, na génese do meu percurso artístico, e foi nessa base que surgiu um momento em que foi possível um diálogo com os meus vizinhos do 1ºD, mas desde cedo tentei distanciar-me deles. Claro que essas influências eram visíveis em todas as cortinas que aqui colocava, por vezes apenas na escolha dos tecidos, mas sempre senti a necessidade de escapar àquilo que via, já nessa altura, como um remoer mecânico de temas estafados, que tinham perdido interesse e atualidade, como uma inércia. Não quero com isto dizer que toda a tradição acaba por se tornar necessariamente fútil, mas o panorama dos cortinados em Portugal tem sido muito dominado por incessantes releituras de uma linguagem que resulta da assimilação do ruralismo pelos românticos, que foram quem, mal ou bem, fez alguma coisa de novo neste país a este nível, embora na realidade mais não tenham feito que importar o que tinha sido feito em França duas ou três décadas antes. Desde aí, as exceções foram atos isolados e as mais das vezes involuntários, o resultado de uma determinada loja ter colocado à venda um produto importado que se tornou moda, o mimetismo do que se vê nas revistas de decoração, etc. A tradição cortineira portuguesa parou naquele momento fundador e não mais daí saiu, tendo a sua aparente evolução sido capturada pela construção política tardo-nacionalista tão característica do século vinte português. Ainda estávamos na primeira iteração desse movimento quando no centro da Europa já não se pensava daquela forma, já não era aquela a linguagem. O expressionismo, por exemplo, nunca chegou às cortinas portuguesas, que nem por isso abandonaram completamente alguns atavismos do barroco.

 

Mas apesar da sua recusa em alinhar-se, é hoje reconhecido como um autor marcante em toda esta zona da cidade. Acha que se pode dizer que fez uma escola?

Não, não acho, e, se quer que lhe diga muito sinceramente, ainda bem. No contexto em que se desenvolveu a minha atividade, “fazer escola” quer dizer ser absorvido por uma das capelinhas, todas elas virtualmente indistintas para um observador externo, que dominam as nossas janelas. Os resultados até podem ser diferentes, mas o raciocínio que lhes está na base é sempre o mesmo. Embora não venha de uma família com tradição nos tecidos nem na decoração, era uma casa onde se cultivava um certo gosto pelo cosmopolita, onde se liam coisas vindas de fora. A minha mãe ainda chegou a vender alguns pares de peúgas ao André [Breton], no seu esforço para financiar a digressão que os meus pais fizeram pela Europa, logo após a II Grande Guerra, para verem os estragos. Esta base diferencia-me naturalmente de autoras como, por exemplo, a Dona Dulce. A Dona Dulce fez aquilo a que se pode chamar uma escola, e fez muito pelas cortinas deste país, mas nunca conseguiu, por exemplo, abdicar dos folhos. A veemência da minha recusa do folho veio acrescentar ainda mais aos problemas que já tinha com a crítica e com alguns setores do público, por isso não, não creio que se possa associar-me a uma escola ou abordar a minha obra como sendo fundadora de uma. Sou um objeto estranho.

 

Foi no seguimento desses problemas que foi para Londres.

Também por isso. Precisava de alguma abertura, de uma clareira na minha vida. Veja que, depois do reposteiro de cretonne, da mudança frenética de cortinados de 1974-75, da resposta com os estores japoneses, que ninguém na altura utilizava nesta rua, não me era possível, do ponto de vista criativo, limitar-me a um ambiente cultural que, sentia-o, me estava a forçar a uma etiqueta. E não estou a falar daquelas com as instruções de lavagem.

 

Quanto tempo passou em Londres?

Três dias. Foram tempos que me abriram a novas vias para a articulação da dualidade entre o corpo enquanto veículo inescapável do pensamento, em confronto com várias correntes do pensamento europeu, e o corpo enquanto plasmação da urgência de animalidade que a modernidade só nos permite quando não há uma casa de banho por perto. As cortinas da sala passaram a ter uma função, e uso o termo função propositadamente, uma função diferente. Se antes se situavam apenas no campo de uma dualidade filtragem/abertura da qual estava ausente a problematização ontológica, a partir daí passaram a constituir também, e de forma consciente, uma espécie de segunda passagem da latência para a genitalidade. Por exemplo: até então nunca tinha considerado seriamente os algodões, o excesso pop das toalhas turcas de banho enquanto cortinas ou os black-outs com découpages florais, como vim a utilizar uns anos mais tarde no âmbito das festas da cidade. O que mudou foi, essencialmente, a minha relação com as texturas.

 

Anunciou que esta será a sua última obra. O que tenciona fazer à janela da sala daqui para a frente?

Não farei nada. Passarei a convidar jovens artistas para me escolherem e fazerem as cortinas com total liberdade. Os artistas da nova geração não têm muitas possibilidades de desenvolver uma obra e construir uma carreira, porque vivem em andares demasiado altos de subúrbios sem visibilidade ou porque, pura e simplesmente, tiveram de emigrar, muitas vezes para lavar cortinas na Alemanha. E como não há apoios, o panorama é bastante sombrio. A Secretaria de Estado da Cultura, que já nem ministério é, descartou completamente as cortinas, tal como o cinema independente e os buracos na calçada em forma de coração. Foram áreas que este governo, que não me merece sequer o esforço de uma qualificação, entendeu serem irrelevantes. Disponibilizar a janela da sala, ser uma plataforma para a troca de novas experiências, essa é a contribuição que posso dar a este país sem futuro.

 

 

E.

despesadiaria às 17:16
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Domingo, 25 de Janeiro de 2015

 

Antes de terminar o último ano da faculdade tomei a decisão de trabalhar num café durante o verão. Na verdade nem posso dizer que a tenha tomado, vim para aqui não por necessidade mas por insistência do meu pai, que achou que uma actividade durante estes meses seria útil para me formar o carácter. Passou entretanto um ano e meio e por cá tenho ficado, um risco que eu próprio antecipei e do qual informei a família nessa conversa ao jantar. Tendo vindo a confirmar-se, não foi pelas razões que suspeitava.

Sou tão bom a lavar pratos como a fazer cocktails ou a tirar um doppio ristretto com a consistência correcta (de óleo de motor), mas não foi a minha competência e devido reconhecimento que me convidaram a ficar. Também não foi a inércia que me obrigou a fazê-lo, a minha aposta inicial. Terminei entretanto a licenciatura e já tenho recebido os convites que se adivinhavam, tenho tudo o que é preciso para uma carreira sem enviar uma única candidatura. Mas cá estou. O que se passa é que comecei a contar as pessoas.

Não foi um processo imediato, inicialmente fazia por caracterizá-las, isto é, inventava-lhes uma vida ou procurava conhecê-las, sou um desses tipos de empregado com boa conversa, e temos um balcão extenso. Cedo passei de pessoas para grupos. O café está aberto desde cedo e fecha quando sair o último cliente, não poucas vezes depois da uma da manhã. Não vale a pena alongar-me nestas caracterizações, são o que se espera de um estabelecimento que não serve almoços ou jantares. A primeira leva traz gente que vai trabalhar e vem beber uma bica ou tomar pequeno-almoço; desempregados, estudantes, e vizinhos ao longo da manhã; casais de universitários durante a tarde, turistas perdidos ou atraídos por conselhos de recepcionistas de hostel ou escritores de Lonely Planets; e, um pouco antes do jantar e durante a noite, uma massa cada vez mais indistinta.

Numa dessas noites, sem nada de atípico, levantei a cabeça depois de esmagar quartos de lima em açúcar mascavado cristalino, e decidi contar as pessoas. Fui rápido, extraordinariamente rápido, oitenta e seis cabeças. Quis ir mais longe e abstraí-me da tentação de lhes dar contexto, como tinha feito até aí, mas individualizei ao extremo a multidão e consegui memorizar durante uns instantes cada um dos clientes. Não falo em ser capaz de os reconhecer (embora seja), o que fiz foi criar uma memória permanente de cada um deles, e ao fim de uns minutos estava pronto a reconstruir a sala. Continuei ao longo da noite, com cada pessoa que entrava ou saía, e facilmente os compartimentalizava entre os que já estavam e os que já estiveram. Não procurei fazer previsões, nem extrapolações, ou narrativas, penso que de um momento para o outro liguei a memória num modo estatístico impensável.

A massa deixou de o ser, senti-me Funes, capaz de olhar para uma árvore e lembrar e distinguir cada uma das suas folhas. Continuei até ao final da noite. Enquanto lavava copos e virava cadeiras reconstruí com facilidade toda a multidão que por ali tinha passado de forma minuciosa. Não se tratou sequer de reconstruir, era como abrir uma pasta de arquivo e o processo era imediato. É importante voltar a sublinhar que apesar de os ter distinguido e extraído da multidão um a um, não lhes dei mais contexto do que a um conjunto de números inteiros infinito, tornei-me não só imune como incapaz de julgamentos ou adivinhações.

Quando acordei na manhã seguinte, a memória de cada indivíduo continuava presente e imediata, acessível como a do nome da minha mãe ou do meu número de turma no quinto ano. E, claro, fiz o mesmo nesse dia e voltei a memorizar cada uma das pessoas que meteram pé no café, e assim tenho feito até hoje, mais de oito meses depois daquela noite. Temo bem que a minha vida se venha a resumir a esta tarefa, talvez para tragédia do meu pobre pai. Não sei dizer se consegui o oposto da formação de carácter que pretendia, se o anulei, ou se existia para ser formado.

 

Gouveia

despesadiaria às 20:37
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Sábado, 24 de Janeiro de 2015

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 Curta

 

No verão, a Madalena pedia sempre o café cheio e um copo alto com duas pedras de gelo. Agarrava na chávena escaldante e espetava o mindinho anelado; depois vertia o café para dentro do copo num gesto rápido, mas não tão rápido que impedisse a fuga de parte do líquido. Algumas gotas agarravam-se à porcelana espessa da chávena, outras escorriam lentamente pelo copo abaixo até se unirem à mesa prateada. Aí, de mãos dadas formavam um cinto acastanhado em torno da base do copo. A Madalena levantava-o para ver a circunferência escura engordar, como se a forma tivesse sido aplicada ali por um carimbo saturado de tinta. Depois, tentava limpar o chiqueiro com os guardanapos de papel que tirava dos dispensadores com forma de garrafa de Compal: começava por tirar apenas um, abria-o e com ele cobria o rasto de café. Uma mancha nascia na zona central do guardanapo, devorando sofregamente o branco, quase chegando aos bordos azuis e ao exclamativo Obrigado pela preferência em dois dos lados do quadrado; Madalena tirava mais um guardanapo, desta feita emoldurado por um tom encarnado, desgastado, e com letras a condizer; seguia-se outro, e outro, e outros; empilhava-os até haver um que ficasse todo branco, orgulhoso, em cima dos irmãos emporcalhados, e sobre a superfície imaculada pousava finalmente o copo. Só nessa altura começava a beber o café, já os cubos de gelo se reduziam a tristes formas ovoides, quase indistinguíveis no líquido escuro.

Um dia disse-lhe que podia pedir simplesmente um café gelado. A sugestão foi recebida com um sorriso largo, daqueles que usava para mostrar o intervalo dos dentes da frente. Isso não faz sentido, respondeu. Olhando para a pilha de guardanapos entre nós, acabei por concordar.

 

S. White

despesadiaria às 19:20
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Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2015

 

X

 

As árvores pareciam distraídas no seu esplendor de Domingo. Decompostos dos bandos, iam e vinham pássaros, anelavam as garras nos galhos mais sinuosos, as penas a penderem no balanço da aragem. Altivas e impotentes, ei-las naquele clã, arvorando a sua causa vegetal, surpreendidas por alguém que se tinha aproximado: as raízes regadas por uma repentina pluviosidade. Nas franjas de sol que as ramagens deixam a descoberto, sobressai uma pequena navalha nas mãos de um Orlando, que furioso cismava uma teoria homicida. A estatura mediana, o esqueleto vergado pela picardia e o olhar enlouquecido para o objecto que se amparava, a medo, naquela infinitude de dedos provenientes de unhas inconclusas: a lâmina quase baça, ainda assim, um retrovisor que espelhava as memórias de desamor da noite passada. Ergue a cabeça, levanta o braço, espeta a ponta do canivete na casca. A dor é lascada à medida que a mão oscila freneticamente. Quando acabou, já o luar lhe rotulava a sanidade perdida. A árvore, sacudida do torpor dominical, revestia-se agora da literatura mais prosaica: «Angelica, pk me abandonas-te?»

 

gisandra

 

despesadiaria às 16:53
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Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2015

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8h30

 

2.O verão revivido em 2006 foi para Gustavo o melhor da sua vida. Lançou-se com os seus amigos mais próximos, insuspeitos ainda da caricatura de amizade que os ligaria oito anos mais tarde, numa aventura pelos trilhos de areia e mar do Sul. Passavam os dias nas praias luxuosamente virginais da costa alentejana e as noites nos festivais de música que pontuavam pela região, erigindo nas madrugadas pagãs daquela terra rituais de reggae, punk, jazz, trance e pimba. Gustavo, inebriado de tanta alegria, apaixonou-se todas as noites com a liberalidade dos vinte e cinco e a sinceridade dos dezassete. Os seus amigos invejaram tamanha desenvoltura; mas aceitaram-na, e experimentaram até a audácia deste novo Gustavo revelado no seu amigo de infância.

Em Setembro, porém, tudo acabou, e os dias de faculdade começaram em Évora. A cidade era-lhe estranha, pacata, branca em demasia, sufocante, tão larga e baixa que se confundia com os sobreiros nos montes. Os anos passaram e a dedicação que o curso exigia – melhor, que o seu interesse e curiosidade pediam, instigados pela recordação dos anos em Engenharia – fizeram-no acarinhar e tomar como sua aquela relíquia do mediterrâneo antigo. No secundo ano do curso, a convite de um professor que ele admirava, aceitou colaborar no projecto para o planeamento de um novo bairro social que seria construído na fronteira da malha medieval. Gustavo estudou o tecido geográfico da zona, inventariou os pontos críticos, as tendências sociais, o tecido orgânico. Mas decidiu completá-los com o contributo de quem, afinal, «vive no seu objecto de estudo, i.e., de quem vive na cidade», escreveu Gustavo em rodapé. Ouviu as histórias daquele sítio à boca das tabernas e no umbral das portas. Obteve da Câmara o perfil das famílias que deveriam vir a habitar o novo bairro e foi falar com os futuros moradores. Explicaram-lhe as suas dificuldades, os seus anseios na mudança, desenharam-lhe ao pormenor a ideia de um dia na casa e na cidade perfeita. Gustavo recolheu com dedicação todos os contributos e depois, deitando ao papel toda a sua inspiração e zelo de artista, fez o melhor para os conciliar num projecto harmonioso. Os vários relatórios que foi entregando na faculdade valeram-lhe uma menção especial da Câmara, que o contratou para mais um projecto no ano seguinte.

No final do curso, Gustavo regressou a Lisboa, sem qualquer plano. Esperou convites, propostas, um emprego bem pago na sua área. Esperou durante um ano, e nada chegou. No final, não tomou nenhuma decisão drástica, como outrora fizera. Não se sentia desalentado pela ignorância do seu futuro. Na verdade, tinha tirado o melhor dos meses que passaram. Arranjou um part-time no posto de turismo da Baixa, onde se divertia a sugerir aos turistas mais curiosos restaurantes, cafés, ruas e bairros de que gostava. Ao final da tarde, assistia sempre a um filme na Cinemateca. Foi lá que conheceu Catarina, o grande amor da sua vida corrigida. Podiam-se ter de apaixonado a meio de um filme de Capra ou de Lubitsch, como bem calhava à história; mas não, conheceram-se enquanto esperavam no hall por um filme do Dário Argento. Catarina não tinha planos para o seu futuro e também não se importava com isso. Era arqueóloga de formação e de paixão, mas trabalhava então como empregada numa perfumaria do Chiado. Gustavo e Catarina continuaram a empenhar-se nas suas investigações de vida. Certa vez, até, concorreram juntos a um concurso para a integração urbana das ruínas medievais de uma povoação francesa. Receberam por esse projecto um meritório terceiro lugar e um cheque de 2000€. Com o dinheiro do prémio partiram nesse verão numa jornada pelo norte de África e pela Arabia, de Casablanca a Bagdad – ou, como anunciaram aos amigos da Cinemateca, do Rick’s Café ao Palácio de Jaffar. No final dessa viagem, notaram possuir uma vontade renovada de fazer as coisas.

Catarina foi convidada por uma Universidade no sul de Inglaterra para integrar um projecto de escavações de um aldeamento saxão. Gustavo e Catarina amavam-se muito mas decidiram que seria melhor para ambos manterem-se fiéis aos seus sonhos; separaram-se, temporariamente, como sempre se espera nas partidas consentidas. Gustavo decidiu continuar os estudos em Lisboa, seguindo um mestrado em Economia das Cidades. No final do curso, trabalhou durante seis meses no Ministério do Ambiente, durante o qual ajudou a definir o mapa das cidades mais necessitadas de incentivos à reabilitação urbana. Ficou muito satisfeito com o trabalho final, pelo qual lhe ofereceram os maiores elogios. Mas não um emprego.

Certa noite, tinha acabado de voltar do aniversário de um antigo colega da equipa do Ministério, três meses passados desde o final do projecto, Gustavo esqueceu-se que era feliz e que conseguira vingar a vida das paixões sobre o correr dos dias esquecidos, sobre o laissez-faire do tempo. Nessa noite, deitou-se cedo, como era seu costume. Precisamente às 23h51 do dia 8 de Março de 2014. Quando acordou, às 8h19 do dia seguinte, estranhou não ter acordado às 7h30, como tinha marcado no despertador antes de se deitar. Então reparou, não imediatamente, mas a custo e com crescente terror, que acordara no quarto, no pijama e no corpo dos vinte e cinco anos da sua primeira vida. Então percebeu tudo. Sem sair da cama, chorou sem alma; chorou muito, exorcizando as recordações daquela segunda vida, mutilando o espírito que crescera renovado em oito anos. As mais cruas lágrimas chorou-as por Catarina. Depois, acordado, caiu num sono de profunda apatia. Dez minutos de dor, em que as horas da sua vida corrigida passaram em acelerada reprise com o acento desolador da tragicomédia. Dez minutos que bastaram para lhe adormecer o ânimo por muito tempo. Eram 8h30 quando se levantou da cama para cumprir a agenda no cubículo do escritório. Gustavo, como em tantas vezes, ansiaria toda aquela manhã pela pausa do almoço, em que pudesse afagar a fome na primeira colher de sopa.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 11:49
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Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015

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(micções)

 

O pingo

 

Quando colocou o pé direito sobre o piso betuminoso que compõe a estrada nacional número X, com intenção de a atravessar perpendicularmente, sentiu imediatamente um pingo no nariz. Surgiu de repente, em toda a sua pompa e esplendor, como se tivesse preparado a aparição durante toda a manhã. Um pequeno berlinde translúcido, contendo uma mistura de milhões de átomos de hidrogénio e oxigénio (na proporção de dois para um) e uma bateria de germes e vírus de variada natureza, dependurou-se-lhe na ponta do nariz, lá fixando-se por mote próprio. “Que coisa ridícula”, pensou, ao mesmo tempo abanando a cabeça (como se estivesse a dizer não) tentando que o pingo tombasse por força da gravidade. Sentiu o pingo mover-se de um lado para o outro (na verdade não o conseguia ver bem, mas sentia-o em toda a sua plenitude), tal qual um pequeno badalo de uma campainha de chamar criados. Enervante e teimoso, o pingo manteve-se firmemente preso ao nariz. Lembrou-se que tinha lenços na algibeira do casaco, mas isso implicava tirar as mãos dos bolsos das calças. Se por orgulho, se por preguiça, não sabemos, mas é um facto que não tirou as mãos dos bolsos. E o pingo lá permaneceu, agora ainda mais fortalecido, inchado, brilhando ao longe. O peso e a comichão começando a tornar-se insuportáveis. Já não era apenas um pingo, antes todo um globo com milhões de microscópios demónios atiçando-lhe o nariz com malagueta. Nisto passa por ele um camião cisterna, e com um movimento brusco põe o pé esquerdo sobre o lancil do passeio, o pingo cai, e o sapato de pele de camurça fica encharcado.

 

nev

despesadiaria às 13:23
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Domingo, 11 de Janeiro de 2015

 

1. Boa ação
1.1. Boa para quem a pratica
1.1.1. Boa como o milho
1.1.2. Boa boca
1.1.3. Boa peça
1.1.4. Boa constrictor
1.1.5. Boa vida
1.1.6. Boa moeda
1.1.6.1. (risos)
1.1.7.  Boa para assar
1.1.7.1.Haja percas
1.1.7.1.1. Ninguém diria que são de aquacultura
1.1.8. Boa onda
1.1.9. Boa na cama
1.1.9.1. Mas limpinha
1.1.9.1.1. Vê lá se queres
1.1.9.1.1.1. Que te faça um desenho
 
1.2. Boa para quem a sofre
1.2.1. Boa morte
1.2.2. Boa esperança
1.2.2.1. Cabo da
1.2.3. Boa viagem
1.2.3.1. Serra da
1.2.4. Boa estrela
1.2.4.1. Em dia de neve
1.2.4.2. Ou com vento de leste (é)
1.2.4.3. Ou com vento que leste (ê)
1.2.4.4. Já foste(s)
1.2.5. Boa da cabeça
1.2.5.1. Nunca o será
1.2.6. Boa rês
1.2.6.1. Meat is murder
1.2.7. Boa compra
1.2.7.1. Compra, compra, compra
1.2.7.1.1. Vende, vende, vende
1.2.7.1.1.1. Quem anda à chuva
1.2.7.1.1.2. Diz-me com quem andas
1.2.8. Boa companhia
1.2.8.1. Das Ameríndias
1.2.8.2. Mais vale só


E.

despesadiaria às 19:10
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Sábado, 10 de Janeiro de 2015

 

Passava das três da manhã quando cheguei. Estava informado por um mapa desenhado a caneta pelo motorista da camioneta da localização da pensão, mas penso que a teria encontrado com facilidade. O empregado da noite, atrapalhado, explicou-me que o único quarto disponível estava em obras, explicou-me que a pensão estava sem electricidade desde as sete da tarde, e explicou-me que a casa de banho do piso que eu iria ocupar era comum e que só poderia ser utilizada a partir das oito. Perguntei se havia cama e ele demorou um pouco a responder, confessou-me que estava partida, mas que o chão era suficientemente largo para nele depositar o colchão. Pouco podia fazer se não aceitar estas condições. Ao longo do corredor havia garrafas de cerveja e vinho vazias, e beatas, que o empregado me explicou serem de uma despedida de solteiro que ali tinha decorrido, que os quartos estavam agora vazios mas que, quando os foliões regressassem, não me podia prometer o sossego que gostaria. Sorri e entrei no quarto sozinho. De facto em obras era uma descrição adequada. Uma das paredes está ocupada integralmente por um pequeno andaime, a janela não tem vidros, a cama tem os pés da cabeceira partidos. Optei por não tirar o colchão da cama e estiquei na alcatifa vermelha o meu saco-cama polar. Adivinhava algum frio com a janela assim aberta, mas não compreendo a razão da corrente de ar que atravessa o quarto como uma tempestade de neve. A luz da lua que aqui entra é tão forte que seria suficente para ler, mas estou cansado para pegar no Byron, e não trouxe mais nada. Suspeito que não dormirei grande coisa.

Ao ler estas linhas, o dono da pensão sorriu, arrancou a folha ao moleskine preto, colou-a cuidadosamente num papel e arquivou-o no dossier cuja lombada tinha escrito SÓ PRIMEIRA PÁGINA.

Gouveia

despesadiaria às 21:30
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Sexta-feira, 9 de Janeiro de 2015

 

Eu também não gosto de surpresas.

 

Quando a pilha de formulários empalideceu e a portada da janela à esquerda da secretária se fechou, a Menina M rodou na cadeira, pegou na mochila e saiu; rolou escada abaixo e terminou oficialmente a labuta saltando do penúltimo degrau para o trinco da porta do número 33. A espantosa manobra — dois tempos sustidos na atmosfera bolorenta — devia a majestosidade ao hábito, e o hábito devia-se ao mesmo vício que obrigava a Menina M a contar todos os dias o número de post-its amarelos que lhe restavam e a apontá-los num caderninho. Como noutra sexta-feira qualquer, roeu as unhas nos semáforos da Rua R, espremeu-se entre o caixote do lixo e a amostra humana do Beco B, e chegou à Avenida A com um suspiro. Estudou a posição dos ponteiros no seu relógio e não se surpreendeu com o atraso; quando ângulo obtuso já prendia alguns números, a Menina M recordava a sua pressa e estugava o passo.

Mas ao descer apressadamente a avenida, com o barulho dos saltos altos a cumprimentar as primeiras estrelas, reparou que a Senhora S, personagem tão habitual ali quanto o candeeiro eternamente fundido na distante Travessa T, se transformara num par de cães de porte médio. Os animais estavam presos por cordas à coluna na qual a pedinte se encostava, gemendo estilhaços e guardanapos sujos; as unhas compridas e amareladas dos bichos raspavam o cobertor encarnado onde antes se espalhavam as ancas da mulher. O fenómeno, uma verdadeira metamorfose, foi notado a dez unidades de distância. A Menina M parou e bebeu todos os instantes da descoberta como se bebe um xarope para a tosse: os traços abaulados da pedinte refletiam-se na barriga protuberante dos cães; o tom pardacento do pelo não deixava esquecer o cocuruto desgrenhado que costumava estender o copo sujo a quem passasse; humana e animais partilhavam a mesma expressão indolente que todas as pessoas felizes encaram como sofrimento. Era impossível de ignorar. A Menina M agarrou-se ao peito. Sentia labaredas nos pulmões. Um pulsar frenético fazia vibrar a pele do pescoço; deitou os dedos ao pulso, tentou a matemática mas os números perdiam-se nos caracóis encrespados dos cães. Não conseguia deixar de olhar para eles, para o bafo quente que desenhava fractais no espaço.

Finalmente, o horror a puxou-a dali numa corrida, mas o atraso culminou na fuga do comboio: os ponteiros uniram-se e a composição partiu com o eco dos seus passos no fundo do terminal. Dali a vinte minutos, outro se lhe seguiria; a cadência pontual da Linha L não se deixa perturbar por mulheres que se transformem em cães, nem por cães que se transformem em mulheres. Um sinal: tudo iria correr bem. No dia seguinte, a Menina M já saberia ignorar os cães.

 

S. White

despesadiaria às 21:36
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Quarta-feira, 7 de Janeiro de 2015

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Para com os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial que inclui o refluxo de um íntimo globo de vento e água, e o derrame, à força de gritos e empurrões, de uma lisa conversão de elementos acústicos em visuais. Por exemplo, as costas dos dois canos entrelaçados como os peixes do zodíaco (oco um, maciço outro) estão decoradas com estranhos afrescos didáticos: a ciência impõe uma composição rígida da morte, controles que parecem convergir para um amontoado de tabus que não correspondem a um conceito romântico da paisagem; uma paisagem capaz de engolir inteiros os sistemas e a repetição de um ritual que cai como uma pedra no fundo de cada algarismo, e ao meio do qual logo sobrevém algum facto, cada vez diferente, que o interrompe e entreabre como pequenas janelas que perfuram em duas filas de paredes (mas nunca externamente porque fora delas não há pretexto) essa trincheira fonética da qual sobe uma variedade de relações cromáticas e hipóteses franzidas (espécie de crise da normalidade), mas sem nenhuma solicitação ao típico.

 

Peor

despesadiaria às 10:02
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Domingo, 4 de Janeiro de 2015

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Andavam às voltas pela serra há mais de dez horas quando decidiram parar. Se o javelim não tinha aparecido até então, também não seria entre duas sandes de couratos que o sacana haveria de  manifestar a sua até então hipotética existência. Hipotética é como quem diz, porque ter sido Ambrósio o eterno bêbedo o único a avistá-lo não deixava ninguém convencido. Mas também ninguém se esquecia do que tinha acontecido oito anos e três meses antes, quando a falta de crença na velha Palmira - que disse ter visto a besta entre os repolhos - resultou no desaparecimento de três crianças da aldeia.

Júlio aponta para a grande pedra de granito negro e senta-se, convidando Ramira a imitá-lo. Ficaram de bater o lado norte do monte Cipálio, outros andam por outros pontos cardeais, ou pelo menos foi isso que prometeram ao clero local, na figura do abade Constantino. Na verdade, Júlio está bem mais preocupado em impressionar Ramira do que em encontrar a besta. É uma coisa antiga, mais ninguém partilha o fascínio por aquela solteirona a entrar nos 40. Não por falta de beleza, é certo que a rapariga tem os seus dotes, mas talvez hábitos como o de pendurar no alpendre de casa as peles dos gatos que ousam saltar os muros tenha algo a ver com essa repulsa.

Agora são quase seis da tarde, só haverá mais uma hora de sol e Ramira não tem muito tempo a perder.

"Vamos lá despachar isto", diz enquanto desabotoa os botões de cima da camisa de flanela, ciente de que realiza um desejo antigo daquele antigo colega da antiga escola primária. E é a visão de dois corpos nus sobre o granito que faz o javelim ensandecer novamente.

Desta vez foram dois adultos. O título do Semanário dos Montes não tem muito de apelativo, mas a edição está esgotada mal sai da gráfica. Que raio de bicho será esse javelim?

DoVale

despesadiaria às 23:41
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Sexta-feira, 2 de Janeiro de 2015

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CRESO E O DESTINO, por Lev Tolstói*

 

Nos tempos antigos – antes, muito antes da chegada de Cristo – reinou sobre determinado reino um grande rei chamado Creso. Este monarca possuía infindáveis reservas de ouro e prata, e numerosas pedras preciosas, bem como incontáveis soldados e escravos. Na verdade, ele acreditava que em todo o mundo não podia existir um homem mais feliz do que ele próprio.

Certo dia sucedeu estar de visita ao reino de Creso um filósofo grego, de nome Sólon. Por toda a parte Sólon era conhecido como homem sábio e justo; e, tendo a sua fama também chegado aos ouvidos de Creso, o rei ordenou que o sábio fosse conduzido à sua presença.

Sentado no alto do seu trono, e ornamentado com as suas vestes mais luxuosas, Creso perguntou a Sólon: “Já alguma vez viste algo mais esplêndido do que isto?”

“Com certeza que já vi”, respondeu Sólon. “Pavões, galos, e faisões, resplandecendo de cores tão diversas e brilhantes, que nenhuma arte se pode comparar a eles.”

Perante esta resposta Creso ficou em silêncio e pensou para si: “Uma vez que isto não é suficiente, deverei mostrar-lhe algo mais, para o surpreender.”

Assim, exibiu todas as suas riquezas perante o olhar de Sólon, ostentou-lhe o número de inimigos que destruiu, e ainda o número de todos os territórios que conquistou. Depois disse ao filósofo:

“Já tens uma longa vida neste mundo, e já viajaste por muitos territórios. Diz-me quem tu consideras ser o homem vivo mais feliz?”

“Creio que o homem vivo mais feliz é um certo homem pobre que vive em Atenas”, respondeu Sólon.

O rei ficou perplexo com esta resposta, uma vez que estava certo que Sólon iria nomeá-lo a ele próprio; todavia, apesar de tudo o que lhe fora exibido, o filósofo nomeou um indivíduo perfeitamente desconhecido.

“Por que razão afirmaste tal coisa?” perguntou Creso.

“Porque,” respondeu Sólon”, “o homem a que me refiro trabalhou arduamente toda a sua vida, satisfazendo-se com pouco, criou filhos sãos e esplêndidos, serviu a sua cidade de forma honrada, e conquistou uma nobre reputação.”

Ao ouvir esta resposta, Creso exclamou:

“E julgas a minha felicidade como nada, e consideras que não sou apto a ser comparado com o homem de que falas?”

Ao que Sólon respondeu:

“Não raro acontece que um homem pobre é mais feliz do que um rico. Não chames feliz a um homem antes da sua morte.”

Desta feita o rei mandou embora Sólon, dado que não ficara agradado com as suas palavras, nem tampouco acreditara nele.

“Às urtigas com a melancolia!” pensou ele. “Enquanto um homem viver ele deverá viver para o prazer.”

E com isto o monarca esqueceu rapidamente Sólon.

Não muito depois deste encontro, um filho do rei feriu-se a si próprio, por acidente, durante uma caçada, acabando por morrer devido ao ferimento. Nessa mesma altura, Creso foi informado que o poderoso imperador Ciro aproximava-se para invadir o seu reino.

Assim, Creso preparou-se com um grande exército e foi ao encontro do invasor, mas o inimigo provou ser mais forte, e, saindo vitorioso da batalha e tendo esmagado as forças de Creso, penetrou na capital do reino.

Logo de seguida, os soldados invasores começaram a pilhagem de todos os tesouros reais, chacinando os habitantes, saqueando e incendiando a cidade. Um dos soldados capturou o próprio Creso, e quando estava prestes a trespassá-lo, o filho do rei lançou-se para defender o seu pai, gritando:

“Não lhe toques! Este é Creso, o Rei!”

Perante isto os soldados prenderam Creso, e levaram-no até ao Imperador; porém, como Ciro estava no banquete de celebração da vitória, não podia falar com o prisioneiro, e ordens foram dadas para que Creso fosse imediatamente executado.

Para esse efeito os soldados erigiram no centro da praça da cidade uma grande pira, onde colocaram o Rei Creso, preso a uma estaca, e de seguida atearam-lhe fogo.

Nesse momento Creso contemplou todo o seu redor, a sua cidade e o seu palácio. Aí recordou-se das palavras do filósofo grego, e, banhado em lágrimas, apenas conseguiu dizer:

“Ah, Sólon, Sólon!”

Estavam os soldados rodeando a pira quando o Imperador Ciro chegou em pessoa para assistir à execução. E enquanto se aproximava ouviu as palavras pronunciados por Creso, mas foi incapaz de as compreender.

Ordenou, assim, que Creso fosse retirado da fogueira, e perguntou-lhe que palavras eram aquelas que acabara de dizer. Creso respondeu:

“Eu estava somente a pronunciar o nome de um homem sábio – um que me contou uma grande verdade – uma verdade cujo valor é superior a todas as riquezas terrenas, superior a toda a nossa majestosa glória.”

Creso acabou por relatar a Ciro toda a sua conversa com Sólon. A história tocou de tal maneira o coração do Imperador, consciencializando-o que também ele não passava de um mero mortal, e que não podia conhecer o que o Destino tinha reservado para ele. No final teve clemência para com Creso, e tornou-se seu amigo.

 

 

*Esta é uma tradução livre, da minha responsabilidade, do pequeno conto de Tolstói sobre o encontro do Rei Creso com Sólon, a partir das Histórias de Heródoto. 

 

nev

despesadiaria às 12:46
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Quinta-feira, 1 de Janeiro de 2015

 

Roupa Velha

 

Ao fim da manhã, depois de trazerem da sala os últimos estilhaços da consoada, vazando os doces e as carnes frias para sacos de plástico e deixando o resto da sopa esvair-se pelo sugadouro num remoinho de ovos de carpa e alcachofras moídas, as duas mulheres puseram três cadeiras à volta de uma mesa com três pratos e começaram a preparar o convidado.

Decidiram, sem consulta mútua, seguir a receita tradicional. À luz de velas a bruxulear em candelabros, uma dela incinerou folhas de alecrim e poeira de gatos defuntos em brasas vivas e passou o defumador pelos quatro cantos da cozinha, descrevendo um x em nevoeiros breves. A outra posou ao centro um alguidar com água de charco onde deitaram cruzes feitas de junco. Discordaram uma única vez, sobre as palavras correctas e a respectiva ordem.

«A oração de Santo Adrião? Não é isso que lá está escrito.»

«Não faz diferença. O importante é a qualidade da cera.»

Utilizaram velas de aniversário. Derreteram-nas num caldeirão e despejaram a papa no alguidar. Passaram quatro horas antes de o líquido começar a borbulhar, vomitando golfadas pálidas. A figura emergiu – ao princípio, apenas uma cabeça desgrenhada (oito folhas de erva do quintal, o melhor que conseguiram arranjar), um ombro nu e liso, meio braço, meio tronco arrepiado. Uma delas tocou ao de leve no ombro com uma lasca de ardósia. A figura estremeceu, mas continuou a ganhar contornos e opacidade.

«Queremos que tenha olhos?»

A outra riu-se. Era uma piada antiga entre ambas.

«Mas desta vez podemos querer conversar.»

Com um aceno de concordância, a outra estendeu o indicador e traçou um golpe horizontal na cabeça da figura. Um vergão rosáceo ondulou no sítio onde viria a formar-se uma boca. As duas mulheres suspiraram ao mesmo tempo e sentaram-se em cantos opostos da cozinha, admirando a confecção, e aguardando serenamente que aprendesse a falar.

 

Alice G.

 

despesadiaria às 19:58
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