Notas de uma festa de aniversário*
O brilho insolente da esclerótica não basta, por isso eu explico: quando tenho um livro na mão, toda a gente feita de carne me aborrece; aliás, se eu tenho um livro na mão é porque toda a gente feita de carne me aborrece, e o livro aberto surge como alternativa ao arremesso de cuspo. Uma boa alternativa, porquanto os elementos boca e língua prevalecem (ler em público é como deitar a língua de fora), embora apenas como backing vocals. Um dia serão estrelas, prometo(-lhes), mas por ora convém que componham a máscara do que é funcional, tornando-se eles próprios funcionais; o funcional (também referido pelo meu terapeuta como socialmente aceite) serve-me bem, leva-me a festas onde há cestas fartas em gressinos que só pecam por estar longe da poltrona azul onde me encontro — a ler.
O que eu queria era que me deixassem ler em paz. Ler vai além dos movimentos de sacada ou das migalhas de gressino entre páginas; a minha sobrancelha levanta-se para pedir que respeitem um dos principais responsáveis pela minha esperteza cretina, que é simultaneamente espada e escudo. Mas em vez de respeito, há uma velha não totalmente grisalha a espetar os cotovelos no topo da poltrona azul, de modo que a minha cabeça é forçada contra as páginas numa corcunda; a sombra do candeeiro de pé desce até ao meu bigode louro, como a máscara de um vilão, e a minha expressão fica ainda mais carrancuda.
— Tu tens sacos do pão? — Só percebo que esta pergunta me é dirigida quando a oiço repetida pela segunda vez; e vinda de quem mos oferece anualmente, só à terceira repetição identifico a expectativa despropositada com que a resposta é aguardada. Sim! Tenho tantos sacos do pão, todos iguais, todos inúteis. Sim; e de que me servem esses saquinhos de pano, com flores bordadas em ponto-tremelique, se ainda há dias levei a mão à base do pescoço e, ao sentir as curvas lentas das clavículas, as ouvi dizer que não gostavam de pão? Sou uma jovem em idade fértil. Faço zumba, abano-me com espinafres, sou intolerante ao glúten ante marcação; isto na minha mão é um gressino porque eu devoro as emoções, enquanto o coração escuta o paso doble do desespero, e o desespero é uma velha que não se cala. Ter sacos do pão não chega? Não. Aqueles cotovelos afundam-se ainda mais na almofada traseira da poltrona e temo ficar marreca para sempre. O pavor da deformação permanente ativa os mecanismos somáticos e o livro escorrega nas minhas mãos. — E aventais, tens aventais? — Sei bem que fechar o livro é admitir a derrota. — E lençóis? A tua outra avó ainda te faz lençóis? — Mas a derrota é inevitável.
A mesa da cozinha está repleta de insultos à modernidade; a primeira ofensa vem logo da fartura, tão evidente que incha as meninas dos olhos, desperta movimentos orelhudos e redobra a produção de saliva. A comida é a festa e a festa é a comida. Todos sabemos dos preparativos do meu primo para se trancar num armário alto e de lá sair feito homem. As puberdades, ou qualquer outro tipo de translação, não se comemoram pelo seu caráter excecional; crescer não é grande mérito: é uma inevitabilidade, uma decorrência da lei da causa-efeito, onde a causa é o sol e o efeito é a degradação da matéria. Estamos aqui reunidos pelo bodo. Os convidados rodeiam a mesa com referência, enfeitiçados pelos reflexos gordurosos dos enchidos e pelos vapores de açúcar que se desprendem das sobremesas com a violência de geiseres; quem, do corredor gelado, antevê a mesa, escuta imediatamente as sereias, e é com gosto que se afoga na abundância.
Como outros antes de mim — os pioneiros, os sacerdotes, os responsáveis pela cerimónia de encertamento à qual faltei por estar a ler —, sei que não tenho fome. O que me aproxima da mesa é o cumprimento do ritual. A abertura faz-se de faca e queijo na mão. Cantam-se os enchidos e os salgados. Um pastel de bacalhau entala-se nos dentes por acidente e sinto a formação de três coágulos na minha perna esquerda. Geba e manca, clamo o consolo do açúcar; eis as suas formas: arroz doce, tarte de natas, panna cotta, pudim de ovos, mousse de chocolate, bolo de mousse de chocolate (quando se deriva um bolo de chocolate, retira-se-lhe a farinha e fica xis igual a papa de cacau açucarado); e todas estas formas, num terço da porção normal, ocupam à vez uma taça de plástico branco. Assim se diz a oração do excesso. Assim se celebra.
E o que eu queria era que me deixassem celebrar em paz. Mas, aliado ao usufruto do basto banquete, vem a conversa de circunstância. Não só não quero cuspir as sobremesas como continuo a não poder fazê-lo; a palavra funcional escreve-se no caramelo do pudim — sim, logo no pudim! Eu gosto e não gosto muito de pudim. Há qualquer coisa na consistência do pudim-objeto que me confunde, um dilema estilo trinco-ou-não-trinco, faço-ou-não-faço. Para a maioria das pessoas, um pudim é um pudim, mas como na minha primeira infância o pudim-objeto e o pudim mandarim eram uma só entidade indissociável, quando vi pela primeira vez um pudim-objeto-não-mandarim não soube o que pensar dele. É certo que poderia encará-lo como uma gelatina (é esse o protocolo perante o pudim mandarim), mas aparência rugosa dos pudins caseiros aproxima-se mais de uma esponja, ou da superfície da lua, ou de uma face calejada pelo acne do que de uma gelatina. O pudim-objeto é um enigma;
quem és tu, pudim,
desfeito na minha boca,
o teu rasto doce enjoa-me,
perdoa-me, mas tenho que ir
comer um bocado de queijo.
Por outro lado, o pudim enquanto palavra encanta-me porque começa nos lábios juntos, bem franzidos e maldispostos, para acabar numa sílaba clara e alegre, como uma campainha. Pudim, pudim, pudim…
e, de repente, o tempo solidifica: vejo-me refletida nas quadriculas de vidro da porta aberta; cedendo às circunstâncias, oiço a minha voz vir de dentro e de fora; quando a última sílaba do último pudim acaba de vibrar, estou a explicar porque é que é possível ter a menopausa sem útero a mulheres que há pouco mais de dez anos me explicavam o que era um útero. Falo para um auditório composto por três cadeiras encostadas a uma parede; nelas se sentam as comensais, as tijelas das comensais e o arroz doce das tijelas das comensais, sincronizadas na regra e na ignorância como um coro de beatas. Observam com tento o movimento dos meus lábios e sabem que, no fim, não estarei disponível para lhes esclarecer as dúvidas.
— Escreves-me aqui a receita da tua mousse de chocolate? — E à pergunta inocente esta avó acrescenta um miga, a forma preguiçosa de amiga que me arrepia os caracóis do pescoço e reveste todo o pedido de falsidade. A minha letra exibe uns ângulos estranhos. Os ovos ficam cúbicos; há seis claras para bater em vez das cinco habituais, mas reparo no erro tarde demais para o emendar. Deixo-o partir naquela folha, e a folha é segurada pelas mãos, e as mãos descansam contra a barriga, e a barriga espeta-se em direção ao corredor, e o corredor vai dar à cozinha. — Obrigada — estala a marreca. — Anda, vamos cantar os parabéns.
Volto para a cozinha, onde ocupo um canto forrado a azulejo. Abre-se uma clareira na ponta norte da mesa e os convidados reúnem-se para observarem a descida do bolo à mesa; ali vem ele, num tabuleiro de plástico colorido: um pão-de-ló paralepipédico, recheado de e coberto com leite creme instantâneo. É o bolo de aniversário mais feio que já vi; simples, sem os berloques açucarados da moda — evita-se assim o confronto entre primos apreciadores de massapão, ambos egoístas por educação e protocolos geracionais comuns. No centro do bolo, traçando uma diagonal como quem vai para Santarém, a mestre de cerimónias, mãe do aniversariante e dona de todos os armários da casa, espeta duas velas da esquerda para a direita. O meu primo é agora mais velho do que eu era quando ele nasceu. Parecia uma ratazana cor-de-rosa embrulhada em lã azul; para não ser obrigada a pegar-lhe ao colo, eu chorava mais alto do que ele.
Ninguém sabe cantar com as luzes acesas. As luzes apagam-se; descubro que também não sei cantar com as luzes apagadas, mas os outros pigarreiam, preparando as goelas para a solene ária. Fico escondida nas saias da minha mãe enquanto as vozes se unem numa balada cacofónica; as mais antigas vibram exageradamente, como se batessem nos pilares de um altar e voltassem para trás, ziguezagueando entre os bancos; antecipo o momento em que se separarão, no verso personalizável da cantiga. Acontece sempre: depois das almas cantarem, há os que se dizem o nome do menino num sopro apressado e os que se demoram; os primeiros ficam de boca aberta, como peixinhos, à espera dos segundos, que tomam o gosto a cada sílaba. Acho que é na confusão deste momento que se envelhece.
O que eu queria mesmo era deixar estas pessoas em paz. Mas elas insistem em sorrir para mim, com a cara cheia de bolo; o meu primo oferece-me uma fatia que não quero comer; o meu tio procura-me com dois dedos de Jameson num copo largo. Espanta-me a capacidade que estas pessoas têm de gostar de mim. Temos pouco ou nada em comum além de um nariz pequeno e de uma noção adulterada do funcional.
A família é o verdadeiro lugar estranho, tão surpreendente e eufónico quanto o pudim.
*A palavra pudim aparece repetida dezanove vezes (agora vinte).
S. White
Partenon
Estilóbata, fuste, coxim, ábaco, arquitrave, métopas e tríglifos, cornija e frontão. De baixo para cima, ao som da concertina, eis os elementos do templo dórico que Aníbal Éter, ao torresmo do sol, viu com os que a terra há-de comer. Dizem que o mármore do Monte Pentélico com que foi construído o Partenon se incendeia com reflexos de ouro à luz do amanhecer, mas o nosso intrépido turista não chegou a tempo de comprovar a veracidade de tão bela descrição. E se lhe chamo “intrépido turista”, tal não se deve a nenhuma tendência para a ironia da minha parte (que desde já afirmo ter), mas à necessidade de encontrar um termo de equilíbrio entre o turista apalermado, fase da qual o nosso personagem já tinha saído, e o seguro viajante, fase à qual o nosso personagem ainda não tinha chegado. Claro que isso o chateou, deveria ter planeado as coisas de forma a não perder a alvorada na Acrópole. Sabia que a força do impacto da primeira visualização de um monumento, de um local, ou de uma pessoa, é sempre decisiva para os caprichosos sentidos. A sensação de gostar ou não gostar de algo tão concreto como a Fontana di Trevi pode depender de pormenores tão subtis como o ângulo de aproximação na primitiva abordagem. Federico Fellini sabia disso. Aníbal Éter também mas, nesse helénico dia, descuidou-se. Acabou por se desculpar com a imprevisibilidade dos comboios gregos, empurrando a falha para terceiros. Pior do que as coisas más que acontecem a um ser humano são as coisas más que acontecem a um ser humano sem que este consiga culpar outros seres humanos. Felizmente, a falha não acarretou consequências de maior; o encanto deu-se na mesma. Talvez o Partenon, ao contrário de algumas pessoas, nunca sinta a angústia de precisar de uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão.
Os templos dóricos são despidos de partes supérfluas. Pelo menos eram estes os ensinamentos dos livros de História da Arte que Aníbal Éter metodicamente desorganizava por toda a casa com o objectivo de impressionar as esporádicas visitas. Claro que o edifício que estava à sua frente (chamemos-lhe edifício para facilitar) se encontrava despido de quase todas as partes, fossem supérfluas ou essenciais; mas isso era fruto do camartelo temporal e não de lapsos dos projectistas. Tentou imaginar o já inexistente todo, procurando redundâncias ou inutilidades. O ábaco e coxim formando o capitel; o fuste e o capitel formando a coluna; as métopas e os tríglifos formando o friso; a arquitrave, o friso e a cornija formando o entablamento; tudo isso formando a fachada. É verdade que alguns elementos, como os capitéis que encimam as colunas, pareciam servir interesses estéticos. No entanto, antes desse honroso servilismo, tinham a essencial função mecânica de transmitir aos fustes, com graciosidade, todo o peso da cobertura. Não eram, pois, dispensáveis.
Diante da monumental ruína, lembrou-se do seu lar, e concluiu que os labores construtivos não tinham sofrido mudanças tão acentuadas como se podia pensar à primeira vista. Tamanhos à parte, o que de essencial se tinha alterado entre a época de Fídias e a época de Mestre Ramiro, encarregado da empreitada da casa dos seus pais? É verdade que no tempo do Mestre Ramiro, que era também o seu, as arquitraves se chamavam vigas e as colunas eram conhecidas por pilares, mas a forma como toda a descomunal massa ia sendo descarregada do topo da cobertura até ao terreno firme da implantação era extraordinariamente semelhante. As dúvidas percorriam a cabeça do nosso “intrépido turista” com a velocidade de uma quadriga grega. Quantos anos tinha demorado aquela construção? E quantos mortos?, num tempo histórico duro, pré-higiene-e-segurança-no-trabalho. Teria o supervisor Fídias exigido aos Arquitectos responsáveis relatórios regulares? E Aspásia?, a muito polémica amante de Péricles, conhecida pelos seus cabelos de ouro e pelo seu pé arqueado. Qual a sua importância no sonho partenoniano do estadista? A fortuna por este gasta em obras públicas era reveladora da existência de momentos de alguma falta de juízo. E Aníbal Éter sabia que não existia nada como mulheres de pé arqueado para desajuizar os homens.
A problemática do tino, ou da falta dele, atormentava-o regularmente. Aníbal Éter considerava-se um atinado com azar, não por ter nascido numa nação de desatinados, mas por ter nascido numa nação de desatinados, sem a coragem necessária para se aproveitar dessa situação. Tinha a noção que num país constituído maioritariamente por desajuizados existiam duas grandes opções para aqueles que não o eram: abandonavam qualquer desígnio de irrepreensibilidade moral e tentavam retirar ganhos da falta de juízo dos outros, ou, desejando manter altos níveis de decência, aceitavam a neurose que mais tarde ou mais cedo lhes bateria à porta. Infelizmente, pensava ele, o aproveitamento pessoal da falta de juízo dos outros era, em si mesmo, um acto desajuizado, pelo que, existindo incompatibilidade entre a natureza dessa opção e a natureza da pessoa com juízo, era muito mais provável a existência de desajuizados que obtinham ganhos do juízo de terceiros do que a existência de ajuizados não neuróticos. A esta injusta incongruência dava o nome de “Paradoxo do Ajuizado sem Juízo ou: como tentei aprender a parar de me preocupar e a amar ser idiota, e falhei”.
Era também visitado, a quase toda a hora, por pensamentos relacionados com o dinheiro, mais propriamente pela problemática moral do desperdício. Educado no respeito pelas virtudes da poupança e da frugalidade, esforçava-se afincadamente para amenizar esses princípios, pois julgava-os, nesses optimistas anos do final do século, antiquados e totalmente desencontrados com o ar do tempo. No entanto, sem surpresa, o conservador que era impunha-se quase sempre ao progressista que gostaria de ser, e a continuação do passeio pela Acrópole transformou a sua mente no ringue a que já se habituara.
O combate do dia era um dos grandes clássicos: no canto esquerdo e usando calções vermelhos, a inclinação estética que cultivava; no canto direito e usando calções azuis, o utilitarismo que lhe corria no sangue. A estúpida e impertinente pergunta pairava, aos seus olhos, em todas as pedras: qual tinha sido o benefício concreto de tão colossal e dispendiosa obra? Tentou desculpar-se da mesquinhez do pensamento com algumas lendas históricas igualmente mesquinhas, nomeadamente aquelas que faziam notar a resistência dos concidadãos de Péricles ao seu projecto megalómano. Lembrava-se de ter lido acerca de uma pequena matreirice usada pelo governante para conseguir a aprovação dos atenienses: percebendo que as reticências à construção do Partenon estavam relacionadas com dinheiro, Péricles anunciou que financiaria a obra do seu bolso. Em contrapartida, seria o seu nome e não o de Atena a decorar o frontão. Espicaçados pela inveja, logo lhe autorizaram o gasto público por forma a impedir a glória privada.
“Felizes os que nasceram antes do there is no such thing as public money”, pensou Aníbal Éter em jeito de louvor às virtudes da ignorância, “mas muitos devem ter ficado com os pés de fora para que outros pudessem cobrir a cabeça”. A manta curta, sempre a parábola do dinheiro como manta curta a condicionar a sua, se assim lhe podemos chamar, moral monetária. Brincando com as palavras, podemos dizer que se consumia com as decisões de consumo! Consumição inglória e injustificada, visto que não era verdade que as mantas curtas (ou o dinheiro) só permitissem cobrir a cabeça destapando os pés ou cobrir os pés destapando a cabeça. Com criatividade e uma tesoura, era possível cortar a manta ao meio e, deixando a cintura destapada, utilizar uma das metades para cobrir os pés e a outra metade para cobrir a cabeça. Ao nosso Aníbal o que lhe faltava, verdadeiramente, era a imaginação.
Aníbal Éter
Para quê, pois, então, logo, dizer o que quer que fosse se, não sendo o assunto da minha conta, correria o risco de que ela, a conta, me viesse parar ao regaço. Desce agora a rua, ela, não a conta, a tentar conter as lágrimas, os soluços a tentarem retirar-lhe do corpo a correria. A continuar assim, ainda se esbardalha de encontro a um poste das linhas do trólei. E se dói ir de encontro a um poste das linhas do trólei, embora menos do que a que a leva. Desviou-se. A velha ficou a olhar e agora vai atrás dela, não da conta, que, repito, não é minha, que, por sinal, já me saiu do campo de visão. Às tantas ainda vai ter de aturar a velha e as suas tentativas de ajuda, agora que tanto precisa, não de ajuda, mas de ajudas de custo. Sempre a conta, e fora dela um vazio de sábado à noite.
E.
um prejuízo do tamanho da Mónica - (07)
Pude ver o carro passar bem devagar, parando na ponta do estacionamento. Desembrulhei o canudo do plástico e enfiei metade dele dentro da lata de refrigerante. O motorista do carro continuou sentado lá dentro, como uma mosca perto do bolo, mas sem coragem de pousar.
O lugar ficava na altura de Acuocho, numa marina da Intralitorânea. Lá fora, uma sirene tocava de meia em meia hora e a ponte era levantada, deixando passar os rebocadores.
Eu tinha passado a noite no furgão de entregas. Mastiguei metade do pastel de carne com um gole de Seven Up sem tirar os olhos do relógio em forma de leme pendurado na parede. À direita, subida a escada, havia um terraço com toldo onde um gajo podia sentar, beber alguma coisa e ficar olhando os barcos passarem. Fora isso, era um bar como qualquer outro, com um monte de detalhes de plástico a imitar madeira.
Estiquei mais a perna direita debaixo da mesa. Sentia que o cansaço tinha endurecido dentro de mim como um pedaço grande de merda que eu não conseguia mais cagar. Tinha conseguido atravessar metade do país, com todos os álibis na moita. A inteligência a fazer bip! bip! como uma buzina de carro para sairmos da frente. Saber a hora de sair da frente... bom, talvez seja mais do que uma questão do que eu posso fazer por mim. Mesmo assim, é preciso ter muito cabelo no saco para não se preocupar com o fato de que tudo pode cair em cima da gente sem ninguém berrar “madeira!”.
Quando saí pela porta do Asteca, acompanhando o tráfego na direção da alfândega, aquele assobio abaritonado tocava de novo, fazendo o pessoal todo se mexer nas docas. Virei a cabeça para os dois lados e atravessei um pouco diagonalmente para evitar os crioulos que sempre ficavam por ali como que a desafiarte a fazê-los sair da frente.
O gajo tinha apoiado a cabeça nos braços em cima do volante. Dei uma pancadinha seca no vidro e ele destrancou a porta do passageiro.
Olhei para o banco traseiro. Sabia que embaixo da toalha tinha uma espingarda calibre 12, novinha, de cano azulado, com uma águia em pleno vôo gravada na madeira do cabo. Isso foi perto da entrada do canal. Podíamos ver a ponta de um dos navios, com o nome Amoringa mal dando para ler no casco enferrujado.
O tipo ficou de frente para mim. Ele parecia agitado, como se tivesse um sistema nervoso todo do lado de fora. Passou várias vezes a ponta dos dedos naquele bigode estilo bandoleiro, depois enxugou uma das mãos nas calças e tirou de debaixo da coxa um papel dobrado com o número anotado a lápis. Disse que a coisa toda já estava a ser diferente da que eles tinham combinado, com todo a gente a querer levar o seu antes da hora.
– Sabe quanto tá a valer um container em Porto Velho?
– Diz pra mim – ele disse.
– Setenta e cinco por cento mais.
– Então melhor ficarmos longe de lá, não achas?
– Na hora de comprar, pode ser. Mas depois.
– Depois não é problema nosso.
Coloquei o papel no bolso, e fiquei a olhar o painel do carro, bem no pedaço em que o adesivo da prefeitura comçava a descolar.
– O que é que queres que eu diga pra ele? – perguntei.
– Que diferença faz?
– Imagino que pra ele ia fazer uma diferença.
– Escuta, isto não é como se tu e o Bielo tivessem ficado bêbados e saíssem pra assaltar um posto de gasolina.
Um barco a puxar barcaças vinha da ponte na nossa direção, sem fazer um único ruído; era uma embarcação curta e larga, lembrando um rebocador, só que muito mais alta.
– Vais ter que arranjar outro jeito de levar vantagem, de conseguir mais do que os teus cinco por cento.
– É. – eu disse, a destravar a porta.
– Ei, – ele falou – não preciso dizer pra usares um telefone público.
– Quais são as chances dele concordar?
– As mesmas da porcalhona da tua mãe aparecer agora ali no capô a cuspir sidra pelos ouvidos.
Peor
um prejuízo do tamanho da Mónica - (16)
Pelon ficou sentado, com uma parede de monitores de TV às costas. O magrela esperou até que ele olhasse para eles.
– Nunca limpam esse lugar?
– Passamos uma água toda semana, como no zoológico.
O magrela esperou, enquanto Pelon mordia a unha, como um puto a olhar para o pai que lia o boletim da escola.
– Traz ela até aqui – eu disse.
Ele pegou as chaves do canil e, antes de sair, disse:
– Sempre confiei em ti e quero muito acreditar que posso continuar a confiar.
Pela janela pude vê-lo, mais perto agora da casa do que do canil. A porta ficara aberta o tempo todo, Pelon ergueu a mochila com uma das mãos, a apontar com a outra.
– Está aqui! – ele disse. Depois entrou com ela e largou aquilo no sofá. Tive a impressão de que era uma cerimónia, todo a gente ali de pé, a esperar. O caipira pegando a mochila na mão, avaliando o peso.
– Agora esperas lá fora – ele disse para mim.
Não olhei para Pelon antes de sair.
Fiquei encostado no carro. Quando eles saíram, perguntei:
– Como é que Pelon ficou?
– Acho que vai precisar de um transplante de rosto.
Peor
um prejuízo do tamanho da Mónica - (15)
Não trocamos nenhuma palavra. O magrela ao volante e o crioulo no banco de trás, ainda com a gaze enrolada num dos punhos.
Fiquei a imaginar se Pelon não se borraria quando visse aqueles gajos.
Um carro da polícia passou por nós com a sirene aberta, as luzes do teto a piscar. O gajo mantinha os olhos no tráfego à frente, por cima do capô vermelho, a franzir os olhos na claridade dos faróis que subiam a Heron Campos.
– Então, – ele disse – vais me contar ou manter em segredo?
Eu não respondi, mas olhei para ele.
– Pareces bastante calmo sobre isso tudo. O que é que tem na mochila?
– Dizes a tua mulher o que fazes? – perguntei.
– O que eu faço? Queres dizer tudo? Qual é? Achas que eu quero levar um tiro com meu próprio revólver?
O crioulo estava a desenrolar a gaze do punho, desinteressado, quando escutou o outro dizer:
– Ei, escurinho, achas que o grandão, o Tisto, tem mais motivos do que nós para ficar com essa mochila?
O crioulo estendeu seu braço esquerdo sobre o encosto do banco e encarou o gajo pelo retrovisor.
– Começas a falar como aquele outro tipo, como se eu tivesse serragem dentro da cabeça. Vens com esse papo, a falar como se fossemos parceiros. Mas debaixo de toda essa merda, o que queres mesmo é o meu rabo, não é?
– É isso aí. – O magrela disse, dando uma risada. – tens de impor respeito ou tratar de encostar o rabo na parede. Se deixares botar a cabecinha, pode ter certeza que daqui a pouco vai estar tudo dentro.
O crioulo agora estava com uma touca de lã enfiada até os olhos. O seco a observar as placas na rua.
– Onde é que se entra para Valado?
– Na 170. É a próxima. Vá pela Ygartua.
Ele tirou uma das mãos do volante. Olhou o retrovisor e virou para a pista da direita.
– Meu deus, olha o nome dessa rua. Parece nome de cantor de calipso, não parece?
– E se não encontrarem a mochila? Vamos voltar de mãos a abanar, ou o que? – eu disse.
– Presta atenção, este não é o tipo de negócio que pode acabar num tribunal, sabes como é, entrar com uma ação. Tens que calcular de cabeça o quanto te vai custar se pisares na bola.
O relógio digital do painel marcava 12:48 PM quando avistamos o Hotel Estoril, ainda azul mas começando a desbotar.
– Estás a ver aquele estacionamento lá embaixo? Atrás do hotel? É só virar à esquerda e ir em frente – eu disse.
Ele depois abaixou um pouco mais o vidro da janela:
– Tens certeza de que é por aqui? Não quero meter o ombro na porta errada e deixar o maricas escapar.
Fomos margeando o canil, por um pátio ou campo de atletismo que se estendia à esquerda. Podíamos ver as gaiolas, a uns quinze ou vinte metros, num dos ângulos do campo.
– Pára por aqui – eu disse – de frente para a saída.
O caipira estacionou e mostrou a arma, uma merda de cano curto com a empunhadeira recoberta de borracha.
– Tá bem, vamos lá meter a mão.
Passei os olhos ao longo da varanda e vi Pelon com a camisa para fora da calça, a uns dez metros de distância. Achei que estava a vomitar, pelo modo como se debruçava. Parecia surpreso. O tipo de gajo que, se um dia pusesse os pés numa prisão, antes de cair a noite já seria mulher de alguém.
– Vai um pouco mais pra trás. Aqui não dá pra abrir a porta. – o crioulo disse.
Ele então começou a dar marcha à atrás e parou. Disse de dentro do carro, com Pelon em pé do lado de fora:
– Precisas consertar o portão.
Pelon se virou para olhar o portão, sem dizer nada.
– Sabes fazer isto, não sabes?
– Eu vou largar este trabalho. – Pelon disse, ainda a olhar para o portão.
O magrela concordou com a cabeça.
– É uma boa ideia.
O canil parecia um parapeito comprido com uma cobertura chata por cima, a cerca de cinquenta metros da casa.
– Que tal nos convidar pra entrar? – ele disse, já do lado de fora, a correr a mão pelo corrimão pregado à parede.
Pelon acenou com a cabeça, tratando de encarar as coisas objetivamente e percebendo que era capaz de aceitar o problema sem se perturbar demais.
– A primeira coisa que tens que contar a eles é algo que já sabem. Entendes? – eu disse, a olhar diretamente para Pelon.
– Ok – ele respondeu a segurar a porta para entrarmos.
Peor
um prejuízo do tamanho da Mónica - (14)
Eram quase nove quando chegamos. Estava a pensar que não me tinha preparado para isso. Sabia que Bielo tinha uma Glock debaixo do banco. Mas ele não quis entrar com ela.
– Vamos ter que esfolar esse gato de outro jeito – ele disse.
Então descemos do carro e andamos ao lado da grade o pedaço que faltava do estacionamento. Não havia chovido, mas o chão estava molhado como se o tivessem lavado. Passamos pelo luminoso do Uncle Ben’s e diminuímos o passo, tentando decidir o que fazer no caso de estarmos fodidos. Parecíamos dois idiotas que não sabiam o que procurar. Desviamos de alguns carros, tentando demonstrar que tínhamos um propósito, como se soubéssemos o que estávamos a fazer. Um velho com cara de merda terminou de se enfiar na vaga à nossa frente e continuou dentro do carro, a falar sozinho bem devagar, como se fosse dormir. Tínhamos às costas outro carro a subir a rampa na direção das vagas cobertas.
Paramos na calçada. Ficamos escutando o ruído da bola de basquete a bater no chão de madeira da quadra ao lado. Depois atravessamos a rua. Eu disse que gostava do Álamo, um edifício de esquina que parecia a Torre Eiffel cortada ao meio. Gostava do jeito que eles iluminavam o terraço. Bielo disse que nunca prestara atenção.
Mais adiante passamos por um gajo a soldar um portão. Bielo perguntou sobre o armazém Eldorado. O gajo apagou o maçarico, levantou os óculos e disse: “Aquele ali, com a porta pintada de amarelo na parte de cima.”
O prédio era todo de tijolos, com apenas dois andares. Subimos os degraus. Bielo falou depois que quase mudou de ideia parado em frente ao quadrado com o nome Depósito Eldorado esculpido em pedra na fachada do prédio. Mas aí já estava batendo e era muito tarde para recuar.
Um sininho tocou quando abriram a porta, e por trás do balcão de fórmica a primeira coisa que vi foi um espelho grande rodeado de lâmpadas amarelas. Perto do corredor estava uma dessas mesas de copa, com rodinhas, empurrada para o lado. E mais para o canto, as cadeiras eram como bancos de parque, ao longo da parede. Uma espécie de atendente estava a olhar para a parte de cima da parede. Ele nem se mexeu. Uma das suas mãos estava em cima da braguilha, como se estivesse prestes a tirar aquilo para fora e urinar. Estava na verdade segurando uma 45 niquelada, sem apontá-la para ninguém.
Esfreguei bem os sapatos no capacho felpudo para ganhar tempo e olhar em volta. Havia um monitor de TV montado no alto da parede, virado para baixo. Na tela aparecia alternadamente a imagem em preto e branco do estacionamento e da rua.
O preto que abrira a porta nos deu as costas e, atravessando a sala na direção do corredor, disse “por aqui”. Fiquei a olhar aquele cabelo trançado e penteado com força para trás. Depois a coleção de canecas de cerveja na prateleira, alguns bichos de madeira entalhada pendurados na parede. Tivemos de abaixar um pouco a cabeça para descer uma pequena escada.
Ali estavam os dois, na parte dos fundos. Tisto sentado numa cadeira de barbearia, parecendo um porquinho-da-índia. Na outra cadeira, um gajo grande com um jaquetão de marinheiro, botando uma touca que descia ajustado pela sua testa. Ambos falavam e davam risinhos ao mesmo tempo. O cheiro denunciava uma pintura recente, talvez uma tentativa de deixar o lugar mais apresentável.
Na direita tinha caixas de papelão empilhadas contra a parede. Na esquerda, ao lado de plantas de plásticos cobertas de poeira, havia um banco comprido de madeira adaptado em aparelho de ginástica e embaixo dele estavam dois galos de briga em gaiolas de arame, um deles com as pernas raspadas, muito machucado.
O gajo que abriu a porta, um crioulo com uma toalha sobre os ombros, sem nada por baixo, voltou a bater no saco de areia que estava pendurado no centro da sala.
– Ei Bielo – disse Tisto, ainda a rir e a apontar para o crioulo – olha só pra essas pernas. Se não tens pernas assim, não deves nem entrar no ringue, meu.
Bielo olhou para o negro a menear o corpo, esquivando, jabeando com as mãos protegidas com gaze. Depois olhou de novo para Tisto, ali sentado como a porra de um ursinho de peluche, com aquele cabelo liso riscado no meio.
Tisto continuou a olhar, como se estivesse a achar muita piada naquilo, depois se virou para o lado, para o gajo que levantou, tirou o jaquetão e sentou outra vez. Depois ele voltou a olhar o preto e disse:
– Então, Bielo. O que vai ser?
– Estou com um probleminha.
– Senta o rabo aí na cadeira e me dá um motivo pra me importar com isso, meu.
– Meu amigo aqui quer se livrar de vinte e cinco quilos. Eu disse que talvez possas poupar ele desse trabalho.
Um outro crioulo abriu a porta do lado e sem soltar a maçaneta disse:
– Inês não pára de ligar.
– Manda ela rodar a bolsinha. Mas que merda! Estamos divorciados há quatro anos e essa vaca ainda quer que eu a sustente.
Os pés do gajo nem tocavam o chão. Ele resmungou mais um pouco e depois literalmente saltou da cadeira; foi até onde uma iluminação laranja sem brilho mostrava o corredor. Fomos atrás. Dobramos à direita. Vimos Tisto tentar girar a maçaneta e depois a tirar um punhado de chaves numa argola do bolso do casaco e a esperar o crioulo passar por ele, espremido no corredor estreito, para abrir a porta.
Tentei caminhar em silêncio sobre o chão forrado de linóleo. O lugar tinha cheiro de mofo. A única luz, uma lâmpada de 50 watts, iluminava a pia, onde estavam pratos sujos, uma caixa de leite e um pacote de pão aberto.
Tisto olhou para a porta e depois virou na direção de Bielo:
– Posso dar toda a ajuda que precisar. Mas não quero surpresas. De onde veio?
– Que importância tem? – disse Bielo – Estamos interessados em saber é pra onde vai.
– Olha, meu, se estamos aqui a falar dos vinte e cinco quilos do Saviano é melhor irem vender essa merda no Pólo Norte.
Bielo encolheu os ombros com mais indiferença do que a que sentia. Ia falar alguma coisa, mas ouviu a descarga da retrete e parou. Olhou para a porta fechada que levava à casa de banho. Viu quando um tipo ossudo saiu lá de dentro a afivelar o cinto. O gajo usou o pé para tirar a porta da casa de banho do caminho. Vestia uma camisa floreada de mangas curtas. E, apesar da luz fraca, pude ver que tinha uma tatuagem no braço esquerdo dele – alguma coisa em preto e vermelho – mas não quis me esforçar para saber o que era.
– Olha, Bielo, eu vou dizer o que precisas saber e o que omitir não irá prejudicá-lo.
Tisto estava a agir como uma criança que sabe um segredo, louco para contar, mas querendo que alguém perguntasse primeiro.
– Sabe onde se encontra gente assim como ele? – Tisto perguntou, a apontar para o gajo. –Nas recepções do departamento de finanças da narcótico.
Depois ficou a esperar. Bielo devia perguntar o que ele andava a fazer em recepções de finanças da narcótico, mas não se deu ao trabalho.
– Quando é que ficamos amigos deles, Bielo? Queres saber?
O telefone tocou. Tisto atendeu, a apontar para uma cadeira com a outra mão. Bielo bateu o nó do indicador sobre uma escrivaninha vazia em frente ao sofá e continuou de pé.
– Quer ir ao Dome? – ele disse.
– Agora já estamos aqui.
– É, agora já estamos aqui – ele repetiu.
Quando o preto entrou, vestindo a t-shirt, o gajo da tatuagem virou o suficiente para ver a sala toda. Dando dois passos para trás, tudo o que desejava era manter o Bielo e eu juntos dentro do seu campo de visão. Tisto tampou o bocal do telefone um instante, dizendo para ele enquanto batia no copo: – Porque não serves mais um com aquelas azeitonas.
Andei até o sofá, estava cansado de ficar de pé. Bielo continuava lá parado, a tentar avaliar o que era mais importante, como se estivesse se dando uma escolha.
O gajo veio pelo balcão com o martini e o colocou no guardanapo na frente de Tisto. Tisto desligou. Tomou um gole do martini, pôs uma azeitona na boca, mastigou-a algumas vezes e depois tomou outro gole.
– Era o Saviano – ele disse. Depois fez uma pausa batendo no copo. – Por que é que não repetes a dose?
O gajo serviu rapidamente.
– Quer mais gelo?
– Não, assim está bom – virou a cabeça e continuou. – Percebes que tens um problema, Bielo, e que podes querer dá-lo a uma pessoa em posição de te prestar um favor. Afinal, do que é que o Calucho morreu?
– Do que quer que tenha sido não vais te contagiar.
– Muito bem, vamos bater em algumas portas.
Bielo franziu a testa, revirou os olhos, como se tentasse fazer sua memória funcionar.
– Escuta só isto, Tisto: era difícil pensar naquele tipo como homem de negócios. Tudo o que ele sabia sobre cocaína era cheirá-la. Então qual é o problema?
Tisto, depois de colocar seu martini sobre a mesa, puxar uma cadeira e sentar-se, perguntou:
– Já acabou?
– Ora, Tisto, que merda.
Tisto olhou para o gajo ossudo:
– Conta pra ele o que é que fazes.
– Eu faço companhia às pessoas que precisam – disse ele, desviando os olhos de Bielo para o sofá onde eu estava.
– Ah, é? Agora diz pra mim porque é que preciso perceber o que tu fazes?
– Porque eu vou acompanhar o teu amigo ali. Isso tem um significado pra ti, não tem?
Peor
Imperialogia
O funeral foi a pior parte. Um dever que logo se transformou em alucinação coletiva (e talvez tenha sido melhor assim). Hula hoops imaginários rodavam em torno dos braços moles do pároco da vila: nas suas trajetórias geminadas víamos o infinito; fungávamos a cada volta completa, mas não era de tristeza — ou, pelo menos, não na forma a que nos habituáramos a senti-la. Depois, concentrávamo-nos no ondular das chamas em torno do altar e, num piscar de olhos, todos os naperons ardiam em línguas que subiam até ao teto abobadado, que troçavam de nós e de tudo; até nos fixarmos na personagem que falava atrás do púlpito. O homem parecia feito de cera e as linhas que uniam as narinas à face inferior do malar acentuavam a gravidade do discurso. Dissertava sobre a n-ésima dimensão do pós-vida, usava os indicadores para apontar as páginas amarelecidas que tinha na sua frente. O séquito de beatas grisalhas baloiçava como espigas ao vento enquanto recebia o sermão — se o tom subisse, estremeciam consoladas, uma manta era-lhes colocada sobre os ombros. Sentavam-se imediatamente atrás da família e, pelo cintilar dos olhos nublados quando torciam o pescoço, julgavam protegê-la de nós; de nós, que víramos o grande plano do Senhor nas formas concêntricas de uma poça incomodada. Eu apertava as mãos da Inês nas minhas sempre que as apanhava a espreitar.
Aquelas megeras, agrilhoadas aos bancos corridos pelos seus rosários. A cara do menino podia ter aterrado em qualquer lado. Os médicos disseram-no, e durante toda essa semana a mensagem viajara em ecos, fizera vibrar balcões e enriçar mises: se o rapaz tivesse tido tempo para dar mais dois passos, era como se tivesse adormecido de bruços sobre o alcatrão; se o rapaz tivesse tido tempo de chegar a casa… A diferença estava apenas na lama; a lama que escorria pelo pescoço quando o virámos; a lama que nos sujou as mãos. O rasto brilhante de um verme.
Alguns de nós seguiram o carro funerário até ao cemitério. Eu não tive coragem. Fiquei sentado na escadaria da igreja, a apanhar sol. Estava um dia maravilhoso, quente e pintado de amarelo. A Inês fez-me companhia: encaixou-se numa cova do degrau imediatamente abaixo do meu. Curvou-se, apoiando o queixo nas mãos e os cotovelos nos joelhos, sem cuidar que a cintura das calças escorregara — e muito menos que eu via outros infinitos no espaço escuro acima da presilha de ganga. A negligência com que as duas nádegas brancas se mostravam era enternecedora. Contemplei-as no longo silêncio que se estendeu até a Inês inclinar timidamente o pescoço na minha direção. Um silêncio simples. Foi como encontrar um banco no topo de uma subida ingreme, sentar-me e tentar contar as janelas dos prédios no fundo do vale; e o sol caía, os vidros fundiam-se numa massa alaranjada, acastanhada, e por fim negra. Estava cansado, tão cansado que demorei algum tempo a responder-lhe ao gesto. Não tinha vergonha de ser apanhado a espiar-lhe o rabo, mas sabia que ela se preparava para me confidenciar algo e que queria que eu olhasse bem para as palavras.
— Eu sabia que aquilo ia acontecer. Eu vi. — Fez uma pausa, mudou os olhos do meu nariz para os meus pés. — Uma forma escura, feia, na espuma. A poça. E vi que ele já estaria morto quando lá chegasse. À poça.
Achei que ela estava a gozar comigo e que devíamos voltar para casa. Não havia mais nada para nós ali. O verme partira.
— Tens o rego do cu à mostra — respondi, enquanto me levantava.
E deixei-a de pé nas escadas, com trança tombada, a puxar as calças para cima, salgando os sapatos pela última vez.
As velhas desculparam-nos quando os alperces começaram a cair porque, como era costume todos os anos, precisavam que eles caíssem para os nosso braços em vez de caírem para o chão — manias do catolicismo. Nessa altura, por recomendação dos professores, das revistas e das rubricas dos programas da tarde, quiseram ensinar-nos a lidar com a perda. Para alguns, a aventura durou apenas uma hora: o suficiente para inventar os sentimentos de revolta que se encaixavam no guião e justificar o preço total da consulta; mas a Inês, por exemplo, tocou-me à campainha numa tarde de Setembro para dizer que tinha aprendido a respirar e que ia estudar para o Porto.
Eu não sabia que a pequena lição sobre o movimento da caixa torácica
(— Olha: inspiiiiiiiiiiiiiira… e… uuuuuuuuffffffffffffff. Percebes? Reparaste no meu peito? — Reparara em duas laranjas ampliadas através de uma lupa de arame, espuma e algodão. — No movimento? — Para cima, tentando escapar das copas; para baixo, encolhendo até deixar um espaço vazio que a camisola cobria como um toldo. — É tão importante saber respirar.
— É tão importante estar vivo.)
era uma despedida. Passaram-se anos sem que ouvisse sequer falar dela; nos primeiros tempos, recordava-a nas escadas da igreja, aos saltinhos, procurando encaixar-se melhor nas calças; mas depois dava por mim a revisitar todo o funeral, a ouvir de novo o galope violento dos soluços, o choro dos vitrais coloridos. Desisti de pensar no quão bonita a Inês estava nesse dia, com o cabelo preso numa trança gorda onde toda a vida se escondia, tentando passar despercebida.
Reencontrei-a há dias; num bar, a olhar para uma imperial de cristal e a sorrir.
S. White
Vou agora a casa da Rosalina buscar o pão. Não é que tenha fome, ou sequer que a Rosalina tenha pão, mas qualquer desculpa serve para sair desta casa de cinco crianças - eu acho que só fiz três - e uma mulher que já não aquela que eu escolhi. De maneiras que venha o pão. Se a Rosalina estiver de bom humor e o marido com o camião lá para os Pirenéus, mais coisas hão-de acontecer.
Este cabrão deve achar que eu sou parva. A Rosalina deve achar que eu sou parva. Sai-me de casa às nove para andar 150 metros e voltar com o pão às onze e o cabelo desgrenhado. Tanto faz, já não me interessa muito. Soubesse ele que só quatro dos filhos são dele e talvez o assunto merecesse discussão. Já devia ter ido embora, ou ele já deveria ter ido embora, sei lá que merda de inércia tomou conta de mim, eu que tinha todos os rapazes à perna. Como deixei que isto acontecesse?
Para a semana faço 18 anos. Até que enfim. Já combinei com o primo Abílio, Marselha, que seja. O trabalho pode ser duro mas eu tenho de sair desta casa. Não sei que espécie de teatro é este que os meus pais montaram, nem a quem se destina. Entre o silêncio sepulcral e a guerra civil, não sei o que é melhor. Vou ter com o padrinho. Ele sempre me tratou bem, melhor até que aos meus irmãos, nunca percebi porquê.
Desta vez não volto. Estou farto de andar com o camião para traz e diante. Fico com a Stephanie, mando uma carta à Rosalina a explicar tudo. Já chega de fingimento.
DoVale
Bazaar
1. Nuno foi acordado por uma mensagem que acabara de receber no telemóvel: «Meu, onde andas? Já tamos no Bazaar e a Tita aqui à tua espera…». Era a sua deixa. Levantou-se do sofá, vestiu as calças de ganga e a sweat do rugby e saiu de casa. Não ia beber nessa noite, pensou. O aniversário da Martinha Bastos não se esperava a festa mais divertida do ano. Decidiu levar o Golf, o carro em segunda-mão que os pais lhe ofereceram quando, há dois meses, Nuno soube que entrara na faculdade, no curso de Gestão.
Do Bessa, onde morava, até ao cais de Massarelos não demorou sequer cinco minutos. Lá, como de costume, não havia lugar onde estacionar, e Nuno teve que deixar o carro numa das vielas esburacadas e enlameadas atrás do edifício em ruínas da fábrica do peixe. Não percebia o sentido de abrir uma discoteca naquele desterro. Porquê tão longe da Foz, de Leça, zonas com muito mais espaço e animação? Lembrou-se então das noites do secundário passadas em sítios agora esquecidos pela moda – o Indústria, o Estado Novo, o Twins… templos irrecuperáveis e dos quais, aos 19 anos, já sentia saudades. Na verdade, fora ele que, antes de todos, os abandonara. Não gostava de testemunhar a decadência dos espaços quando, por desleixo da gerência ou feitio do seu próprio aborrecimento, se tornavam demasiado batidos. Guardando uma colecção de noites perfeitas e irrepetíveis faria delas o padrão de referência e fonte de escárnio por toda a novidade que lhe apresentassem.
Cismando naquelas coisas, entrou no Bazaar e percorreu a discoteca. Era um edifício estreito virado sobre o rio, um antigo armazém de mercadorias do tempo em que os barcos ainda atracavam naquele cais. A noite era de casa cheia. A enorme popularidade da Martinha permitia a certeza de estar lá todo o Garcia em peso. Também o primeiro ano da Católica, onde agora estudava Direito, aceitara o seu convite, apesar de a conhecerem apenas das primeiras semanas de aulas. Era um desfile de caras que Nuno conhecia bem. Cumprimentou algumas com um aceno de cabeça, outras com um aperto de mão e um sorriso pouco franco, quase nenhumas com um abraço. No piso de baixo, o mais calmo, encontrou muita gente a fumar em rodas impenetráveis de conversas sobre curtes e bebedeiras heróicas, em que se violam várias disposições graves do código da estrada nas pistas de aceleração da Marechal ou da Avenida Brasil.
Decidiu subir ao primeiro piso. Lá estava Martinha, sua amiga dos tempos da primária, com quem partilhara fins-de-semana imemoráveis de tagarelice e cafés à beira-mar. Era por ela que ali estava: «Parabéns loira, estás o máximo hoje». Ela agarrou-se aos ombros de Nuno e abraçou-o com força. Apresentou-lhe alguns dos seus novos amigos da faculdade, quase todos irmãos mais velhos de colegas de Nuno no secundário: «Conheces o meu irmão? Também joga no Sport»; «Não és primo da Carlota? Morena, baixinha? Tive explicações de matemática com ela», e coisas afins que se dizem para testar e garantir a familiaridade do grupo – método precioso ensinado por pais e avós desde cedo como instinto de defesa contra a selvática mobilidade social destes tempos.
A fumar na varanda estava Rita, a sua namorada, entre duas raparigas demasiado morenas para Fevereiro e que bebiam vodka. «Nuno!», chamou-o. «Olá baby», e beijou-a entre os lábios finos e os dentes brancos que sabiam a tabaco. Nuno adorava quando ela lhe oferecia um carinho disponível, ainda que insincero, e beijou-a por mais tempo que o apropriado. Sabia que ela apenas condescendia o excesso por despique à concorrência feminina que assistia, pela provocação que Nuno, namorado bem-parecido e visivelmente apaixonado, assumia naquele contexto. «Vá, meninos! Está toda a gente a olhar para vocês». Rita apresentou as amigas e Nuno cumprimentou-as sem memorizar os nomes. Depois, com serena desenvoltura, libertou-se das três e dirigiu-se ao bar onde avistara Tiago, um amigo de turma solitário e já bastante bêbado, cujo único propósito naquela noite era curtir com uma das amigas de Rita que acabara de conhecer. Nuno prometeu ajudar. Voltou ao grupo com o amigo e apresentou-o com redondos elogios. Nesse momento chegou ao pé deles um rapaz estranho. Usava jeans justos e uma camisola de lã grossa, tricotada num padrão psicótico que baralhava os sentidos. Tinha o cabelo curto, barba rala, um piercing na orelha, e vestia um ar leve que não era altivo, só ingénuo, atrevido e ingénuo. Por não se parecer com ninguém que estivesse no Bazaar, naquela ou noutra noite qualquer, a personagem intrigou Nuno. «Olá olá. Sou o Tomás». Era amigo de Inês, a rapariga por quem Tiago se interessara. «O Tomás gosta de ser alternativo. Anda em Belas Artes», desculpou-se Inês «Já nos conhecemos desde a Escola Francesa. Os nossos pais são amigos». Tomás parecia habituado a estas explicações e não ficou incomodado. Cumprimentou toda a gente, disse que era a primeira vez que saía naquele sítio, que estava a adorar, que a decoração tinha muito gosto, minimalista e elegante, que todos se comportavam como se estivessem numa gala, tipo nos Óscares, que nunca vira tanta gente bonita por metro quadrado. Só a música não apreciava especialmente; preferia uma coisa mais dançável. «Mas isto é música de dança», atirou Nuno. «Então, porque não está ninguém a dançar?», riu-se Tomás, e Nuno só soube encolher os ombros. O rapaz estranho afastou-se do grupo dizendo que ia espreitar os cantos. «Tem piada o teu amigo», disse Rita para Inês. Nuno, como já adivinhava, só achou desdém na voz da namorada.
Dois whiskys depois, vendo-se enredado nas conversas de delinquência chique que tanto tédio lhe causavam, decidiu dar uma volta pelo bar. Acompanhados pela vibração pulsante da música house cruzada pelos feixes de luz galáctica, os amigos de Martinha deliravam de riso ao reclamarem do equilíbrio oscilante da aniversariante passos de dança cada vez mais arrojados. Nuno viu ao longe os primeiros desistentes que se dirigiam para a porta. Um enorme aborrecimento caiu também sobre ele e decidiu nesse momento acompanhá-los. Deu mais uma volta, viu Tiago e Inês junto à varanda, muito chegados. Tita gargalhava com Martinha e os amigos, embalada na euforia dos shots de absinto. Não reconheceu mais ninguém. Desceu ao piso térreo, agora totalmente deserto. Espreitou no bengaleiro, usou a casa de banho uma última vez. À porta da discoteca mandou duas mensagens, uma a Martinha, outra à namorada, desculpando a saída súbita com uma má disposição. Quando se deitou nessa noite decidiu que aquela tinha sido a última vez que entrara no Bazaar.
p.a.leitão
(micções)
O armário do quarto dava passagem para uma casa de banho, o que, por si, já é sinistro. Sobretudo se, dentro do armário, no recanto mais escuro, estiver o cadáver de uma prostituta embrulhada em celofane. Encontrei-o há umas semanas, quando fui procurar um volume de Pausânias nas várias caixas de livros que o professor Urbano lá guardava. Desde Setembro que ajudava o professor na revisão final e na formatação do texto da sua tradução da Naturalis Historia, de Plínio, o Velho. Todos os Sábados, pelas oito horas da manhã, nem mais nem menos, comparecia no terceiro andar direito do número 21 da Rua X. O trabalho era de imediato iniciado, começando o professor por me ditar dez páginas manuscritas, que eu batia no teclado do computador. De seguida eram impressas, e passava-mos à revisão minuciosa de cada parágrafo. Pelas dez e trinta o professor interrompia os trabalhos. Uma pausa para o chá de hortelã, que comecei a apreciar, e bolachas de canela. Nem durante este período o professor aliviava o seu semblante austero e rígido. As palavras que trocava-mos eram poucas e formais, a mais das vezes sobre o estado do tempo e a saúde dos familiares (em particular dos meus, pois o professor era solteiro, e não lhe conhecia parentada próxima), quando não sobre o trabalho em curso. Neste Sábado as coisas não se passaram de modo diferente. Contudo, um desejo irresistível e mórbido de ir ver a prostituta morta no armário abateu-se sobre mim. Pedi licença ao professor para ir à casa de banho, que prontamente me foi concedida (juntamente com a indicação de que a casa de banho do corredor não estava operacional). Assim fiz. Entrei, procurando afastar os fatos do professor, e segui direito ao recanto mais obscuro do armário. Lá estava ela, a prostituta. Ao lado, porém, parecia estar outro corpo. Aproximei-me e vi a Dona Lurdes, a empregada de limpeza do professor Urbano. Saí, fechei a porta, e voltei para junto do professor. Terminei o meu chá, e comi mais duas bolachinhas.
nev
Área de Serviço
Toda a gente as usa de vez em quando. Alguns quase todos os dias. Ninguém está para as gabar, ainda assim. A mim importam-me. Careiras, é verdade. Isto de andar sempre de um lado para o outro, abaixo e acima. Para baixo outra vez. Nunca como deve de ser em lado nenhum. Ali a gente entra, não há frio nem calor. Primeiro conhece-se o cheiro, a ordem dos espaços. As fardas dos rapazes e raparigas das bombas. Ao fim de um tempo distinguem-se as mais limpas e bem governadas. Ao fim de uns anos fazem as vezes de chegar a casa.
[Cláudia.]
Sed ut perspiciatis unde omnis iste natus error sit voluptatem accusantium doloremque laudantium, totam rem aperiam, eaque ipsa quae ab illo inventore veritatis et quasi architecto beatae vitae dicta sunt explicabo. Nemo enim ipsam voluptatem quia voluptas sit aspernatur aut odit aut fugit, sed quia consequuntur magni dolores eos qui ratione voluptatem sequi nesciunt. Neque porro quisquam est, qui dolorem ipsum quia dolor sit amet, consectetur, adipisci velit, sed quia non numquam eius modi tempora incidunt ut labore et dolore magnam aliquam quaerat voluptatem. O problema é o preço? Pinho. O dilema é o espaço? Crematório. A preocupação é com a justiça? Harvey Keitel. O inimigo é a injustiça? Taxidermia. O compromisso é com a ciência? Formol. O chamamento é o da comunhão com os elementos? Cinzas espalhadas ao sabor de uma balsâmica brisa de sudoeste sobre a A5 (por exemplo). Quem fica decide, acorrentado apenas aos seus fantasmas ou hierarquia de necessidades, conforme o que ocorrer primeiro, promoção não acumulável com outros descontos. Dos bens espera-se que sigam um percurso protocolar, mas à última vontade deverá conceder-se o desejo último da intransição. Ut enim ad minima veniam, quis nostrum exercitationem ullam corporis suscipit laboriosam, nisi ut aliquid ex ea commodi consequatur? Quis autem vel eum iure reprehenderit qui in ea voluptate velit esse quam nihil molestiae consequatur, vel illum qui dolorem eum fugiat quo voluptas nulla pariatur?
E. (& C.)
De quem?
O meu cão é um podengo de pêlo curto. Pêlo louro, diria, embora não esteja certo que se possa aplicar estas terminologias a cães. O meu cão é uma cadela, mas é complicado começar a apresentação de um animal de estimação pelo sexo, é mais fácil introduzir antes a espécie. Noto agora que mesmo depois da espécie, e antes do sexo, senti-me impelido a distinguir-lhe a raça e cor do pêlo (o tamanho do pêlo faz parte da caracterização da raça, de outra forma penso que não a teria discriminado). A minha cadela chegou a minha casa com poucos meses, não sei precisar quantos, mas a vizinha que me bateu à porta com o animal nos braços disse duas coisas antes de me deixar falar: «foi abandonada» e, «ainda é bebé», uma informação e uma tirada de vendas, portanto. Quando perguntei o nome da bebé, disse -me «Josefina», e eu pensei «safa!» mas respondi «compreendo». A minha vizinha era vegetariana e, logo, bem treinada num discurso de transferência de culpa que fui obrigado a interromper para lhe dizer que ficava com a cadela. Fechei a porta e não nos voltámos a falar.
A minha cadela tornou-se bastante conhecida na rua, porque é bonita - assim me garantem as minhas vizinhas que também passeiam cães - e porque é muito amigável com as pessoas. Histeria mútua, pareceu-me. Por me ter sentido pressionado a alterar rapidamente o nome, chamei Hobbes à minha cadela, e tentei convencer as pessoas de que a homenagem que se prestava não era ao amigo de Calvin, o pequeno herói da banda desenhada, mas ao próprio Thomas Hobbes, com quem a minha cadela parecia partilhar um estado de constante miúfa da realidade. O facto da minha cadela ser uma menina também vinha à baila na contra-argumentação a que normalmente me sujeitavam, mas eu avançava que a esposa do Thomas Hobbes devia chamar-se Sr.ª Hobbes, bem como a sua mãe, e eventuais filhas ou esposas de eventuais filhos, pelo que não era a primeira vez que Hobbes tinha sido aplicado a uma entidade feminina. De qualquer forma, a vizinhança entendeu, a bem das dignidades do animal e de quem o chamava, que o nome seria adaptado a Lopes, forma como passou a ser conhecida na rua.
Alguns anos mais tarde li numa revista cujos artigos eram todos em forma de lista, que um dos sinais de inteligência de um cão é o número de palavras ou expressões que reconhece, e que acima de dez estamos perante um animal superior. Pelas minhas contas a minha cadela entendia Hobbes, não, rua, banho, papinha, aqui, que é esta merda?!, senta, e dá a patinha. Nove. Pareceu-me que a culpa era minha por não ter sentido necessidade de esticar a comunicação para lá destas incidências, mas como não queria privar a minha cadela de uma educação completa fiz um esforço por conseguir uma décima palavra. Consegui que reagisse a primeiro-ministro: sempre que dizia «olha, Hobbes, é o primeiro-ministro», ela soltava um latido único e olhava para o televisor. Para estar certo de que não era o meu tom de voz que lhe provocava esta reacção específica, tentei algumas vezes dizer «olha, Hobbes, é o procurador-geral da república», ou «olha, Hobbes, é o cardeal patriarca» e nesses casos apenas olhava para mim em silêncio e voltava a deitar a cabecita logo de seguida.
A minha cadela não gostava de outras cadelas, o que se foi tornando um problema sério à medida que foi ganhando confiança no seu porte de cão de caça. Se as cadelas fossem maiores do que ela, rosnava baixinho e de longe, à cautela. Se fossem mais pequenas perseguia-as e subjugava-as, até eu finalmente conseguir intervir. Thomas Hobbes deve ter dado voltas no túmulo. Aos cães (e para com eles) era indiferente. Até ao período do cio, altura em que a rua por debaixo da minha varanda se enchia da cachorrada local a fazer-lhe a corte como num filme da Disney. Quando eu saía, mesmo que sozinho e após longo e diligente banho, o cheiro que se me colava provocava os cães das redondezas que me seguiam a alguma distância mas com perserverança. Entendiam que eu não era uma cadela (dominavam com certeza mais de dez palavras, também) mas vinham comigo hipnotizados para todo o lado, como num filme do Chaplin. Durante cerca de quarenta dias por ano os funcionários dos autocarros e do metro, bem como os meus colegas de serviço, foram-se habituando a ver-me na companhia de meia dúzia de animais arfantes.
Há cerca de um ano enamorei-me de uma moça que conheci através de amigos comuns e marcámos data para casamento. Na semana passada a minha noiva fez saber que não temos condições para ter uma cadela na casa nova, pelo que é com mágoa no coração que estou a tratar das diligências para me livrar dela.
Gouveia
Vivenda Dang
Na tentativa de cortar caminho até ao tribunal, meti-me por uma velha rampa de alcatrão esburacado; uma rua bem conhecida do meu passado de criança esférica, onde, apesar da inclinação obscena, há casas de um lado e do outro: vivendas geminadas, adegas clandestinas, garagens recheadas de ancinhos desdentados; uma vizinhança apodrecida, coberta por um manto oxidado de esquecimento e artroses várias. É uma daquelas ruas que atestam o espírito confuso do lugarejo que aos poucos se habitua ao estatuto de subúrbio. As vidraças das marquises estremecem ante o bulício da via rápida, mas a identidade do lar persiste (e as coelheiras fedem). As casas têm nomes: no muro da frente de cada vivenda existe uma placa em azulejo que, entre rabiscos de guardanapo, batiza o imóvel. O costume define-se a si próprio e repete-se, qual novena moída entre gengivas de piorreia. Estiveram sempre ali, os apelidos de árvores de fruta; por isso, nunca reparei nesses nomes de família, nomes de sonhos, nomes de piadas privadas e muito queridas; nomes pintados a letra azul serifada, orgulhosos no seu pequeno mural dividido à caixa de ovos. Mas talvez hoje tivesse acordado com a disposição para reparar nos muros, nas pedras soltas, nas folhas pálidas das iúcas desidratadas; talvez o tédio das férias de juntasse ao abandono emocional que me levou a calçar um par muito gasto de Chuck Taylors; ou talvez a matemática das associações simples me recordasse dos anos passados desde a última vez que desci aquela rua.
No cimo da ladeira, lugar onde se cruzam outras duas ruas que por pouco não a superam em inclinação, os meus olhos agarraram num desses retábulos e quase o arrancaram. Dizia: Vivenda Dang. Parei. A fachada encardida do tribunal não estava à espera que eu lhe cortasse o fio correto, nem o meu registo criminal deixaria de poder ser usado para limpar o cu a um bebé se eu me atrasasse. Importava mais fruir o nascimento daquela memória. Há semanas que procurava a oportunidade de criar algo parecido a isto: uma memória à qual fosse possível dizer adeus, como um ponto que fixamos distraidamente antes do comboio partir apenas para ter a consciência de que o vamos deixar para sempre — e é definitivo, porque mesmo que voltemos a passar pela mesma estação, o ponto não se anuncia e nós não sabemos como o procurar; o tipo de ponto que fecha todas as trajetórias.
Tudo o resto — as outras casas, as rampas de cimento por onde se acede às garagens, os caixotes do lixo diagonalizados, com calços nas rodas — emanava uma familiaridade distante e insuportável. Em frente à Vivenda Dang está uma moradia caiada; em frente à Vivenda Dang estava eu, sabendo-me capaz de descrever essa moradia com precisão digital. Era lá que costumava passar as tardes quando ainda usava clipes coloridos na bainha das calças. Abria-me a porta uma miúda franzina; as pontas dos cabelos batiam-lhe no queixo, o processo estilóide do rádio mais parecia uma agulha. Estudou comigo desde a primária até ao nono ano e, como todos os meus colegas, dedicava-me pouco mais do que uma tolerância passiva. Isso cumpria com a minha noção de amizade e eu era-lhe muito grata por me deixar subir até às águas-furtadas que lhe serviam de quarto. Lá havia um modem omnipotente, que rapidamente se transformava num calorífero de qualidades igualmente impressionantes; havia pósteres do João Moutinho; havia uma batida interventiva, vozes duras e pescoços a acompanhá-las; e eu fundia-me na colcha de patchwork e observava a aeróbica dos dedos da rapariga nas salas de chat, a reverberação das colunas da aparelhagem, a cavaqueira entre amigos — enquanto um gato chamado Billy pisava as minhas coxas com as unhas para me lembrar de que eu existia. Depois, lanchávamos ovos mexidos com muita margarina.
Não consigo despedir-me voluntariamente deste tipo de memória. Foi nela que vi pornografia pela primeira vez. Esse ponto é nada mais além de uma experiência adolescente ordinária, mas não se desvanecerá numa mancha achatada pela velocidade de afastamento; estará sempre ali, e a cena repetir-se-á eternamente, uma loura e um tipo cheio de tatuagens num estaleiro coberto pelas formigas do satélite. Por isso, eu precisava da Vivenda Dang. Precisava de me querer lembrar dela para depois decidir esquecer-me dela. As coordenadas eram as ideais: Dang em nada se parecia com os comuns apelidos, ou com o sonho rebocado que estreia uma família no proprietariado; Dang trazia uma novidade capaz de superar a heresia histórica de cravar um metálico Lar Londrino no pequeno prédio da base da ladeira — a bisavó demente dos prédios do outro lado da vila. Era uma fantasia tricolor: vermelho-tijoleira, verde-guacamole, mármore-barato; linhas direitas, obedecendo à corrente estilística do caixote de eletrodoméstico (modelo frigorífico); telhado-tipo com empala-pardais de bico rombo, enfeitado por tiras ondulantes de verdete-também-ele-tipo; quintal onde cresciam felizes os limoeiros prenhes e as piteiras de pontas secas, prontas a colher para usar nos bordados. Na folga entre a chapa negra do portão e o chão calcetado viam-se quatro patas de cão. Um Toyota Starlet amarelo — o mesmo tom amarelo das botinhas de bebé tricotadas antes de se saber o sexo da criança — espreitava de dentro de uma boca escura, com prateleiras cariadas e garrafões de conteúdo misterioso.
Estive ali, no topo da ladeira, empoleirada numa janela de cinco minutos por dois raios de sol compridos e cortinhas de linho marfim. Ninguém passou, e eu soube que seria muito fácil esquecer-me disto — vai ser muito fácil esquecer-me disto assim que queimar esta folha. As pessoas têm problemas com as despedidas porque não sabem por onde começar, ficam encostadas à travessa dos croquetes até não haver vestígio das miniaturas de coco.
Segui para o tribunal. Um pato nadava no quadrado em frente às portas giratórias. Acenei-lhe um adeus.
S. White
XI
Eram sete horas da tarde, o barco tinha acabado de atracar. Sai aos empurrões por entre a chusma, não reconhecia a urgência que se lhe impunha. A paragem estava à pinha, um cão cirandava por ali à cata de um osso, servil a todos e a ninguém. Não quis esperar, apressava cada vez mais o passo (e)levando o peso dos muitos dias nas pernas. O autocarro que subia a rua acabava de passar por ela. Era sempre assim, o destino a dizer-lhe que tomava a decisão errada. Pelo caminho, um prédio em obras chama-lhe a atenção. Andaimes revestidos por uma rede através da qual se vislumbrava uma composição de azulejos a preencher a parede da frente. Inclina a cabeça para dentro de um buraco aparentemente invisível. Todo o seu corpo é sorvido de imediato pela imanização que vinha de dentro. Um silêncio mortal calava a atmosfera. No meio de um lago, sentado num barco, um jovem acariciava as penas plúmbeas de uma pomba. Afago atrás de afago, o animal semicerrava os olhos, adormecia o sentido do voo e acordava o mistério da queda. O esqueleto canídeo ergue-se no precipício da fome e rompe por dentro daquele lugar insuspeito como uma seta inflamada, uma pasta de sangue e pêlos a manchar aquele cenário idílico. Desvalida, a mulher dá alguns passos para trás sem se aperceber do desvio da entrada enciclopédica do workshop das cinco da tarde.
gisandra