(micções)
O pingo
Quando colocou o pé direito sobre o piso betuminoso que compõe a estrada nacional número X, com intenção de a atravessar perpendicularmente, sentiu imediatamente um pingo no nariz. Surgiu de repente, em toda a sua pompa e esplendor, como se tivesse preparado a aparição durante toda a manhã. Um pequeno berlinde translúcido, contendo uma mistura de milhões de átomos de hidrogénio e oxigénio (na proporção de dois para um) e uma bateria de germes e vírus de variada natureza, dependurou-se-lhe na ponta do nariz, lá fixando-se por mote próprio. “Que coisa ridícula”, pensou, ao mesmo tempo abanando a cabeça (como se estivesse a dizer não) tentando que o pingo tombasse por força da gravidade. Sentiu o pingo mover-se de um lado para o outro (na verdade não o conseguia ver bem, mas sentia-o em toda a sua plenitude), tal qual um pequeno badalo de uma campainha de chamar criados. Enervante e teimoso, o pingo manteve-se firmemente preso ao nariz. Lembrou-se que tinha lenços na algibeira do casaco, mas isso implicava tirar as mãos dos bolsos das calças. Se por orgulho, se por preguiça, não sabemos, mas é um facto que não tirou as mãos dos bolsos. E o pingo lá permaneceu, agora ainda mais fortalecido, inchado, brilhando ao longe. O peso e a comichão começando a tornar-se insuportáveis. Já não era apenas um pingo, antes todo um globo com milhões de microscópios demónios atiçando-lhe o nariz com malagueta. Nisto passa por ele um camião cisterna, e com um movimento brusco põe o pé esquerdo sobre o lancil do passeio, o pingo cai, e o sapato de pele de camurça fica encharcado.
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