Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2015

 

Há quem veja nas mais recentes cortinas da sala um regresso à sua primeira intervenção, não só por voltar a utilizar a sanefa, a que creio nunca mais tinha recorrido, mas também pelos orifícios no tecido.

Tentei juntar nestas novas cortinas algumas ideias que fui explorando ao longo dos anos a uma revisitação. De certa forma, é a revisitação, já não sabemos se na forma de comédia, de opera-bufa ou de apatia em que vivemos todos. Aquelas primeiras cortinas tinham muito de uma efervescência que não faz sentido hoje, em que parecemos esmagados, sobrevivemos como se tivéssemos perdido o nervo. Se reparar, basta andar pela rua e ir olhando para ver que os cortinados de hoje tendem para uma opacidade simples, são aquilo em que materializamos o sonho da privacidade prêt-a-porter, a forma de separarmos definitvamente o espaço privado sobre o qual na verdade temos cada menos controlo de um espaço público que já não sentimos como nosso, que deixou de ser público. As minhas primeiras cortinas faziam sentido num tempo em que me corria nas veias o Pasolini do pós 1968, dos anni di piombo, daquilo que cá chegava, muitas vezes clandestinamente. A sanefa em madeira mantém-se, mas agora sem o forro de tecido, é apenas uma sanefa nua, uma estrutura em madeira simples, sem sequer verniz, e as duas camadas de organza sobrepostas substituíram o belíssimo cretonne de linho completamente opaco, estampado com rosas vermelhas, que hoje só poderia ser interpretado como um anacronismo.

 

Mas manteve os orificíos, uma opção que pode ser vista como uma ironia, uma referência a essa desadequação de uma reencarnação que não pode, de facto, sê-lo.

Sim, os orifícios. Eu sempre gostei muito de orifícios. Mas os orifícios das cortinas de cretonne transportavam para o interior uma esperança imaginada no exterior. Os orifícios na organza fazem parte daquilo a que, se quiser, podemos chamar a rebelião possível, dirigem-se ao exterior. A semitransparência da organza é anulada pela justaposição de duas camadas, que é por sua vez ridicularizada pelos orífcios mínimos, que projetam a liberdade já só ilusoriamente possível em nós, a que deixámos de poder procurar na humanidade.

 

E a escolha da cor. A sua obra sempre tendeu mais para as cores quentes, e aqui opta por um violeta bastante dúbio. Uma vez que, nos anos noventa, foi bastante crítico da síntese teórica, fica a questão de se tratar de mais uma ironia ou de uma nova abordagem a esse tema.

É porque vai bem com a nova carpete.

 

Mas fugiu sempre às cores frias, exceto nalgumas obras de juventude.

Sim, e também logo após ter frequentado Londres, uns anos mais tarde. A minha passagem por Londres foi muito importante, conheci muitas pessoas ligadas à belbutina e deixei-me imergir sem restrições. Embora naquela altura, essencialmente a partir do disco, Nova Iorque fosse o centro da ação, por ali passava muito do que era ainda incógnito mas que veio a não ter influência nenhuma uns anos mais tarde. E a belbutina, pelo  menos na época, só era inteligível em azul, especialmente numas cortinas completamente lisas, como as que aqui tive durante quase um ano. Mas foi uma das poucas explorações nesse campo. Tive, por um curto período do verão do ano passado, um conjunto de pequenas cortinas, quatro, o que para uma janela deste tamanho é claramente excessivo, em polyester glauco intercalado com amarelo cádmio, com umas figuras desbotadas alusivas à comodificação do imaginário infantil, mas não duraram muito tempo porque a gata as rasgou.

 

E pensou em deixá-la prosseguir?

Não, já estava bastante velha e vomitava pela casa toda. Deu-me cabo de dois sofás. Achei melhor mandar abatê-la.

 

Referia-me a essa experiência dos motivos infantis. Parece-me representar uma evolução natural da sua crítica.

Sim, e foi-o, com todos os incómodos que isso provoca num país tão paroquial. A cultura Iqueia não consegue integrar a crítica ao assalto destrutivo que todos os dias fazemos às cada vez mais exíguas hipóteses de futuro que ainda nos restam. Falou da minha queda para os tons quentes. Após a revolução, estávamos em pleno PREC, com o qual a morte de Pasolini coincidiu, e senti um certo esgotamento, que decidi expressar na janela da sala, que sempre foi o meu locus operandi de eleição, apesar de algumas aprendizagens com os candeeiros da entrada e com árvores de natal. Decidi retirar as cortinas, provocar um enfrentamento que representasse a ausência de um caminho claro e, a um tempo, o reivindicasse enquanto direito a um percurso libertador, o próprio percurso visto como libertação, através da vivência e da introspeção, por oposição à naturalização das axiologias que ocupavam todo os espaço disponível. Nessa época tinha-me desinteressado da militância obrigatória a que os quotidianos se viam cada vez mais reduzidos e refugiei-me na juventude, em Thoreau, Proust, [Anatole] France, Orwell. Esta era a minha atitude, demonstrar a inutilidade de cortinas na sala, quando se deu o 25 de novembro. Não houve boa vontade no entendimento da minha obra. E nunca mais tive uma vida fácil neste país. Enquanto outros autores da minha geração foram vistos como um farol do momento e dos momentos, mesmo quando recorriam à ironia do formulaico, eu nunca passei muito bem por algumas gargantas. A minha utilização conscientemente compulsiva mas crítica das cores quentes, e especialmente dos vermelhos, que dominaram o meu percurso intelectual desde a adolescência, serviu para tudo, para todo o tipo de interpretações e de perseguições e mesmo de ameaças. Chegaram a colar um autocolante das bananas Chiquita na vidraça da janela numa altura em que tinha umas cortinas fúcsia de renda que, evidentemente, provocaram engulhos a muita gente. Nunca abdiquei de ser um incómodo, de me mover fora do establishment, mas já não pretendo continuar nada a não ser o puzzle de dez mil peças do Castelo de Neuschwanstein com que vou cobrir a parede norte da minha antiga oficina. 

 

A sua relação com outros autores contemporâneos, entre quais os vizinhos do 1ºD, que julgo terem marcado bastante o seu trabalho, espelha também um pouco o seu progressivo afastamento dos temas tradicionais nas cortinas portuguesas.

Sabe, eu nunca me interessei especialmente por esses temas. Eles estão, como não pode deixar de ser, na génese do meu percurso artístico, e foi nessa base que surgiu um momento em que foi possível um diálogo com os meus vizinhos do 1ºD, mas desde cedo tentei distanciar-me deles. Claro que essas influências eram visíveis em todas as cortinas que aqui colocava, por vezes apenas na escolha dos tecidos, mas sempre senti a necessidade de escapar àquilo que via, já nessa altura, como um remoer mecânico de temas estafados, que tinham perdido interesse e atualidade, como uma inércia. Não quero com isto dizer que toda a tradição acaba por se tornar necessariamente fútil, mas o panorama dos cortinados em Portugal tem sido muito dominado por incessantes releituras de uma linguagem que resulta da assimilação do ruralismo pelos românticos, que foram quem, mal ou bem, fez alguma coisa de novo neste país a este nível, embora na realidade mais não tenham feito que importar o que tinha sido feito em França duas ou três décadas antes. Desde aí, as exceções foram atos isolados e as mais das vezes involuntários, o resultado de uma determinada loja ter colocado à venda um produto importado que se tornou moda, o mimetismo do que se vê nas revistas de decoração, etc. A tradição cortineira portuguesa parou naquele momento fundador e não mais daí saiu, tendo a sua aparente evolução sido capturada pela construção política tardo-nacionalista tão característica do século vinte português. Ainda estávamos na primeira iteração desse movimento quando no centro da Europa já não se pensava daquela forma, já não era aquela a linguagem. O expressionismo, por exemplo, nunca chegou às cortinas portuguesas, que nem por isso abandonaram completamente alguns atavismos do barroco.

 

Mas apesar da sua recusa em alinhar-se, é hoje reconhecido como um autor marcante em toda esta zona da cidade. Acha que se pode dizer que fez uma escola?

Não, não acho, e, se quer que lhe diga muito sinceramente, ainda bem. No contexto em que se desenvolveu a minha atividade, “fazer escola” quer dizer ser absorvido por uma das capelinhas, todas elas virtualmente indistintas para um observador externo, que dominam as nossas janelas. Os resultados até podem ser diferentes, mas o raciocínio que lhes está na base é sempre o mesmo. Embora não venha de uma família com tradição nos tecidos nem na decoração, era uma casa onde se cultivava um certo gosto pelo cosmopolita, onde se liam coisas vindas de fora. A minha mãe ainda chegou a vender alguns pares de peúgas ao André [Breton], no seu esforço para financiar a digressão que os meus pais fizeram pela Europa, logo após a II Grande Guerra, para verem os estragos. Esta base diferencia-me naturalmente de autoras como, por exemplo, a Dona Dulce. A Dona Dulce fez aquilo a que se pode chamar uma escola, e fez muito pelas cortinas deste país, mas nunca conseguiu, por exemplo, abdicar dos folhos. A veemência da minha recusa do folho veio acrescentar ainda mais aos problemas que já tinha com a crítica e com alguns setores do público, por isso não, não creio que se possa associar-me a uma escola ou abordar a minha obra como sendo fundadora de uma. Sou um objeto estranho.

 

Foi no seguimento desses problemas que foi para Londres.

Também por isso. Precisava de alguma abertura, de uma clareira na minha vida. Veja que, depois do reposteiro de cretonne, da mudança frenética de cortinados de 1974-75, da resposta com os estores japoneses, que ninguém na altura utilizava nesta rua, não me era possível, do ponto de vista criativo, limitar-me a um ambiente cultural que, sentia-o, me estava a forçar a uma etiqueta. E não estou a falar daquelas com as instruções de lavagem.

 

Quanto tempo passou em Londres?

Três dias. Foram tempos que me abriram a novas vias para a articulação da dualidade entre o corpo enquanto veículo inescapável do pensamento, em confronto com várias correntes do pensamento europeu, e o corpo enquanto plasmação da urgência de animalidade que a modernidade só nos permite quando não há uma casa de banho por perto. As cortinas da sala passaram a ter uma função, e uso o termo função propositadamente, uma função diferente. Se antes se situavam apenas no campo de uma dualidade filtragem/abertura da qual estava ausente a problematização ontológica, a partir daí passaram a constituir também, e de forma consciente, uma espécie de segunda passagem da latência para a genitalidade. Por exemplo: até então nunca tinha considerado seriamente os algodões, o excesso pop das toalhas turcas de banho enquanto cortinas ou os black-outs com découpages florais, como vim a utilizar uns anos mais tarde no âmbito das festas da cidade. O que mudou foi, essencialmente, a minha relação com as texturas.

 

Anunciou que esta será a sua última obra. O que tenciona fazer à janela da sala daqui para a frente?

Não farei nada. Passarei a convidar jovens artistas para me escolherem e fazerem as cortinas com total liberdade. Os artistas da nova geração não têm muitas possibilidades de desenvolver uma obra e construir uma carreira, porque vivem em andares demasiado altos de subúrbios sem visibilidade ou porque, pura e simplesmente, tiveram de emigrar, muitas vezes para lavar cortinas na Alemanha. E como não há apoios, o panorama é bastante sombrio. A Secretaria de Estado da Cultura, que já nem ministério é, descartou completamente as cortinas, tal como o cinema independente e os buracos na calçada em forma de coração. Foram áreas que este governo, que não me merece sequer o esforço de uma qualificação, entendeu serem irrelevantes. Disponibilizar a janela da sala, ser uma plataforma para a troca de novas experiências, essa é a contribuição que posso dar a este país sem futuro.

 

 

E.

despesadiaria às 17:16
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