Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2015

...

(micções)

 

Estou certo que já fizestes a seguinte questão: quantas vezes duas determinadas pessoas, perfeitas desconhecidas entre si, se cruzam fortuitamente durante toda uma vida? Tomemos como exemplo as seguintes: Juvenal, solteiro, maior, residente na União das Freguesias de Santo Tirso, Couto (Santa Cristina e São Miguel) e Burgães, concelho de Santo Tirso; e Maria, divorciada, residente na freguesia dos Olivais, concelho de Lisboa. Juvenal e Maria não se conhecem um ao outro, e tampouco supõem a existência de um e de outro. Mais, Juvenal e Maria residem e sempre residiram a mais de 200 quilómetros de distância um do outro. Não têm relações, amigos, ou conhecidos em comum. Trabalham ambos na área da residência de cada um, ele como contabilista, ela como cabeleireira.

Ora, sucedeu a Juvenal e Maria encontrarem-se, por coincidência, no interior do comboio Alfa Pendular que, às 09:20 horas do dia 28 de Janeiro de 2015, partiu da Estação de Santa Apolónia, com destino a Porto-Campanhã. Sucedeu ainda estarem ambos sentados de frente um para o outro, uma vez que, por um acaso do destino, foram-lhes atribuídos os lugares do meio da carruagem (únicos lugares em que os passageiros se sentam de frente uns para os outros, com uma pequena mesa desdobrável ao centro a servir de separador) junto à janela esquerda (no sentido da marcha).

Juvenal foi o primeiro a acomodar-se ao lugar. Maria entrou na composição apenas na Gare do Oriente, ocupando o seu lugar em frente a Juvenal. Nesse momento, e após replicar ao «bom dia, com licença» de Maria, Juvenal pensou para si: «Olá, queres ver que hoje estou com sorte». Não deixara, naturalmente, de reparar nas belas formas de Maria, e na cascata de ouro que descia languidamente até a uns seios de auspiciosas proporções. O perfume inebriante que exalou ao sentar-se deu a estocada final. Juvenal estava rendido. Na verdade, não foi preciso muito tempo para lhe despontar uma erecção, que procurou camuflar colocando o casaco sobre as pernas. Decidiu que havia de meter conversa com aquela mulher até final da viagem, nem que fosse a última coisa que fazia na vida. Porém, este era o género de actividade para o qual não estava minimamente habilitado e muito menos habituado.

Mas já lá iremos. Antes disso, quero informar que Juvenal e Maria, apesar de nunca se terem conhecido, já se cruzaram pelo menos três vezes (que eu tenha conhecimento) durante a sua vida. A primeira, ainda ambos por nascer, mas já em gestação (Juvenal com sete meses e Maria com cinco), aconteceu quando as respectivas mães, grávidas, se encontraram fortuitamente na sala de espera do consultório do Dr. Amílcar Roldão, médico obstetra de Coimbra, com fama em todo o país, corria o ano de 1980. Vinte anos mais tarde, seguindo na Auto-Estrada designada A1 no sentido Norte-Sul, a 400 metros da saída para Fátima, Juvenal inicia uma manobra de ultrapassagem, ocupando a faixa esquerda de rodagem. No sentido contrário, em igual manobra de trânsito, e nesse exacto momento, passou Maria a bordo de um Opel Tigra, conduzido pelo seu, então, namorado. Durante um período de tempo inferior a um segundo, nem cinco metros distaram entre Juvenal e Maria. Por fim, em 2011, no aeroporto internacional de Lisboa, Juvenal retém a porta de um dos elevadores do estacionamento, permitindo a Maria entrar nesse mesmo elevador, fazendo a ascensão ao piso das partidas os dois juntos. Admito que possam ter-se cruzado em mais ocasiões. Porém, as que acabei de enumerar são as únicas que, após longa e exaustiva investigação, fui capaz de descobrir, e para as quais reuni provas cabais de terem efectivamente acontecido (o que fiz por inquirição de dezenas de testemunhas, consulta de vários registos documentais particulares e públicos, e visualização de imagens vídeo e fotográficas de câmaras de vigilância diversas).

Estes dois desconhecidos estavam agora, como disse, frente a frente, na mesma carruagem, do mesmo comboio, e com o mesmo destino (Porto-Campanhã). Juvenal desesperava por conseguir arranjar as palavras certas para iniciar os seus intentos. Cheio de calor, vermelho, e banhado em suor, nem reparou na paragem do Alfa Pendular na estação de Coimbra B (ainda hei-de tentar perceber por que raio não arranjaram um nome mais digno para esta estação, como por exemplo o do sítio ou lugar em que está implantada). Nisto sente alguém a tocar-lhe no braço direito, situação que o fez repentinamente acordar do estertor em que estava. «O senhor, desculpe, será que se importa de trocar de lugar comigo?», pergunta uma velha senhora. «É que assim eu podia ir ao lado dos meus dois netos, que vão aqui» acrescenta ainda. De imediato e de um salto só Juvenal levanta-se do seu lugar, disponibilizando-o à velha senhora, e ainda ajudando-a com as malas. Seguidamente arrastou-se até ao seu novo lugar, sito no final da carruagem, junto às casas de banho daquela composição ferroviária. Até final da viagem dissipou-se a réstia de coragem que ainda tinha, e Juvenal acabou por desistir de seu malfadado projecto. Ficou-lhe apenas gravado, para memória futura, as formas e o perfume daquela bela loira com quem se cruzou no Alfa das nove e vinte.

 

nev

despesadiaria às 16:59
|

.Arquivo

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014