Quarta-feira, 8 de Abril de 2015

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E assim é legada a infelicidade
 
Diante da marquesa cirúrgica da sala de partos não conseguiu evitar que o pensamento lhe fugisse para os versos anti-procriativos de Philip Larkin. “They fuck you up, your mum and dad”, escrevia o poeta logo na abertura, antes de explicar o mecanismo de transmissão da infelicidade de geração em geração e de alertar as pessoas para não se lembrarem de trazer fihos a este mundo. Sabia que Larkin era um homem tristonho, mas as eventuais características do mensageiro não retiravam à mensagem uma certa dose de veracidade.
Sempre achara o mundo um local inaproriado para crianças, mais parecido com o inferno do que com o paraíso, mas não era por este ângulo que o poema do amargurado inglês o incomodava. De uma certa maneira, a sua consciência podia bem com os males do mundo. As guerras eram uma realidade mas nunca tinha sido ele a iniciar nenhuma; existiam tiranos por todo o lado mas ele era um simples assalariado da classe média; o terrorismo fazia vítimas diariamente mas ele só usava cintos de couro, nunca de explosivos. O que não lhe saía da cabeça era o “Fodem-te a vida, o papá e a mamã”. Sim, o papá e mamã! Não o mundo, nem os tiranos, nem os terroristas. Aliás, se quisesse ser honesto em toda a plenitude da palavra, algo que considerava impossível de suportar, deveria assumir que o que o apavorava verdadeiramente era a parte de “o papá”, a função pessoal e intransmissível que iria passar a desempenhar dali a uns minutos. Se Larkin estivesse certo, seria no cumprimento desse papel que passaria à sua filha as suas falhas, defeitos, vícios, neuroses e preconceitos. Para não falar de tudo o que já tinha sido propagado por via da herança genética, um património que, ao contrário de outros, não espera pela morte de ninguém nem pela leitura de testamento para cair em cima dos herdeiros.
Perante o chamamento da obstetra, acalmou-se, finalmente, fazendo uma promessa a si próprio: não colocaria nos ombros da descendência as grandes expectativas provenientes dos fracassos próprios. Ter tocado cavaquinho no rancho folclórico da terra não era coisa de que se orgulhasse muito, mas não seria por causa disso que iria pressionar a miúda para que esta chegasse a chefe de naipe na Filarmónica de Berlim. “Está decidido”, afirmou convictamente, “serei um pai leve e despreocupado… mas que era importante que ela conseguisse pelo menos um lugar na Sinfónica do Porto, lá isso era!”
 
Aníbal Éter
despesadiaria às 15:30
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Segunda-feira, 23 de Março de 2015

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Bazaar

 

2. Na manhã do dia seguinte, enquanto, ainda na cama, Nuno dissipava as remelas do sono em frente ao portátil, foi surpreendido ao descobrir no seu hi5 um espectador inesperado. Lá estava Tomás, o rapaz estranho da noite anterior, visitante recente do seu perfil digital, das suas fotos e comentários, da sua vida exposta na net. Estremunhado pela luz que rasgava o quarto pelas frinchas da persiana, decidiu retribui-lhe a intrusão e, levado não sabe bem por que lapso de bom senso, adicionou-o como amigo. Quando voltou de tomar o pequeno-almoço, já Tomás o tinha adicionado; e não só, também lhe mandara uma mensagem. «Já recuperado de ontem? Parecias um bocado perdido…». Nuno ficou contente por não ser ele a dar início à conversa: «Não estava com grande pica, só isso. E tu, gostaste?», «Sim, diferente do que costumo encontrar quando saio. Mas também com muito mais gente aborrecida. Como tu!», «Ah sim? (notou-se muito?). E onde costumas sair?», «(Sim, um bocado). Pela Baixa, pelo Piolho… festas da faculdade e isso», «São fixes as festas em Belas-Artes?», «São brutais! Devias experimentar», «Não conheço lá ninguém», «Conheces-me a mim agora». Nuno hesitou um minuto, depois escreveu. «Verdade. E quando é a próxima?», «Já na semana que vem. É Carnaval. São sempre as melhores, as mais loucas», «Hum, quão loucas? Devo ter medo?», «Não sei… logo vês.»
Entretanto passou uma semana. Ao volante do seu Polo, Nuno sentia-se ridículo: todo vestido de branco, com pólo, calções e sapatilhas brancas, usava ainda uma fita desportiva de algodão na cabeça. Não tinha nada para o resguardar do frio de Fevereiro. Trouxera uma raquete empecilha que o iria incomodar a noite toda e que ele eventualmente, tinha a certeza, acabaria por perder. Tomás pedira-lhe boleia para a festa. Quando chegou ao início da Rua da Constituição, onde morava, escreveu-lhe para o telemóvel: «Cheguei. Desce rápido antes que alguém me veja nestas figuras». Dois minutos depois, viu pelo retrovisor um tufo de penas e cores que caminhava gingando. «Buenas noches, señor Nadal! Ahahah, muito bem, não me lembro de alguma vez ter visto um tenista em Belas-Artes». Tomás estava vestido de índio. Teve alguma dificuldade em meter a coroa de penas no carro. Trazia jeans justos, muito rasgados e um colete de camurça velho sobre uma t-shirt branca. Tinha a cara pintada de vermelho e várias listas coloridas desenhadas sob os olhos e no pescoço. Os traços de tinta sublinhavam as feições traquinas do rapaz, pensou Nuno. Tomás sorria sempre, solto e sem motivo. «Vamos lá?».
Chegaram ao que pareceu a Nuno um palacete abandonado e decadente. Entraram por um portão velho e ferrugento que dava para um jardim comprido. A festa começava já ali. À entrada, três rapazes vestidos de preto com cabelo comprido e risco preto nos olhos enrolavam três charros e discutiam os projectos que deviam entregar na aula de vídeo da semana seguinte. Um deles sugeriu ao grupo filmarem o arremesso de uma cadeira de rodas pela escarpa das Fontainhas ao som de Alice in Chains, enquanto em baixo, em planos entrecortados, uma criança brincava placidamente com facas de cozinha. Mais à frente, viu duas raparigas fazerem o pino contra uma parede enquanto manejavam pincéis com a boca, desenhando em traços desgovernados de azul sobre uma tela branca. Alguns espectadores, embrenhados no profundo entendimento daquela experiência, seguiam atentamente o movimento dos pincéis.
Chegaram então a um amplo pátio ladeado de salas de aulas e dominado por uma torre alta com profundas fissuras no betão. Eis ali, por fim, a loucura prometida. Era impossível distinguir caras humanas naquela amálgama de braços pintados, plumas e figuras serpenteantes que não pareciam seguir qualquer ordem ou coordenação motora. Na mesa do DJ dançavam vários corpos alienígenas, híbridos e anárquicos como uma babel de figuras. Uma rapariga coberta de balões e apenas de roupa interior rosa tentava esquivar-se às investidas da plateia que, de baixo, se esforçava por rebentar os seus apêndices insuflados. À sua direita, um rapaz com calções e chapéu de pirata usava um penso higiénico como pala sobre o olho esquerdo e, destemido espadachim, apontava aos balões um enorme e gelatinoso dildo preto. Alheia a todo o rebuliço, uma rapariga de kilt escocês, boina verde e camisa branca apertada apenas no botão do umbigo, envergando um ameaçador chicote de cabedal, humilhava um rapaz magro que usava apenas uma fralda de algodão e chinelos de piscina azuis. «Bem-vindo a Belas Artes», disse Tomás, e Nuno deixou involuntariamente escapar um sorriso atrapalhado de apreensão e de envergonhado deslumbramento.
Chegou então à beira deles uma enorme cabeleira loira que se movia sob um rapaz franzino coberto de lantejoulas. «Tomáso! Quem é o teu amigo? Ah, que engraçado, eu adoro ténis. Percebe-se bem porquê, não percebe?». Tomas, embaraçado, pediu logo desculpa a Nuno, mas vendo nele o indício de um sorriso, virou-se para a cabeleira e ripostou: «Xô, bicho feio! Vai cheirar noutro sítio» e, agarrando Nuno pelo braço, puxou-o para o meio da confusão. Viram-se cobertos de confetti, cerveja, fumo e serpentinas. Dois amigos de Tomás ofereceram-lhes shots de tequilla. Nesse preciso momento, o DJ corta a rock-balada que se já se arrastava e decide puxar uma marcha sambada da Carmen Miranda. Toda a gente cantava e, numa pirueta circular que durou dois segundos, um comboínho fez-se e desfez-se junto à ribalta das vaidades quando se viu impedido de avançar na multidão. Depois, num gesto de total irresponsabilidade, o DJ deixou soar as quatro notas iniciais da Hit me baby (one more time). Toda a moderação que ainda restava imediatamente se esfumou nos vapores ferventes da euforia. A dominatrix de kilt aproveitou a passagem da cabeleira loira e montou-a pelos ombros. Tentando não cair, andou por entre as figuras naquela orgia de cores a chicotear quem se aventurasse a apalpar-lhe as coxas. Acabou por desequilibrar-se e aterrar em cima de um grupo de rapazes vestidos de cogumelos, cujas cabeças de espuma serviram de amparo.
Durante mais de duas horas foi nesta torrente que Nuno e Tomás dançaram e beberam, esquecendo-se da insigne realidade nas suas bem compostas e ordenadas dimensões. Nuno, ao contrário do que previra, não perdeu a raquete; mas quando se aproximavam as quatro da manhã reparou que já não tinha consigo o telemóvel. Avisou Tomás que o perdera. Saíram da roda e começaram a impossível tarefa de o encontrar naquela caótica balbúrdia. «Deixa lá, era velho também. Amanhã venho cá ver se o encontraram», disse Nuno.
Também Tomás tinha já perdido as penas da cabeça, e a tinta vermelha começava a escorrer-lhe em pingos de suor pelo pescoço. Ofegavam os dois de cansaço, olhando para a fogueira de braços e cores que continuava a crepitar à sua frente. Ficaram presos naquela visão. Depois Tomás disse, «Anda, quero mostrar-te uma coisa». Nuno seguiu-o em passos incertos por entre os destroços humanos que, ora de gatas ora sentados, tentavam recuperar a verticalidade e voltar para a pista. Tomás meteu por um corredor estreito que passava atrás da torre e, a custo, abriu a pesada porta de aço que nela dava entrada. Finas réstias de luz nasciam em vigias abertas no betão, deixando a descoberto a silhueta de uma escada. Tacteando no escuro, subiram os quatro lanços que davam até ao topo. A cada degrau Nuno sentia o betão tremer com o pulsar da festa lá fora. Quando alcançaram o final, deu por si numa sala ampla e vazia. Havia apenas algumas cadeiras sujas e empoeiradas, um pequeno estrado de madeira ao centro e uma janela circular aberta na parede. «Anda ver», disse Tomás. Nuno aproximou-se da janela e viu a ponte Maria Pia brilhar entre a lua e o rio. Tomás confessou-lhe que uma vez se decidira a desenhar a ponte à luz de prata da noite, depois de uma aula de desenho naquela mesma sala, onde os estudantes aprendem a estética e a técnica no estudo da anatomia dos corpos nus. Contou-lhe que, durante uma madrugada de lua cheia, pintara incansavelmente a ponte nas horas da noite, mas descobrira que é com a aurora, quando o sol oblíquo bate no ferro e o reveste de ouro, que a visão é mais absorvente. O raiar nascente das primeiras horas tece o rendilhado de ferro numa estrutura fina e leve como um arco etéreo de luz. Nuno já não olhava para a ponte. Ouvia Tomás, aproximando-se dele. Quando sentiu o seu silêncio, disse por fim: «És estranho». E Tomás riu-se com uns lábios muito finos e vermelhos, dando a descobrir os dentes brancos com as mesmas tonalidade de luz que descrevera e que Nuno, percebera agora, desejava ardentemente sentir. Foi nesta altura que o beijou entre os lábios manchados de tinta, e soube instantaneamente que a entrega era total.
Na minha opinião de indiscreto observador, a descrição de Tomás da visão da ponte ao nascer do sol só peca por modesta: é a glória fundida em ferro pelas leis elementares que regem a difusão da beleza no universo. Mas nem Tomás nem Nuno viram na manhã que se seguiu a luz da ponte ao raiar do dia. Tampouco presenciaram o aparatoso acidente que, algumas horas depois, o lançamento em queda livre de uma cadeira de rodas provocou entre o trânsito da Avenida Marginal. De conforto vos digo que quando, já terminado o Carnaval, Nuno e Tomás acordaram, ainda puderam ver de relance a cidade e a ponte sob um sol invulgarmente quente para Fevereiro.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 10:24
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Terça-feira, 3 de Março de 2015

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     um prejuízo do tamanho da Mónica - (11)

 

     Desci do ônibus com a mochila no dia dezoito de Novembro, três dias depois que o carro do Calucho foi encontrado com ele no porta-malas. Sentei na ponta da Estação com aquela merda no colo e fiquei a pensar no que devia fazer enquanto, do outro lado, dois gajos enfiavam um monte de éguas nos vagões de gado da Companhia Interestadual.

    Uma hora e quarenta minutos mais tarde, telefonei do Bar Milano, na Presidente Roosevelt, para o meu cunhado. Disse que queria vê-lo. Meu cunhado falou: “Meu, aí tão longe?” Ele parecia estar de bode ou meio sonolento. Disse a ele que não era longe, levaria só uns quinze minutos. Ele falou que tinha coisas para fazer. Então olhei para o relógio acima da caixa registradora, entre os espelhos do bar, e disse:
     – Ei, Pelon, só mais uma vez. Estou no Milano e não quero que estejas aqui depois das onze horas. Entendes o que estou a dizer?
     – Merda – ele disse, e desligou.

 

 

    Fiquei sentado, a olhar as palmeiras no rótulo da garrafa. Pelon apareceu por volta das onze e meia. Vestia uma jaqueta preta a imitar couro e usava uma gravata vermelha fina no pescoço. O rosto dele era inocente como uma tigela cheia de cereal. O tipo de gajo com quem não precisas se preocupar. Era ajudante de cozinha. No trabalho, ralava montanhas de queijo e cortava o meu peso em cogumelos todas as noites. Ele ficou a se explicar, dizendo que o carro não queria pegar.
     – Ainda tens aquele saco-de-dormir no porta-malas? – eu disse.
     – Tenho.
     – E já esteves em Bela Aliança?
     – É, já. Mas é muito longe.
    – Bom, essa viagem não vai te custar um centavo, e ainda podes ganhar um monte de dinheiro antes dela terminar.
     Pelon esfregou a parte de trás do pescoço, como se estivesse apalpando para ver se precisava cortar o cabelo.
      – Eu não sei – ele disse.
     A mochila estava enrolada num cobertor debaixo da mesa. Apontei o queixo na direção da janela.
    – Estás a ver aquele gajo do outro lado da rua?
    – Qual?
    – O que está com a mão na cerca.
    – O que é que tem?
    – Nada. Só quero que te recordes que há gente para quem dez por cento dessa merda pode parecer um ano de salário.
     Pelon não disse nada. Ele tinha um jeito meio efeminado de segurar o cigarro, bem na frente do rosto, a pegar o filtro entre as pontas de dois dos dedos.
     – Posso perguntar por quanto pretendes me convencer? – ele disse.
    Eu ainda não decidira se podia confiar nele, nem se importava se confiava ou não. Recostei-me melhor na cadeira, a olhar para um teto que estava a descascar e precisava ser pintado. Depois mantive os olhos em Pelon, agora com a sensação de que estava a perder meu tempo.
     – Tudo bem. Esquece Bela Aliança. Preciso só deixar uma coisa na tua garagem. Dois dias no máximo.
    – Na minha garagem não vai dar – ele disse. Depois seus olhos adquiriram uma expressão de astúcia – Mas tem outro lugar.

 

     Peor

despesadiaria às 14:00
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Sexta-feira, 27 de Fevereiro de 2015

 

Notas de uma festa de aniversário*

 

O brilho insolente da esclerótica não basta, por isso eu explico: quando tenho um livro na mão, toda a gente feita de carne me aborrece; aliás, se eu tenho um livro na mão é porque toda a gente feita de carne me aborrece, e o livro aberto surge como alternativa ao arremesso de cuspo. Uma boa alternativa, porquanto os elementos boca e língua prevalecem (ler em público é como deitar a língua de fora), embora apenas como backing vocals. Um dia serão estrelas, prometo(-lhes), mas por ora convém que componham a máscara do que é funcional, tornando-se eles próprios funcionais; o funcional (também referido pelo meu terapeuta como socialmente aceite) serve-me bem, leva-me a festas onde há cestas fartas em gressinos que só pecam por estar longe da poltrona azul onde me encontro — a ler.

O que eu queria era que me deixassem ler em paz. Ler vai além dos movimentos de sacada ou das migalhas de gressino entre páginas; a minha sobrancelha levanta-se para pedir que respeitem um dos principais responsáveis pela minha esperteza cretina, que é simultaneamente espada e escudo. Mas em vez de respeito, há uma velha não totalmente grisalha a espetar os cotovelos no topo da poltrona azul, de modo que a minha cabeça é forçada contra as páginas numa corcunda; a sombra do candeeiro de pé desce até ao meu bigode louro, como a máscara de um vilão, e a minha expressão fica ainda mais carrancuda.

— Tu tens sacos do pão? — Só percebo que esta pergunta me é dirigida quando a oiço repetida pela segunda vez; e vinda de quem mos oferece anualmente, só à terceira repetição identifico a expectativa despropositada com que a resposta é aguardada. Sim! Tenho tantos sacos do pão, todos iguais, todos inúteis. Sim; e de que me servem esses saquinhos de pano, com flores bordadas em ponto-tremelique, se ainda há dias levei a mão à base do pescoço e, ao sentir as curvas lentas das clavículas, as ouvi dizer que não gostavam de pão? Sou uma jovem em idade fértil. Faço zumba, abano-me com espinafres, sou intolerante ao glúten ante marcação; isto na minha mão é um gressino porque eu devoro as emoções, enquanto o coração escuta o paso doble do desespero, e o desespero é uma velha que não se cala. Ter sacos do pão não chega? Não. Aqueles cotovelos afundam-se ainda mais na almofada traseira da poltrona e temo ficar marreca para sempre. O pavor da deformação permanente ativa os mecanismos somáticos e o livro escorrega nas minhas mãos. — E aventais, tens aventais? — Sei bem que fechar o livro é admitir a derrota. — E lençóis? A tua outra avó ainda te faz lençóis? — Mas a derrota é inevitável.

 

A mesa da cozinha está repleta de insultos à modernidade; a primeira ofensa vem logo da fartura, tão evidente que incha as meninas dos olhos, desperta movimentos orelhudos e redobra a produção de saliva. A comida é a festa e a festa é a comida. Todos sabemos dos preparativos do meu primo para se trancar num armário alto e de lá sair feito homem. As puberdades, ou qualquer outro tipo de translação, não se comemoram pelo seu caráter excecional; crescer não é grande mérito: é uma inevitabilidade, uma decorrência da lei da causa-efeito, onde a causa é o sol e o efeito é a degradação da matéria. Estamos aqui reunidos pelo bodo. Os convidados rodeiam a mesa com referência, enfeitiçados pelos reflexos gordurosos dos enchidos e pelos vapores de açúcar que se desprendem das sobremesas com a violência de geiseres; quem, do corredor gelado, antevê a mesa, escuta imediatamente as sereias, e é com gosto que se afoga na abundância.

Como outros antes de mim — os pioneiros, os sacerdotes, os responsáveis pela cerimónia de encertamento à qual faltei por estar a ler —, sei que não tenho fome. O que me aproxima da mesa é o cumprimento do ritual. A abertura faz-se de faca e queijo na mão. Cantam-se os enchidos e os salgados. Um pastel de bacalhau entala-se nos dentes por acidente e sinto a formação de três coágulos na minha perna esquerda. Geba e manca, clamo o consolo do açúcar; eis as suas formas: arroz doce, tarte de natas, panna cotta, pudim de ovos, mousse de chocolate, bolo de mousse de chocolate (quando se deriva um bolo de chocolate, retira-se-lhe a farinha e fica xis igual a papa de cacau açucarado); e todas estas formas, num terço da porção normal, ocupam à vez uma taça de plástico branco. Assim se diz a oração do excesso. Assim se celebra.

E o que eu queria era que me deixassem celebrar em paz. Mas, aliado ao usufruto do basto banquete, vem a conversa de circunstância. Não só não quero cuspir as sobremesas como continuo a não poder fazê-lo; a palavra funcional escreve-se no caramelo do pudim — sim, logo no pudim! Eu gosto e não gosto muito de pudim. Há qualquer coisa na consistência do pudim-objeto que me confunde, um dilema estilo trinco-ou-não-trinco, faço-ou-não-faço. Para a maioria das pessoas, um pudim é um pudim, mas como na minha primeira infância o pudim-objeto e o pudim mandarim eram uma só entidade indissociável, quando vi pela primeira vez um pudim-objeto-não-mandarim não soube o que pensar dele. É certo que poderia encará-lo como uma gelatina (é esse o protocolo perante o pudim mandarim), mas aparência rugosa dos pudins caseiros aproxima-se mais de uma esponja, ou da superfície da lua, ou de uma face calejada pelo acne do que de uma gelatina. O pudim-objeto é um enigma;

quem és tu, pudim,

desfeito na minha boca,

o teu rasto doce enjoa-me,

perdoa-me, mas tenho que ir

comer um bocado de queijo.

Por outro lado, o pudim enquanto palavra encanta-me porque começa nos lábios juntos, bem franzidos e maldispostos, para acabar numa sílaba clara e alegre, como uma campainha. Pudim, pudim, pudim…

e, de repente, o tempo solidifica: vejo-me refletida nas quadriculas de vidro da porta aberta; cedendo às circunstâncias, oiço a minha voz vir de dentro e de fora; quando a última sílaba do último pudim acaba de vibrar, estou a explicar porque é que é possível ter a menopausa sem útero a mulheres que há pouco mais de dez anos me explicavam o que era um útero. Falo para um auditório composto por três cadeiras encostadas a uma parede; nelas se sentam as comensais, as tijelas das comensais e o arroz doce das tijelas das comensais, sincronizadas na regra e na ignorância como um coro de beatas. Observam com tento o movimento dos meus lábios e sabem que, no fim, não estarei disponível para lhes esclarecer as dúvidas.

 

— Escreves-me aqui a receita da tua mousse de chocolate? — E à pergunta inocente esta avó acrescenta um miga, a forma preguiçosa de amiga que me arrepia os caracóis do pescoço e reveste todo o pedido de falsidade. A minha letra exibe uns ângulos estranhos. Os ovos ficam cúbicos; há seis claras para bater em vez das cinco habituais, mas reparo no erro tarde demais para o emendar. Deixo-o partir naquela folha, e a folha é segurada pelas mãos, e as mãos descansam contra a barriga, e a barriga espeta-se em direção ao corredor, e o corredor vai dar à cozinha. — Obrigada — estala a marreca. — Anda, vamos cantar os parabéns.

Volto para a cozinha, onde ocupo um canto forrado a azulejo. Abre-se uma clareira na ponta norte da mesa e os convidados reúnem-se para observarem a descida do bolo à mesa; ali vem ele, num tabuleiro de plástico colorido: um pão-de-ló paralepipédico, recheado de e coberto com leite creme instantâneo. É o bolo de aniversário mais feio que já vi; simples, sem os berloques açucarados da moda — evita-se assim o confronto entre primos apreciadores de massapão, ambos egoístas por educação e protocolos geracionais comuns. No centro do bolo, traçando uma diagonal como quem vai para Santarém, a mestre de cerimónias, mãe do aniversariante e dona de todos os armários da casa, espeta duas velas da esquerda para a direita. O meu primo é agora mais velho do que eu era quando ele nasceu. Parecia uma ratazana cor-de-rosa embrulhada em lã azul; para não ser obrigada a pegar-lhe ao colo, eu chorava mais alto do que ele.

Ninguém sabe cantar com as luzes acesas. As luzes apagam-se; descubro que também não sei cantar com as luzes apagadas, mas os outros pigarreiam, preparando as goelas para a solene ária. Fico escondida nas saias da minha mãe enquanto as vozes se unem numa balada cacofónica; as mais antigas vibram exageradamente, como se batessem nos pilares de um altar e voltassem para trás, ziguezagueando entre os bancos; antecipo o momento em que se separarão, no verso personalizável da cantiga. Acontece sempre: depois das almas cantarem, há os que se dizem o nome do menino num sopro apressado e os que se demoram; os primeiros ficam de boca aberta, como peixinhos, à espera dos segundos, que tomam o gosto a cada sílaba. Acho que é na confusão deste momento que se envelhece.

O que eu queria mesmo era deixar estas pessoas em paz. Mas elas insistem em sorrir para mim, com a cara cheia de bolo; o meu primo oferece-me uma fatia que não quero comer; o meu tio procura-me com dois dedos de Jameson num copo largo. Espanta-me a capacidade que estas pessoas têm de gostar de mim. Temos pouco ou nada em comum além de um nariz pequeno e de uma noção adulterada do funcional.

A família é o verdadeiro lugar estranho, tão surpreendente e eufónico quanto o pudim.

 

*A palavra pudim aparece repetida dezanove vezes (agora vinte).

 

S. White

despesadiaria às 09:48
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Segunda-feira, 23 de Fevereiro de 2015

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Partenon

 

Estilóbata, fuste, coxim, ábaco, arquitrave, métopas e tríglifos, cornija e frontão. De baixo para cima, ao som da concertina, eis os elementos do templo dórico que Aníbal Éter, ao torresmo do sol, viu com os que a terra há-de comer. Dizem que o mármore do Monte Pentélico com que foi construído o Partenon se incendeia com reflexos de ouro à luz do amanhecer, mas o nosso intrépido turista não chegou a tempo de comprovar a veracidade de tão bela descrição. E se lhe chamo “intrépido turista”, tal não se deve a nenhuma tendência para a ironia da minha parte (que desde já afirmo ter), mas à necessidade de encontrar um termo de equilíbrio entre o turista apalermado, fase da qual o nosso personagem já tinha saído, e o seguro viajante, fase à qual o nosso personagem ainda não tinha chegado. Claro que isso o chateou, deveria ter planeado as coisas de forma a não perder a alvorada na Acrópole. Sabia que a força do impacto da primeira visualização de um monumento, de um local, ou de uma pessoa, é sempre decisiva para os caprichosos sentidos. A sensação de gostar ou não gostar de algo tão concreto como a Fontana di Trevi pode depender de pormenores tão subtis como o ângulo de aproximação na primitiva abordagem. Federico Fellini sabia disso. Aníbal Éter também mas, nesse helénico dia, descuidou-se. Acabou por se desculpar com a imprevisibilidade dos comboios gregos, empurrando a falha para terceiros. Pior do que as coisas más que acontecem a um ser humano são as coisas más que acontecem a um ser humano sem que este consiga culpar outros seres humanos. Felizmente, a falha não acarretou consequências de maior; o encanto deu-se na mesma. Talvez o Partenon, ao contrário de algumas pessoas, nunca sinta a angústia de precisar de uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão.

 

Os templos dóricos são despidos de partes supérfluas. Pelo menos eram estes os ensinamentos dos livros de História da Arte que Aníbal Éter metodicamente desorganizava por toda a casa com o objectivo de impressionar as esporádicas visitas. Claro que o edifício que estava à sua frente (chamemos-lhe edifício para facilitar) se encontrava despido de quase todas as partes, fossem supérfluas ou essenciais; mas isso era fruto do camartelo temporal e não de lapsos dos projectistas. Tentou imaginar o já inexistente todo, procurando redundâncias ou inutilidades. O ábaco e coxim formando o capitel; o fuste e o capitel formando a coluna; as métopas e os tríglifos formando o friso; a arquitrave, o friso e a cornija formando o entablamento; tudo isso formando a fachada. É verdade que alguns elementos, como os capitéis que encimam as colunas, pareciam servir interesses estéticos. No entanto, antes desse honroso servilismo, tinham a essencial função mecânica de transmitir aos fustes, com graciosidade, todo o peso da cobertura. Não eram, pois, dispensáveis.

 

Diante da monumental ruína, lembrou-se do seu lar, e concluiu que os labores construtivos não tinham sofrido mudanças tão acentuadas como se podia pensar à primeira vista. Tamanhos à parte, o que de essencial se tinha alterado entre a época de Fídias e a época de Mestre Ramiro, encarregado da empreitada da casa dos seus pais? É verdade que no tempo do Mestre Ramiro, que era também o seu, as arquitraves se chamavam vigas e as colunas eram conhecidas por pilares, mas a forma como toda a descomunal massa ia sendo descarregada do topo da cobertura até ao terreno firme da implantação era extraordinariamente semelhante. As dúvidas percorriam a cabeça do nosso “intrépido turista” com a velocidade de uma quadriga grega. Quantos anos tinha demorado aquela construção? E quantos mortos?, num tempo histórico duro, pré-higiene-e-segurança-no-trabalho. Teria o supervisor Fídias exigido aos Arquitectos responsáveis relatórios regulares? E Aspásia?, a muito polémica amante de Péricles, conhecida pelos seus cabelos de ouro e pelo seu pé arqueado. Qual a sua importância no sonho partenoniano do estadista? A fortuna por este gasta em obras públicas era reveladora da existência de momentos de alguma falta de juízo. E Aníbal Éter sabia que não existia nada como mulheres de pé arqueado para desajuizar os homens.

 

A problemática do tino, ou da falta dele, atormentava-o regularmente. Aníbal Éter considerava-se um atinado com azar, não por ter nascido numa nação de desatinados, mas por ter nascido numa nação de desatinados, sem a coragem necessária para se aproveitar dessa situação. Tinha a noção que num país constituído maioritariamente por desajuizados existiam duas grandes opções para aqueles que não o eram: abandonavam qualquer desígnio de irrepreensibilidade moral e tentavam retirar ganhos da falta de juízo dos outros, ou, desejando manter altos níveis de decência, aceitavam a neurose que mais tarde ou mais cedo lhes bateria à porta. Infelizmente, pensava ele, o aproveitamento pessoal da falta de juízo dos outros era, em si mesmo, um acto desajuizado, pelo que, existindo incompatibilidade entre a natureza dessa opção e a natureza da pessoa com juízo, era muito mais provável a existência de desajuizados que obtinham ganhos do juízo de terceiros do que a existência de ajuizados não neuróticos. A esta injusta incongruência dava o nome de “Paradoxo do Ajuizado sem Juízo ou: como tentei aprender a parar de me preocupar e a amar ser idiota, e falhei”.

 

Era também visitado, a quase toda a hora, por pensamentos relacionados com o dinheiro, mais propriamente pela problemática moral do desperdício. Educado no respeito pelas virtudes da poupança e da frugalidade, esforçava-se afincadamente para amenizar esses princípios, pois julgava-os, nesses optimistas anos do final do século, antiquados e totalmente desencontrados com o ar do tempo. No entanto, sem surpresa, o conservador que era impunha-se quase sempre ao progressista que gostaria de ser, e a continuação do passeio pela Acrópole transformou a sua mente no ringue a que já se habituara.

 

O combate do dia era um dos grandes clássicos: no canto esquerdo e usando calções vermelhos, a inclinação estética que cultivava; no canto direito e usando calções azuis, o utilitarismo que lhe corria no sangue. A estúpida e impertinente pergunta pairava, aos seus olhos, em todas as pedras: qual tinha sido o benefício concreto de tão colossal e dispendiosa obra? Tentou desculpar-se da mesquinhez do pensamento com algumas lendas históricas igualmente mesquinhas, nomeadamente aquelas que faziam notar a resistência dos concidadãos de Péricles ao seu projecto megalómano. Lembrava-se de ter lido acerca de uma pequena matreirice usada pelo governante para conseguir a aprovação dos atenienses: percebendo que as reticências à construção do Partenon estavam relacionadas com dinheiro, Péricles anunciou que financiaria a obra do seu bolso. Em contrapartida, seria o seu nome e não o de Atena a decorar o frontão. Espicaçados pela inveja, logo lhe autorizaram o gasto público por forma a impedir a glória privada.

 

“Felizes os que nasceram antes do there is no such thing as public money”, pensou Aníbal Éter em jeito de louvor às virtudes da ignorância, “mas muitos devem ter ficado com os pés de fora para que outros pudessem cobrir a cabeça”. A manta curta, sempre a parábola do dinheiro como manta curta a condicionar a sua, se assim lhe podemos chamar, moral monetária. Brincando com as palavras, podemos dizer que se consumia com as decisões de consumo! Consumição inglória e injustificada, visto que não era verdade que as mantas curtas (ou o dinheiro) só permitissem cobrir a cabeça destapando os pés ou cobrir os pés destapando a cabeça. Com criatividade e uma tesoura, era possível cortar a manta ao meio e, deixando a cintura destapada, utilizar uma das metades para cobrir os pés e a outra metade para cobrir a cabeça. Ao nosso Aníbal o que lhe faltava, verdadeiramente, era a imaginação.

 

 

Aníbal Éter

despesadiaria às 13:35
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Sábado, 21 de Fevereiro de 2015

 

Para quê, pois, então, logo, dizer o que quer que fosse se, não sendo o assunto da minha conta, correria o risco de que ela, a conta, me viesse parar ao regaço. Desce agora a rua, ela, não a conta, a tentar conter as lágrimas, os soluços a tentarem retirar-lhe do corpo a correria. A continuar assim, ainda se esbardalha de encontro a um poste das linhas do trólei. E se dói ir de encontro a um poste das linhas do trólei, embora menos do que a que a leva. Desviou-se. A velha ficou a olhar e agora vai atrás dela, não da conta, que, repito, não é minha, que, por sinal, já me saiu do campo de visão. Às tantas ainda vai ter de aturar a velha e as suas tentativas de ajuda, agora que tanto precisa, não de ajuda, mas de ajudas de custo. Sempre a conta, e fora dela um vazio de sábado à noite.

 

 

E.

despesadiaria às 22:39
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Sexta-feira, 20 de Fevereiro de 2015

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     um prejuízo do tamanho da Mónica - (07)

 

       Pude ver o carro passar bem devagar, parando na ponta do estacionamento. Desembrulhei o canudo do plástico e enfiei metade dele dentro da lata de refrigerante. O motorista do carro continuou sentado lá dentro, como uma mosca perto do bolo, mas sem coragem de pousar.

     O lugar ficava na altura de Acuocho, numa marina da Intralitorânea. Lá fora, uma sirene tocava de meia em meia hora e a ponte era levantada, deixando passar os rebocadores.
     Eu tinha passado a noite no furgão de entregas. Mastiguei metade do pastel de carne com um gole de Seven Up sem tirar os olhos do relógio em forma de leme pendurado na parede. À direita, subida a escada, havia um terraço com toldo onde um gajo podia sentar, beber alguma coisa e ficar olhando os barcos passarem. Fora isso, era um bar como qualquer outro, com um monte de detalhes de plástico a imitar madeira.

     Estiquei mais a perna direita debaixo da mesa. Sentia que o cansaço tinha endurecido dentro de mim como um pedaço grande de merda que eu não conseguia mais cagar. Tinha conseguido atravessar metade do país, com todos os álibis na moita. A inteligência a fazer bip! bip! como uma buzina de carro para sairmos da frente. Saber a hora de sair da frente... bom, talvez seja mais do que uma questão do que eu posso fazer por mim. Mesmo assim, é preciso ter muito cabelo no saco para não se preocupar com o fato de que tudo pode cair em cima da gente sem ninguém berrar “madeira!”.
     Quando saí pela porta do Asteca, acompanhando o tráfego na direção da alfândega, aquele assobio abaritonado tocava de novo, fazendo o pessoal todo se mexer nas docas. Virei a cabeça para os dois lados e atravessei um pouco diagonalmente para evitar os crioulos que sempre ficavam por ali como que a desafiarte a fazê-los sair da frente.
     O gajo tinha apoiado a cabeça nos braços em cima do volante. Dei uma pancadinha seca no vidro e ele destrancou a porta do passageiro.
     Olhei para o banco traseiro. Sabia que embaixo da toalha tinha uma espingarda calibre 12, novinha, de cano azulado, com uma águia em pleno vôo gravada na madeira do cabo. Isso foi perto da entrada do canal. Podíamos ver a ponta de um dos navios, com o nome Amoringa mal dando para ler no casco enferrujado.
     O tipo ficou de frente para mim. Ele parecia agitado, como se tivesse um sistema nervoso todo do lado de fora. Passou várias vezes a ponta dos dedos naquele bigode estilo bandoleiro, depois enxugou uma das mãos nas calças e tirou de debaixo da coxa um papel dobrado com o número anotado a lápis. Disse que a coisa toda já estava a ser diferente da que eles tinham combinado, com todo a gente a querer levar o seu antes da hora.
     – Sabe quanto tá a valer um container em Porto Velho?
     – Diz pra mim – ele disse.
    – Setenta e cinco por cento mais.
    – Então melhor ficarmos longe de lá, não achas?
    – Na hora de comprar, pode ser. Mas depois.
    – Depois não é problema nosso.
   Coloquei o papel no bolso, e fiquei a olhar o painel do carro, bem no pedaço em que o adesivo da prefeitura comçava a descolar.
   – O que é que queres que eu diga pra ele? – perguntei.
   – Que diferença faz?
   – Imagino que pra ele ia fazer uma diferença.
  – Escuta, isto não é como se tu e o Bielo tivessem ficado bêbados e saíssem pra assaltar um posto de gasolina.
   Um barco a puxar barcaças vinha da ponte na nossa direção, sem fazer um único ruído; era uma embarcação curta e larga, lembrando um rebocador, só que muito mais alta.
   – Vais ter que arranjar outro jeito de levar vantagem, de conseguir mais do que os teus cinco por cento.
   – É. – eu disse, a destravar a porta.
   – Ei, – ele falou – não preciso dizer pra usares um telefone público.
   – Quais são as chances dele concordar?
   – As mesmas da porcalhona da tua mãe aparecer agora ali no capô a cuspir sidra pelos ouvidos.

 

   Peor

despesadiaria às 12:52
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Terça-feira, 17 de Fevereiro de 2015

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     um prejuízo do tamanho da Mónica - (16)

 

     Pelon ficou sentado, com uma parede de monitores de TV às costas. O magrela esperou até que ele olhasse para eles.
     – Nunca limpam esse lugar?
     – Passamos uma água toda semana, como no zoológico.
     O magrela esperou, enquanto Pelon mordia a unha, como um puto a olhar para o pai que lia o boletim da escola.
     – Traz ela até aqui – eu disse.
     Ele pegou as chaves do canil e, antes de sair, disse:
    – Sempre confiei em ti e quero muito acreditar que posso continuar a confiar.
    Pela janela pude vê-lo, mais perto agora da casa do que do canil. A porta ficara aberta o tempo todo, Pelon ergueu a mochila com uma das mãos, a apontar com a outra.
    – Está aqui! – ele disse. Depois entrou com ela e largou aquilo no sofá. Tive a impressão de que era uma cerimónia, todo a gente ali de pé, a esperar. O caipira pegando a mochila na mão, avaliando o peso.
    – Agora esperas lá fora – ele disse para mim.
    Não olhei para Pelon antes de sair.
    Fiquei encostado no carro. Quando eles saíram, perguntei:
    – Como é que Pelon ficou?
    – Acho que vai precisar de um transplante de rosto.

 

    Peor

despesadiaria às 12:54
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Segunda-feira, 16 de Fevereiro de 2015

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     um prejuízo do tamanho da Mónica - (15)

 

     Não trocamos nenhuma palavra. O magrela ao volante e o crioulo no banco de trás, ainda com a gaze enrolada num dos punhos.
     Fiquei a imaginar se Pelon não se borraria quando visse aqueles gajos.
     Um carro da polícia passou por nós com a sirene aberta, as luzes do teto a piscar. O gajo mantinha os olhos no tráfego à frente, por cima do capô vermelho, a franzir os olhos na claridade dos faróis que subiam a Heron Campos.
      – Então, – ele disse – vais me contar ou manter em segredo?
     Eu não respondi, mas olhei para ele.
     – Pareces bastante calmo sobre isso tudo. O que é que tem na mochila?
     – Dizes a tua mulher o que fazes? – perguntei.
    – O que eu faço? Queres dizer tudo? Qual é? Achas que eu quero levar um tiro com meu próprio revólver?
    O crioulo estava a desenrolar a gaze do punho, desinteressado, quando escutou o outro dizer:
    – Ei, escurinho, achas que o grandão, o Tisto, tem mais motivos do que nós para ficar com essa mochila?
    O crioulo estendeu seu braço esquerdo sobre o encosto do banco e encarou o gajo pelo retrovisor.
    – Começas a falar como aquele outro tipo, como se eu tivesse serragem dentro da cabeça. Vens com esse papo, a falar como se fossemos parceiros. Mas debaixo de toda essa merda, o que queres mesmo é o meu rabo, não é?
    – É isso aí. – O magrela disse, dando uma risada. – tens de impor respeito ou tratar de encostar o rabo na parede. Se deixares botar a cabecinha, pode ter certeza que daqui a pouco vai estar tudo dentro.
     O crioulo agora estava com uma touca de lã enfiada até os olhos. O seco a observar as placas na rua.
     – Onde é que se entra para Valado?
     – Na 170. É a próxima. Vá pela Ygartua.
     Ele tirou uma das mãos do volante. Olhou o retrovisor e virou para a pista da direita.
     – Meu deus, olha o nome dessa rua. Parece nome de cantor de calipso, não parece?
    – E se não encontrarem a mochila? Vamos voltar de mãos a abanar, ou o que? – eu disse.
    – Presta atenção, este não é o tipo de negócio que pode acabar num tribunal, sabes como é, entrar com uma ação. Tens que calcular de cabeça o quanto te vai custar se pisares na bola.
    O relógio digital do painel marcava 12:48 PM quando avistamos o Hotel Estoril, ainda azul mas começando a desbotar.
    – Estás a ver aquele estacionamento lá embaixo? Atrás do hotel? É só virar à esquerda e ir em frente – eu disse.
     Ele depois abaixou um pouco mais o vidro da janela:
     – Tens certeza de que é por aqui? Não quero meter o ombro na porta errada e deixar o maricas escapar.
    Fomos margeando o canil, por um pátio ou campo de atletismo que se estendia à esquerda. Podíamos ver as gaiolas, a uns quinze ou vinte metros, num dos ângulos do campo.
    – Pára por aqui – eu disse – de frente para a saída.
    O caipira estacionou e mostrou a arma, uma merda de cano curto com a empunhadeira recoberta de borracha.
    – Tá bem, vamos lá meter a mão.
   Passei os olhos ao longo da varanda e vi Pelon com a camisa para fora da calça, a uns dez metros de distância. Achei que estava a vomitar, pelo modo como se debruçava. Parecia surpreso. O tipo de gajo que, se um dia pusesse os pés numa prisão, antes de cair a noite já seria mulher de alguém.
    – Vai um pouco mais pra trás. Aqui não dá pra abrir a porta. – o crioulo disse.
    Ele então começou a dar marcha à atrás e parou. Disse de dentro do carro, com Pelon em pé do lado de fora:
   – Precisas consertar o portão.
   Pelon se virou para olhar o portão, sem dizer nada.
   – Sabes fazer isto, não sabes?
   – Eu vou largar este trabalho. – Pelon disse, ainda a olhar para o portão.
   O magrela concordou com a cabeça.
   – É uma boa ideia.
   O canil parecia um parapeito comprido com uma cobertura chata por cima, a cerca de cinquenta metros da casa.
   – Que tal nos convidar pra entrar? – ele disse, já do lado de fora, a correr a mão pelo corrimão pregado à parede.
   Pelon acenou com a cabeça, tratando de encarar as coisas objetivamente e percebendo que era capaz de aceitar o problema sem se perturbar demais.
   – A primeira coisa que tens que contar a eles é algo que já sabem. Entendes? – eu disse, a olhar diretamente para Pelon.
   – Ok – ele respondeu a segurar a porta para entrarmos.

 

   Peor

despesadiaria às 13:02
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Domingo, 15 de Fevereiro de 2015

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     um prejuízo do tamanho da Mónica - (14)

 

     Eram quase nove quando chegamos. Estava a pensar que não me tinha preparado para isso. Sabia que Bielo tinha uma Glock debaixo do banco. Mas ele não quis entrar com ela.
     – Vamos ter que esfolar esse gato de outro jeito – ele disse.
    Então descemos do carro e andamos ao lado da grade o pedaço que faltava do estacionamento. Não havia chovido, mas o chão estava molhado como se o tivessem lavado. Passamos pelo luminoso do Uncle Ben’s e diminuímos o passo, tentando decidir o que fazer no caso de estarmos fodidos. Parecíamos dois idiotas que não sabiam o que procurar. Desviamos de alguns carros, tentando demonstrar que tínhamos um propósito, como se soubéssemos o que estávamos a fazer. Um velho com cara de merda terminou de se enfiar na vaga à nossa frente e continuou dentro do carro, a falar sozinho bem devagar, como se fosse dormir. Tínhamos às costas outro carro a subir a rampa na direção das vagas cobertas.
     Paramos na calçada. Ficamos escutando o ruído da bola de basquete a bater no chão de madeira da quadra ao lado. Depois atravessamos a rua. Eu disse que gostava do Álamo, um edifício de esquina que parecia a Torre Eiffel cortada ao meio. Gostava do jeito que eles iluminavam o terraço. Bielo disse que nunca prestara atenção.
     Mais adiante passamos por um gajo a soldar um portão. Bielo perguntou sobre o armazém Eldorado. O gajo apagou o maçarico, levantou os óculos e disse: “Aquele ali, com a porta pintada de amarelo na parte de cima.”
     O prédio era todo de tijolos, com apenas dois andares. Subimos os degraus. Bielo falou depois que quase mudou de ideia parado em frente ao quadrado com o nome Depósito Eldorado esculpido em pedra na fachada do prédio. Mas aí já estava batendo e era muito tarde para recuar.
     Um sininho tocou quando abriram a porta, e por trás do balcão de fórmica a primeira coisa que vi foi um espelho grande rodeado de lâmpadas amarelas. Perto do corredor estava uma dessas mesas de copa, com rodinhas, empurrada para o lado. E mais para o canto, as cadeiras eram como bancos de parque, ao longo da parede. Uma espécie de atendente estava a olhar para a parte de cima da parede. Ele nem se mexeu. Uma das suas mãos estava em cima da braguilha, como se estivesse prestes a tirar aquilo para fora e urinar. Estava na verdade segurando uma 45 niquelada, sem apontá-la para ninguém.
     Esfreguei bem os sapatos no capacho felpudo para ganhar tempo e olhar em volta. Havia um monitor de TV montado no alto da parede, virado para baixo. Na tela aparecia alternadamente a imagem em preto e branco do estacionamento e da rua.
     O preto que abrira a porta nos deu as costas e, atravessando a sala na direção do corredor, disse “por aqui”. Fiquei a olhar aquele cabelo trançado e penteado com força para trás. Depois a coleção de canecas de cerveja na prateleira, alguns bichos de madeira entalhada pendurados na parede. Tivemos de abaixar um pouco a cabeça para descer uma pequena escada.
     Ali estavam os dois, na parte dos fundos. Tisto sentado numa cadeira de barbearia, parecendo um porquinho-da-índia. Na outra cadeira, um gajo grande com um jaquetão de marinheiro, botando uma touca que descia ajustado pela sua testa. Ambos falavam e davam risinhos ao mesmo tempo. O cheiro denunciava uma pintura recente, talvez uma tentativa de deixar o lugar mais apresentável.
     Na direita tinha caixas de papelão empilhadas contra a parede. Na esquerda, ao lado de plantas de plásticos cobertas de poeira, havia um banco comprido de madeira adaptado em aparelho de ginástica e embaixo dele estavam dois galos de briga em gaiolas de arame, um deles com as pernas raspadas, muito machucado.
     O gajo que abriu a porta, um crioulo com uma toalha sobre os ombros, sem nada por baixo, voltou a bater no saco de areia que estava pendurado no centro da sala.
     – Ei Bielo – disse Tisto, ainda a rir e a apontar para o crioulo – olha só pra essas pernas. Se não tens pernas assim, não deves nem entrar no ringue, meu.
     Bielo olhou para o negro a menear o corpo, esquivando, jabeando com as mãos protegidas com gaze. Depois olhou de novo para Tisto, ali sentado como a porra de um ursinho de peluche, com aquele cabelo liso riscado no meio.
     Tisto continuou a olhar, como se estivesse a achar muita piada naquilo, depois se virou para o lado, para o gajo que levantou, tirou o jaquetão e sentou outra vez. Depois ele voltou a olhar o preto e disse:
     – Então, Bielo. O que vai ser?
     – Estou com um probleminha.
     – Senta o rabo aí na cadeira e me dá um motivo pra me importar com isso, meu.
     – Meu amigo aqui quer se livrar de vinte e cinco quilos. Eu disse que talvez possas poupar ele desse trabalho.
     Um outro crioulo abriu a porta do lado e sem soltar a maçaneta disse:
     – Inês não pára de ligar.
    – Manda ela rodar a bolsinha. Mas que merda! Estamos divorciados há quatro anos e essa vaca ainda quer que eu a sustente.
     Os pés do gajo nem tocavam o chão. Ele resmungou mais um pouco e depois literalmente saltou da cadeira; foi até onde uma iluminação laranja sem brilho mostrava o corredor. Fomos atrás. Dobramos à direita. Vimos Tisto tentar girar a maçaneta e depois a tirar um punhado de chaves numa argola do bolso do casaco e a esperar o crioulo passar por ele, espremido no corredor estreito, para abrir a porta.
     Tentei caminhar em silêncio sobre o chão forrado de linóleo. O lugar tinha cheiro de mofo. A única luz, uma lâmpada de 50 watts, iluminava a pia, onde estavam pratos sujos, uma caixa de leite e um pacote de pão aberto.
     Tisto olhou para a porta e depois virou na direção de Bielo:
     – Posso dar toda a ajuda que precisar. Mas não quero surpresas. De onde veio?
     – Que importância tem? – disse Bielo – Estamos interessados em saber é pra onde vai.
     – Olha, meu, se estamos aqui a falar dos vinte e cinco quilos do Saviano é melhor irem vender essa merda no Pólo Norte.
     Bielo encolheu os ombros com mais indiferença do que a que sentia. Ia falar alguma coisa, mas ouviu a descarga da retrete e parou. Olhou para a porta fechada que levava à casa de banho. Viu quando um tipo ossudo saiu lá de dentro a afivelar o cinto. O gajo usou o pé para tirar a porta da casa de banho do caminho. Vestia uma camisa floreada de mangas curtas. E, apesar da luz fraca, pude ver que tinha uma tatuagem no braço esquerdo dele – alguma coisa em preto e vermelho – mas não quis me esforçar para saber o que era.
     – Olha, Bielo, eu vou dizer o que precisas saber e o que omitir não irá prejudicá-lo.
     Tisto estava a agir como uma criança que sabe um segredo, louco para contar, mas querendo que alguém perguntasse primeiro.
     – Sabe onde se encontra gente assim como ele? – Tisto perguntou, a apontar para o gajo. –Nas recepções do departamento de finanças da narcótico.
     Depois ficou a esperar. Bielo devia perguntar o que ele andava a fazer em recepções de finanças da narcótico, mas não se deu ao trabalho.
     – Quando é que ficamos amigos deles, Bielo? Queres saber?
     O telefone tocou. Tisto atendeu, a apontar para uma cadeira com a outra mão. Bielo bateu o nó do indicador sobre uma escrivaninha vazia em frente ao sofá e continuou de pé.
     – Quer ir ao Dome? – ele disse.
     – Agora já estamos aqui.
     – É, agora já estamos aqui – ele repetiu.
     Quando o preto entrou, vestindo a t-shirt, o gajo da tatuagem virou o suficiente para ver a sala toda. Dando dois passos para trás, tudo o que desejava era manter o Bielo e eu juntos dentro do seu campo de visão. Tisto tampou o bocal do telefone um instante, dizendo para ele enquanto batia no copo: – Porque não serves mais um com aquelas azeitonas.
     Andei até o sofá, estava cansado de ficar de pé. Bielo continuava lá parado, a tentar avaliar o que era mais importante, como se estivesse se dando uma escolha.
     O gajo veio pelo balcão com o martini e o colocou no guardanapo na frente de Tisto. Tisto desligou. Tomou um gole do martini, pôs uma azeitona na boca, mastigou-a algumas vezes e depois tomou outro gole.
     – Era o Saviano – ele disse. Depois fez uma pausa batendo no copo. – Por que é que não repetes a dose?
     O gajo serviu rapidamente.
     – Quer mais gelo?
    – Não, assim está bom – virou a cabeça e continuou. – Percebes que tens um problema, Bielo, e que podes querer dá-lo a uma pessoa em posição de te prestar um favor. Afinal, do que é que o Calucho morreu?
     – Do que quer que tenha sido não vais te contagiar.
     – Muito bem, vamos bater em algumas portas.
     Bielo franziu a testa, revirou os olhos, como se tentasse fazer sua memória funcionar.
    – Escuta só isto, Tisto: era difícil pensar naquele tipo como homem de negócios. Tudo o que ele sabia sobre cocaína era cheirá-la. Então qual é o problema?
     Tisto, depois de colocar seu martini sobre a mesa, puxar uma cadeira e sentar-se, perguntou:
     – Já acabou?
     – Ora, Tisto, que merda.
     Tisto olhou para o gajo ossudo:
    – Conta pra ele o que é que fazes.
    – Eu faço companhia às pessoas que precisam – disse ele, desviando os olhos de Bielo para o sofá onde eu estava.
    – Ah, é? Agora diz pra mim porque é que preciso perceber o que tu fazes?
    – Porque eu vou acompanhar o teu amigo ali. Isso tem um significado pra ti, não tem?

 

    Peor

despesadiaria às 03:41
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Sábado, 14 de Fevereiro de 2015

 

Imperialogia

 

O funeral foi a pior parte. Um dever que logo se transformou em alucinação coletiva (e talvez tenha sido melhor assim). Hula hoops imaginários rodavam em torno dos braços moles do pároco da vila: nas suas trajetórias geminadas víamos o infinito; fungávamos a cada volta completa, mas não era de tristeza — ou, pelo menos, não na forma a que nos habituáramos a senti-la. Depois, concentrávamo-nos no ondular das chamas em torno do altar e, num piscar de olhos, todos os naperons ardiam em línguas que subiam até ao teto abobadado, que troçavam de nós e de tudo; até nos fixarmos na personagem que falava atrás do púlpito. O homem parecia feito de cera e as linhas que uniam as narinas à face inferior do malar acentuavam a gravidade do discurso. Dissertava sobre a n-ésima dimensão do pós-vida, usava os indicadores para apontar as páginas amarelecidas que tinha na sua frente. O séquito de beatas grisalhas baloiçava como espigas ao vento enquanto recebia o sermão — se o tom subisse, estremeciam consoladas, uma manta era-lhes colocada sobre os ombros. Sentavam-se imediatamente atrás da família e, pelo cintilar dos olhos nublados quando torciam o pescoço, julgavam protegê-la de nós; de nós, que víramos o grande plano do Senhor nas formas concêntricas de uma poça incomodada. Eu apertava as mãos da Inês nas minhas sempre que as apanhava a espreitar.

Aquelas megeras, agrilhoadas aos bancos corridos pelos seus rosários. A cara do menino podia ter aterrado em qualquer lado. Os médicos disseram-no, e durante toda essa semana a mensagem viajara em ecos, fizera vibrar balcões e enriçar mises: se o rapaz tivesse tido tempo para dar mais dois passos, era como se tivesse adormecido de bruços sobre o alcatrão; se o rapaz tivesse tido tempo de chegar a casa… A diferença estava apenas na lama; a lama que escorria pelo pescoço quando o virámos; a lama que nos sujou as mãos. O rasto brilhante de um verme.

Alguns de nós seguiram o carro funerário até ao cemitério. Eu não tive coragem. Fiquei sentado na escadaria da igreja, a apanhar sol. Estava um dia maravilhoso, quente e pintado de amarelo. A Inês fez-me companhia: encaixou-se numa cova do degrau imediatamente abaixo do meu. Curvou-se, apoiando o queixo nas mãos e os cotovelos nos joelhos, sem cuidar que a cintura das calças escorregara — e muito menos que eu via outros infinitos no espaço escuro acima da presilha de ganga. A negligência com que as duas nádegas brancas se mostravam era enternecedora. Contemplei-as no longo silêncio que se estendeu até a Inês inclinar timidamente o pescoço na minha direção. Um silêncio simples. Foi como encontrar um banco no topo de uma subida ingreme, sentar-me e tentar contar as janelas dos prédios no fundo do vale; e o sol caía, os vidros fundiam-se numa massa alaranjada, acastanhada, e por fim negra. Estava cansado, tão cansado que demorei algum tempo a responder-lhe ao gesto. Não tinha vergonha de ser apanhado a espiar-lhe o rabo, mas sabia que ela se preparava para me confidenciar algo e que queria que eu olhasse bem para as palavras.

— Eu sabia que aquilo ia acontecer. Eu vi. — Fez uma pausa, mudou os olhos do meu nariz para os meus pés. — Uma forma escura, feia, na espuma. A poça. E vi que ele já estaria morto quando lá chegasse. À poça.

Achei que ela estava a gozar comigo e que devíamos voltar para casa. Não havia mais nada para nós ali. O verme partira.

— Tens o rego do cu à mostra — respondi, enquanto me levantava.

E deixei-a de pé nas escadas, com trança tombada, a puxar as calças para cima, salgando os sapatos pela última vez.

As velhas desculparam-nos quando os alperces começaram a cair porque, como era costume todos os anos, precisavam que eles caíssem para os nosso braços em vez de caírem para o chão — manias do catolicismo. Nessa altura, por recomendação dos professores, das revistas e das rubricas dos programas da tarde, quiseram ensinar-nos a lidar com a perda. Para alguns, a aventura durou apenas uma hora: o suficiente para inventar os sentimentos de revolta que se encaixavam no guião e justificar o preço total da consulta; mas a Inês, por exemplo, tocou-me à campainha numa tarde de Setembro para dizer que tinha aprendido a respirar e que ia estudar para o Porto.

Eu não sabia que a pequena lição sobre o movimento da caixa torácica

(— Olha: inspiiiiiiiiiiiiiira… e… uuuuuuuuffffffffffffff. Percebes? Reparaste no meu peito? — Reparara em duas laranjas ampliadas através de uma lupa de arame, espuma e algodão. — No movimento? — Para cima, tentando escapar das copas; para baixo, encolhendo até deixar um espaço vazio que a camisola cobria como um toldo. — É tão importante saber respirar.

— É tão importante estar vivo.)

era uma despedida. Passaram-se anos sem que ouvisse sequer falar dela; nos primeiros tempos, recordava-a nas escadas da igreja, aos saltinhos, procurando encaixar-se melhor nas calças; mas depois dava por mim a revisitar todo o funeral, a ouvir de novo o galope violento dos soluços, o choro dos vitrais coloridos. Desisti de pensar no quão bonita a Inês estava nesse dia, com o cabelo preso numa trança gorda onde toda a vida se escondia, tentando passar despercebida.

Reencontrei-a há dias; num bar, a olhar para uma imperial de cristal e a sorrir.

 

S. White

despesadiaria às 19:06
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Quarta-feira, 11 de Fevereiro de 2015

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Vou agora a casa da Rosalina buscar o pão. Não é que tenha fome, ou sequer que a Rosalina tenha pão, mas qualquer desculpa serve para sair desta casa de cinco crianças - eu acho que só fiz três - e uma mulher que já não aquela que eu escolhi. De maneiras que venha o pão.  Se a Rosalina estiver de bom humor e o marido com o camião lá para os Pirenéus, mais coisas hão-de acontecer.

Este cabrão deve achar que eu sou parva. A Rosalina deve achar que eu sou parva. Sai-me de casa às nove para andar 150 metros e voltar com o pão às onze e o cabelo desgrenhado. Tanto faz, já não me interessa muito. Soubesse ele que só quatro dos filhos são dele e talvez o assunto merecesse discussão. Já devia ter ido embora, ou ele já deveria ter ido embora, sei lá que merda de inércia tomou conta de mim, eu que tinha todos os rapazes à perna. Como deixei que isto acontecesse?

Para a semana faço 18 anos. Até que enfim. Já combinei com o primo Abílio, Marselha, que seja. O trabalho pode ser duro mas eu tenho de sair desta casa. Não sei que espécie de teatro é este que os meus pais montaram, nem a quem se destina. Entre o silêncio sepulcral e a guerra civil, não sei o que é melhor. Vou ter com o padrinho. Ele sempre me tratou bem, melhor até que aos meus irmãos, nunca percebi porquê.

Desta vez não volto. Estou farto de andar com o camião para traz e diante. Fico com a Stephanie, mando uma carta à Rosalina a explicar tudo. Já chega de fingimento.

DoVale

despesadiaria às 11:04
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Terça-feira, 10 de Fevereiro de 2015

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Bazaar

 

1. Nuno foi acordado por uma mensagem que acabara de receber no telemóvel: «Meu, onde andas? Já tamos no Bazaar e a Tita aqui à tua espera…». Era a sua deixa. Levantou-se do sofá, vestiu as calças de ganga e a sweat do rugby e saiu de casa. Não ia beber nessa noite, pensou. O aniversário da Martinha Bastos não se esperava a festa mais divertida do ano. Decidiu levar o Golf, o carro em segunda-mão que os pais lhe ofereceram quando, há dois meses, Nuno soube que entrara na faculdade, no curso de Gestão.

Do Bessa, onde morava, até ao cais de Massarelos não demorou sequer cinco minutos. Lá, como de costume, não havia lugar onde estacionar, e Nuno teve que deixar o carro numa das vielas esburacadas e enlameadas atrás do edifício em ruínas da fábrica do peixe. Não percebia o sentido de abrir uma discoteca naquele desterro. Porquê tão longe da Foz, de Leça, zonas com muito mais espaço e animação? Lembrou-se então das noites do secundário passadas em sítios agora esquecidos pela moda – o Indústria, o Estado Novo, o Twins… templos irrecuperáveis e dos quais, aos 19 anos, já sentia saudades. Na verdade, fora ele que, antes de todos, os abandonara. Não gostava de testemunhar a decadência dos espaços quando, por desleixo da gerência ou feitio do seu próprio aborrecimento, se tornavam demasiado batidos. Guardando uma colecção de noites perfeitas e irrepetíveis faria delas o padrão de referência e fonte de escárnio por toda a novidade que lhe apresentassem.

Cismando naquelas coisas, entrou no Bazaar e percorreu a discoteca. Era um edifício estreito virado sobre o rio, um antigo armazém de mercadorias do tempo em que os barcos ainda atracavam naquele cais. A noite era de casa cheia. A enorme popularidade da Martinha permitia a certeza de estar lá todo o Garcia em peso. Também o primeiro ano da Católica, onde agora estudava Direito, aceitara o seu convite, apesar de a conhecerem apenas das primeiras semanas de aulas. Era um desfile de caras que Nuno conhecia bem. Cumprimentou algumas com um aceno de cabeça, outras com um aperto de mão e um sorriso pouco franco, quase nenhumas com um abraço. No piso de baixo, o mais calmo, encontrou muita gente a fumar em rodas impenetráveis de conversas sobre curtes e bebedeiras heróicas, em que se violam várias disposições graves do código da estrada nas pistas de aceleração da Marechal ou da Avenida Brasil.

Decidiu subir ao primeiro piso. Lá estava Martinha, sua amiga dos tempos da primária, com quem partilhara fins-de-semana imemoráveis de tagarelice e cafés à beira-mar. Era por ela que ali estava: «Parabéns loira, estás o máximo hoje». Ela agarrou-se aos ombros de Nuno e abraçou-o com força. Apresentou-lhe alguns dos seus novos amigos da faculdade, quase todos irmãos mais velhos de colegas de Nuno no secundário: «Conheces o meu irmão? Também joga no Sport»; «Não és primo da Carlota? Morena, baixinha? Tive explicações de matemática com ela», e coisas afins que se dizem para testar e garantir a familiaridade do grupo – método precioso ensinado por pais e avós desde cedo como instinto de defesa contra a selvática mobilidade social destes tempos.

A fumar na varanda estava Rita, a sua namorada, entre duas raparigas demasiado morenas para Fevereiro e que bebiam vodka. «Nuno!», chamou-o. «Olá baby», e beijou-a entre os lábios finos e os dentes brancos que sabiam a tabaco. Nuno adorava quando ela lhe oferecia um carinho disponível, ainda que insincero, e beijou-a por mais tempo que o apropriado. Sabia que ela apenas condescendia o excesso por despique à concorrência feminina que assistia, pela provocação que Nuno, namorado bem-parecido e visivelmente apaixonado, assumia naquele contexto. «Vá, meninos! Está toda a gente a olhar para vocês». Rita apresentou as amigas e Nuno cumprimentou-as sem memorizar os nomes. Depois, com serena desenvoltura, libertou-se das três e dirigiu-se ao bar onde avistara Tiago, um amigo de turma solitário e já bastante bêbado, cujo único propósito naquela noite era curtir com uma das amigas de Rita que acabara de conhecer. Nuno prometeu ajudar. Voltou ao grupo com o amigo e apresentou-o com redondos elogios. Nesse momento chegou ao pé deles um rapaz estranho. Usava jeans justos e uma camisola de lã grossa, tricotada num padrão psicótico que baralhava os sentidos. Tinha o cabelo curto, barba rala, um piercing na orelha, e vestia um ar leve que não era altivo, só ingénuo, atrevido e ingénuo. Por não se parecer com ninguém que estivesse no Bazaar, naquela ou noutra noite qualquer, a personagem intrigou Nuno. «Olá olá. Sou o Tomás». Era amigo de Inês, a rapariga por quem Tiago se interessara. «O Tomás gosta de ser alternativo. Anda em Belas Artes», desculpou-se Inês «Já nos conhecemos desde a Escola Francesa. Os nossos pais são amigos». Tomás parecia habituado a estas explicações e não ficou incomodado. Cumprimentou toda a gente, disse que era a primeira vez que saía naquele sítio, que estava a adorar, que a decoração tinha muito gosto, minimalista e elegante, que todos se comportavam como se estivessem numa gala, tipo nos Óscares, que nunca vira tanta gente bonita por metro quadrado. Só a música não apreciava especialmente; preferia uma coisa mais dançável. «Mas isto é música de dança», atirou Nuno. «Então, porque não está ninguém a dançar?», riu-se Tomás, e Nuno só soube encolher os ombros. O rapaz estranho afastou-se do grupo dizendo que ia espreitar os cantos. «Tem piada o teu amigo», disse Rita para Inês. Nuno, como já adivinhava, só achou desdém na voz da namorada.

Dois whiskys depois, vendo-se enredado nas conversas de delinquência chique que tanto tédio lhe causavam, decidiu dar uma volta pelo bar. Acompanhados pela vibração pulsante da música house cruzada pelos feixes de luz galáctica, os amigos de Martinha deliravam de riso ao reclamarem do equilíbrio oscilante da aniversariante passos de dança cada vez mais arrojados. Nuno viu ao longe os primeiros desistentes que se dirigiam para a porta. Um enorme aborrecimento caiu também sobre ele e decidiu nesse momento acompanhá-los. Deu mais uma volta, viu Tiago e Inês junto à varanda, muito chegados. Tita gargalhava com Martinha e os amigos, embalada na euforia dos shots de absinto. Não reconheceu mais ninguém. Desceu ao piso térreo, agora totalmente deserto. Espreitou no bengaleiro, usou a casa de banho uma última vez.  À porta da discoteca mandou duas mensagens, uma a Martinha, outra à namorada, desculpando a saída súbita com uma má disposição. Quando se deitou nessa noite decidiu que aquela tinha sido a última vez que entrara no Bazaar.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 10:46
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Segunda-feira, 9 de Fevereiro de 2015

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(micções)

 

O armário do quarto dava passagem para uma casa de banho, o que, por si, já é sinistro. Sobretudo se, dentro do armário, no recanto mais escuro, estiver o cadáver de uma prostituta embrulhada em celofane. Encontrei-o há umas semanas, quando fui procurar um volume de Pausânias nas várias caixas de livros que o professor Urbano lá guardava. Desde Setembro que ajudava o professor na revisão final e na formatação do texto da sua tradução da Naturalis Historia, de Plínio, o Velho. Todos os Sábados, pelas oito horas da manhã, nem mais nem menos, comparecia no terceiro andar direito do número 21 da Rua X. O trabalho era de imediato iniciado, começando o professor por me ditar dez páginas manuscritas, que eu batia no teclado do computador. De seguida eram impressas, e passava-mos à revisão minuciosa de cada parágrafo. Pelas dez e trinta o professor interrompia os trabalhos. Uma pausa para o chá de hortelã, que comecei a apreciar, e bolachas de canela. Nem durante este período o professor aliviava o seu semblante austero e rígido. As palavras que trocava-mos eram poucas e formais, a mais das vezes sobre o estado do tempo e a saúde dos familiares (em particular dos meus, pois o professor era solteiro, e não lhe conhecia parentada próxima), quando não sobre o trabalho em curso. Neste Sábado as coisas não se passaram de modo diferente. Contudo, um desejo irresistível e mórbido de ir ver a prostituta morta no armário abateu-se sobre mim. Pedi licença ao professor para ir à casa de banho, que prontamente me foi concedida (juntamente com a indicação de que a casa de banho do corredor não estava operacional). Assim fiz. Entrei, procurando afastar os fatos do professor, e segui direito ao recanto mais obscuro do armário. Lá estava ela, a prostituta. Ao lado, porém, parecia estar outro corpo. Aproximei-me e vi a Dona Lurdes, a empregada de limpeza do professor Urbano. Saí, fechei a porta, e voltei para junto do professor. Terminei o meu chá, e comi mais duas bolachinhas.

 

nev

despesadiaria às 14:35
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Sábado, 7 de Fevereiro de 2015

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Área de Serviço

 

Toda a gente as usa de vez em quando. Alguns quase todos os dias. Ninguém está para as gabar, ainda assim. A mim  importam-me. Careiras, é verdade. Isto de andar sempre de um lado para o outro, abaixo e acima. Para baixo outra vez. Nunca como deve de ser em lado nenhum. Ali a gente entra, não há frio nem calor. Primeiro conhece-se o cheiro, a ordem dos espaços. As fardas dos rapazes e raparigas das bombas. Ao fim de um tempo distinguem-se as mais limpas e bem governadas. Ao fim de uns anos fazem as vezes de chegar a casa.    

 

[Cláudia.] 

despesadiaria às 22:59
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Sexta-feira, 6 de Fevereiro de 2015

 

Sed ut perspiciatis unde omnis iste natus error sit voluptatem accusantium doloremque laudantium, totam rem aperiam, eaque ipsa quae ab illo inventore veritatis et quasi architecto beatae vitae dicta sunt explicabo. Nemo enim ipsam voluptatem quia voluptas sit aspernatur aut odit aut fugit, sed quia consequuntur magni dolores eos qui ratione voluptatem sequi nesciunt. Neque porro quisquam est, qui dolorem ipsum quia dolor sit amet, consectetur, adipisci velit, sed quia non numquam eius modi tempora incidunt ut labore et dolore magnam aliquam quaerat voluptatem. O problema é o preço? Pinho. O dilema é o espaço? Crematório. A preocupação é com a justiça? Harvey Keitel. O inimigo é a injustiça? Taxidermia. O compromisso é com a ciência? Formol. O chamamento é o da comunhão com os elementos? Cinzas espalhadas ao sabor de uma balsâmica brisa de sudoeste sobre a A5 (por exemplo). Quem fica decide, acorrentado apenas aos seus fantasmas ou hierarquia de necessidades, conforme o que ocorrer primeiro, promoção não acumulável com outros descontos. Dos bens espera-se que sigam um percurso protocolar, mas à última vontade deverá conceder-se o desejo último da intransição. Ut enim ad minima veniam, quis nostrum exercitationem ullam corporis suscipit laboriosam, nisi ut aliquid ex ea commodi consequatur? Quis autem vel eum iure reprehenderit qui in ea voluptate velit esse quam nihil molestiae consequatur, vel illum qui dolorem eum fugiat quo voluptas nulla pariatur?



E. (& C.)

despesadiaria às 21:51
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Quinta-feira, 5 de Fevereiro de 2015

 

De quem?

 

O meu cão é um podengo de pêlo curto. Pêlo louro, diria, embora não esteja certo que se possa aplicar estas terminologias a cães. O meu cão é uma cadela, mas é complicado começar a apresentação de um animal de estimação pelo sexo, é mais fácil introduzir antes a espécie. Noto agora que mesmo depois da espécie, e antes do sexo, senti-me impelido a distinguir-lhe a raça e cor do pêlo (o tamanho do pêlo faz parte da caracterização da raça, de outra forma penso que não a teria discriminado). A minha cadela chegou a minha casa com poucos meses, não sei precisar quantos, mas a vizinha que me bateu à porta com o animal nos braços disse duas coisas antes de me deixar falar: «foi abandonada» e, «ainda é bebé», uma informação e uma tirada de vendas, portanto. Quando perguntei o nome da bebé, disse -me «Josefina», e eu pensei «safa!» mas respondi «compreendo». A minha vizinha era vegetariana e, logo, bem treinada num discurso de transferência de culpa que fui obrigado a interromper para lhe dizer que ficava com a cadela. Fechei a porta e não nos voltámos a falar.

A minha cadela tornou-se bastante conhecida na rua, porque é bonita - assim me garantem as minhas vizinhas que também passeiam cães - e porque é muito amigável com as pessoas. Histeria mútua, pareceu-me. Por me ter sentido pressionado a alterar rapidamente o nome, chamei Hobbes à minha cadela, e tentei convencer as pessoas de que a homenagem que se prestava não era ao amigo de Calvin, o pequeno herói da banda desenhada, mas ao próprio Thomas Hobbes, com quem a minha cadela parecia partilhar um estado de constante miúfa da realidade. O facto da minha cadela ser uma menina também vinha à baila na contra-argumentação a que normalmente me sujeitavam, mas eu avançava que a esposa do Thomas Hobbes devia chamar-se Sr.ª Hobbes, bem como a sua mãe, e eventuais filhas ou esposas de eventuais filhos, pelo que não era a primeira vez que Hobbes tinha sido aplicado a uma entidade feminina. De qualquer forma, a vizinhança entendeu, a bem das dignidades do animal e de quem o chamava, que o nome seria adaptado a Lopes, forma como passou a ser conhecida na rua.

Alguns anos mais tarde li numa revista cujos artigos eram todos em forma de lista, que um dos sinais de inteligência de um cão é o número de palavras ou expressões que reconhece, e que acima de dez estamos perante um animal superior. Pelas minhas contas a minha cadela entendia Hobbes, não, rua, banho, papinha, aqui, que é esta merda?!, senta, e dá a patinha. Nove. Pareceu-me que a culpa era minha por não ter sentido necessidade de esticar a comunicação para lá destas incidências, mas como não queria privar a minha cadela de uma educação completa fiz um esforço por conseguir uma décima palavra. Consegui que reagisse a primeiro-ministro: sempre que dizia «olha, Hobbes, é o primeiro-ministro», ela soltava um latido único e olhava para o televisor. Para estar certo de que não era o meu tom de voz que lhe provocava esta reacção específica, tentei algumas vezes dizer «olha, Hobbes, é o procurador-geral da república», ou «olha, Hobbes, é o cardeal patriarca» e nesses casos apenas olhava para mim em silêncio e voltava a deitar a cabecita logo de seguida.

A minha cadela não gostava de outras cadelas, o que se foi tornando um problema sério à medida que foi ganhando confiança no seu porte de cão de caça. Se as cadelas fossem maiores do que ela, rosnava baixinho e de longe, à cautela. Se fossem mais pequenas perseguia-as e subjugava-as, até eu finalmente conseguir intervir. Thomas Hobbes deve ter dado voltas no túmulo. Aos cães (e para com eles) era indiferente. Até ao período do cio, altura em que a rua por debaixo da minha varanda se enchia da cachorrada local a fazer-lhe a corte como num filme da Disney. Quando eu saía, mesmo que sozinho e após longo e diligente banho, o cheiro que se me colava provocava os cães das redondezas que me seguiam a alguma distância mas com perserverança. Entendiam que eu não era uma cadela (dominavam com certeza mais de dez palavras, também) mas vinham comigo hipnotizados para todo o lado, como num filme do Chaplin. Durante cerca de quarenta dias por ano os funcionários dos autocarros e do metro, bem como os meus colegas de serviço, foram-se habituando a ver-me na companhia de meia dúzia de animais arfantes.

Há cerca de um ano enamorei-me de uma moça que conheci através de amigos comuns e marcámos data para casamento. Na semana passada a minha noiva fez saber que não temos condições para ter uma cadela na casa nova, pelo que é com mágoa no coração que estou a tratar das diligências para me livrar dela.

 

Gouveia

despesadiaria às 16:00
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Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2015

 

Vivenda Dang

 

Na tentativa de cortar caminho até ao tribunal, meti-me por uma velha rampa de alcatrão esburacado; uma rua bem conhecida do meu passado de criança esférica, onde, apesar da inclinação obscena, há casas de um lado e do outro: vivendas geminadas, adegas clandestinas, garagens recheadas de ancinhos desdentados; uma vizinhança apodrecida, coberta por um manto oxidado de esquecimento e artroses várias. É uma daquelas ruas que atestam o espírito confuso do lugarejo que aos poucos se habitua ao estatuto de subúrbio. As vidraças das marquises estremecem ante o bulício da via rápida, mas a identidade do lar persiste (e as coelheiras fedem). As casas têm nomes: no muro da frente de cada vivenda existe uma placa em azulejo que, entre rabiscos de guardanapo, batiza o imóvel. O costume define-se a si próprio e repete-se, qual novena moída entre gengivas de piorreia. Estiveram sempre ali, os apelidos de árvores de fruta; por isso, nunca reparei nesses nomes de família, nomes de sonhos, nomes de piadas privadas e muito queridas; nomes pintados a letra azul serifada, orgulhosos no seu pequeno mural dividido à caixa de ovos. Mas talvez hoje tivesse acordado com a disposição para reparar nos muros, nas pedras soltas, nas folhas pálidas das iúcas desidratadas; talvez o tédio das férias de juntasse ao abandono emocional que me levou a calçar um par muito gasto de Chuck Taylors; ou talvez a matemática das associações simples me recordasse dos anos passados desde a última vez que desci aquela rua.

No cimo da ladeira, lugar onde se cruzam outras duas ruas que por pouco não a superam em inclinação, os meus olhos agarraram num desses retábulos e quase o arrancaram. Dizia: Vivenda Dang. Parei. A fachada encardida do tribunal não estava à espera que eu lhe cortasse o fio correto, nem o meu registo criminal deixaria de poder ser usado para limpar o cu a um bebé se eu me atrasasse. Importava mais fruir o nascimento daquela memória. Há semanas que procurava a oportunidade de criar algo parecido a isto: uma memória à qual fosse possível dizer adeus, como um ponto que fixamos distraidamente antes do comboio partir apenas para ter a consciência de que o vamos deixar para sempre — e é definitivo, porque mesmo que voltemos a passar pela mesma estação, o ponto não se anuncia e nós não sabemos como o procurar; o tipo de ponto que fecha todas as trajetórias.

Tudo o resto — as outras casas, as rampas de cimento por onde se acede às garagens, os caixotes do lixo diagonalizados, com calços nas rodas — emanava uma familiaridade distante e insuportável. Em frente à Vivenda Dang está uma moradia caiada; em frente à Vivenda Dang estava eu, sabendo-me capaz de descrever essa moradia com precisão digital. Era lá que costumava passar as tardes quando ainda usava clipes coloridos na bainha das calças. Abria-me a porta uma miúda franzina; as pontas dos cabelos batiam-lhe no queixo, o processo estilóide do rádio mais parecia uma agulha. Estudou comigo desde a primária até ao nono ano e, como todos os meus colegas, dedicava-me pouco mais do que uma tolerância passiva. Isso cumpria com a minha noção de amizade e eu era-lhe muito grata por me deixar subir até às águas-furtadas que lhe serviam de quarto. Lá havia um modem omnipotente, que rapidamente se transformava num calorífero de qualidades igualmente impressionantes; havia pósteres do João Moutinho; havia uma batida interventiva, vozes duras e pescoços a acompanhá-las; e eu fundia-me na colcha de patchwork e observava a aeróbica dos dedos da rapariga nas salas de chat, a reverberação das colunas da aparelhagem, a cavaqueira entre amigos — enquanto um gato chamado Billy pisava as minhas coxas com as unhas para me lembrar de que eu existia. Depois, lanchávamos ovos mexidos com muita margarina.

Não consigo despedir-me voluntariamente deste tipo de memória. Foi nela que vi pornografia pela primeira vez. Esse ponto é nada mais além de uma experiência adolescente ordinária, mas não se desvanecerá numa mancha achatada pela velocidade de afastamento; estará sempre ali, e a cena repetir-se-á eternamente, uma loura e um tipo cheio de tatuagens num estaleiro coberto pelas formigas do satélite. Por isso, eu precisava da Vivenda Dang. Precisava de me querer lembrar dela para depois decidir esquecer-me dela. As coordenadas eram as ideais: Dang em nada se parecia com os comuns apelidos, ou com o sonho rebocado que estreia uma família no proprietariado; Dang trazia uma novidade capaz de superar a heresia histórica de cravar um metálico Lar Londrino no pequeno prédio da base da ladeira — a bisavó demente dos prédios do outro lado da vila. Era uma fantasia tricolor: vermelho-tijoleira, verde-guacamole, mármore-barato; linhas direitas, obedecendo à corrente estilística do caixote de eletrodoméstico (modelo frigorífico); telhado-tipo com empala-pardais de bico rombo, enfeitado por tiras ondulantes de verdete-também-ele-tipo; quintal onde cresciam felizes os limoeiros prenhes e as piteiras de pontas secas, prontas a colher para usar nos bordados. Na folga entre a chapa negra do portão e o chão calcetado viam-se quatro patas de cão. Um Toyota Starlet amarelo — o mesmo tom amarelo das botinhas de bebé tricotadas antes de se saber o sexo da criança — espreitava de dentro de uma boca escura, com prateleiras cariadas e garrafões de conteúdo misterioso.

Estive ali, no topo da ladeira, empoleirada numa janela de cinco minutos por dois raios de sol compridos e cortinhas de linho marfim. Ninguém passou, e eu soube que seria muito fácil esquecer-me disto — vai ser muito fácil esquecer-me disto assim que queimar esta folha. As pessoas têm problemas com as despedidas porque não sabem por onde começar, ficam encostadas à travessa dos croquetes até não haver vestígio das miniaturas de coco.

Segui para o tribunal. Um pato nadava no quadrado em frente às portas giratórias. Acenei-lhe um adeus.

 

S. White

despesadiaria às 09:00
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Segunda-feira, 2 de Fevereiro de 2015

 

XI

 

Eram sete horas da tarde, o barco tinha acabado de atracar. Sai aos empurrões por entre a chusma, não reconhecia a urgência que se lhe impunha. A paragem estava à pinha, um cão cirandava por ali à cata de um osso, servil a todos e a ninguém. Não quis esperar, apressava cada vez mais o passo (e)levando o peso dos muitos dias nas pernas. O autocarro que subia a rua acabava de passar por ela. Era sempre assim, o destino a dizer-lhe que tomava a decisão errada. Pelo caminho, um prédio em obras chama-lhe a atenção. Andaimes revestidos por uma rede através da qual se vislumbrava uma composição de azulejos a preencher a parede da frente. Inclina a cabeça para dentro de um buraco aparentemente invisível. Todo o seu corpo é sorvido de imediato pela imanização que vinha de dentro. Um silêncio mortal calava a atmosfera. No meio de um lago, sentado num barco, um jovem acariciava as penas plúmbeas de uma pomba. Afago atrás de afago, o animal semicerrava os olhos, adormecia o sentido do voo e acordava o mistério da queda. O esqueleto canídeo ergue-se no precipício da fome e rompe por dentro daquele lugar insuspeito como uma seta inflamada, uma pasta de sangue e pêlos a manchar aquele cenário idílico. Desvalida, a mulher dá alguns passos para trás sem se aperceber do desvio da entrada enciclopédica do workshop das cinco da tarde.

 

gisandra

despesadiaria às 23:18
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Sexta-feira, 30 de Janeiro de 2015

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Sabia que o momento haveria de chegar, ou melhor, sabia que a sua crónica falta de sorte só o poderia fazer esperar que esse momento chegasse. Mas, ainda assim, não estava preparado. Não tinha qualquer plano engendrado para uma narrativa convincente. Raio do puto, aos 17 anos não é suposto andar a vasculhar o armário dos pais (ou é?). A caixa de charutos escancarada, as fotografias de Moçambique e o pior é o que elas contam, apesar de já nem ele saber bem o que elas contam. Sabe apenas que não lhe apetece falar nisso há mais de quarenta anos. Promete ao filho que amanhã lhe conta tudo, agora tem de sair - e sai mesmo porta fora, apesar de o telejornal dizer que são horas de jantar.

Vai avançando pelo bairro, caixa de madeira nas mãos, indiferente à chuva que manda todos recolher a casa, à tasca, ao salão de jogos, às ruínas do velho cinema. Pára debixo do que resta do grande que outrora abrigava quem partia na carreira para a cidade. Pousa a caixa no murete de betão fora de prazo, abre-a, encontra o velho papel amarelecido mas ainda impecavelmente dobrado em quatro. Tira o telemóvel do bolso, marca o número.

- Sou eu. O meu filho descobriu a caixa, vou ter de lhe contar tudo.

Ouve um suspiro, um longo suspiro, um clique, depois o chilreio electrónico que estas máquinas sempre fazem quando querem sublinhar que o outro deixou de querer ouvir o que se tem para dizer. Regressa.

É tarde, mas ainda há luz na cozinha.

O puto está sentado à mesa, com os olhos fixos na porta que dá para o quintal, adivinhando que o pai vai entrar a qualquer momento.

Não há como dizê-lo de outra maneira, pensa, por isso o melhor é ir direito ao assunto.

- Tens duas meias-irmãs que nasceram em África. Moram ali para os lados da estrada do monte. Queres conhecê-las?

DoVale

despesadiaria às 23:38
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Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2015

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Salamanca

 

Nesse ano não se falou noutra coisa. Nos clubes, nos jornais e nos cafés da cidade, as conversas inflamavam-se num furor instantâneo. Desmedia-se a realidade, a razão e os cálculos, exaltava-se a glória e o sucesso do Homem quando alguém abordava o assunto. “Será a obra do século!”, diziam os promotores e as dezenas de apaniguados que proclamavam as maravilhas de todo o plano. O futuro traçar-se-ia sobre trilhos dourados: sobre eles desaguaria às portas da cidade toda a riqueza do continente, numa torrente semelhante à do rio que nela passa, uma força paralela e irmã – a dele ciclo impassível da natureza, a outra motor inextinguível do engenho humano, ambas constituídas por desígnio divino. A cidade mobilizou-se como se de uma revolução se tratasse. As projecções favoreciam as expectativas gerais e decidiu-se, com a fervente exaltação própria das euforias públicas, pelo início imediato dos trabalhos de construção. Não se adivinhava uma tarefa fácil; ter-se-ia primeiro de conquistar a terra que se estendia dos limites da urbe até às inóspitas planícies da fronteira, no leste longínquo. A cidade preparou-se então para verter todo o seu poder sobre o projecto, fazendo uso dos instrumentos que lhe eram conhecidos. Contra o rio, as montanhas e o tempo empregou a força, a ciência e os capitais. Contra a complacência das estações usou a ambição intemperada da multidão, fruto fértil em anos carentes de um qualquer propósito colectivo. Logo se eliminou esta falha, e a cidade tratou de providenciar o melhor lema que soube arranjar. Trabalhou-se nesses anos pela conquista da marcha do tempo.

O desenvolvimento inicial foi tremendo. Arrasaram-se montes, alongaram-se vales, estenderam-se pontes, maneou-se o ferro como se o material obedecesse dócil às ordens dos capatazes. Uma ilusão generalizada convenceu toda a gente de que o rio se ia ajustando ao correr do projecto, como se sentisse reverente perante aquela magnífica empresa humana, e não o contrário. A febre colectiva difundia-se por cada nova vila que a obra alcançava. Mas os efeitos visíveis eram, de facto, louváveis: encurtaram-se dias, semanas mesmo, na aproximação de aldeias e parentes, e do campo à cidade. A fome, que visitava de quando em quando as povoações perdidas nos montes, deixou de pairar sobre a terra como um nevoeiro iminente. Os filhos mais audazes partiam das aldeias, destroçavam os corações às mães que os viam embarcar, tentando sempre aliviá-los com promessas de um dia voltarem a casa de bolsos transbordantes. O inexorável progresso do caminho-de-ferro era celebrado nas igrejas como prova da graça de Deus sobre os homens.

Depois, a meio caminho, a natureza encrudesceu a sua oposição à vontade do homem. O rio fechou-se em vales escarpados, as margens verdejantes deram lugar a gargantas de rocha polida, a lajes aguçadas que pendiam sobre o rio como varandas nas montanhas. Sabia-se que a Índia estaria a quarenta milhas para lá dos abismos infernais que agora se levantavam. A cidade respondeu ao desafio dobrando os seus já muito sofridos recursos: agrupou a sua força bruta disponível, enviou máquinas de que necessitava e que outras indústrias dispensaram a custo, entregou capitais que já não lhe pertenciam, e obrigou a sua fiel campanha a travar um duro inverno contra a montanha. Eventualmente, com pesadas baixas, num esforço que deixou todos sem fôlego para continuar, a montanha foi transposta. Achou-se então uma vila nunca antes visitada por tão grande e aparatosa embaixada, e onde o caminho-de-ferro foi recebido com compreensível temor. No final desta epopeia, quando se goraram irremediavelmente todas as expectativas, seriam os seus habitantes e toda aquela terra de pobres lavradores os maiores beneficiados pela obra do cavalo de fogo, como lhe chamavam os ignorantes.

O rio abria-se agora num planalto manso, de suaves colinas fustigadas pelo sol ardente. Deitaram-se mãos à obra – as poucas que sobravam – para completar o troço final até à derradeira estação. Chegou-se então à linha de fronteira. Via-se do outro lado, a menos de vinte milhas de distância, as torres da cidade castanha, porta de entrada para o continente que as muralhas medievais escondiam atrás de si, juntamente com os seus infindáveis tesouros. Ao deitarem à terra os primeiros trilhos para lá da fronteira, chegou às mãos dos capatazes um telegrama de luto. A cidade definhava. Todas as ambições soçobravam porque a fome e a doença corriam desenfreadas pelas ruas, deixando muito pouco aos homens com que sonhar. Parar tornava-se imperativo por aquele grito de agonia. A empreitada acabava ali, à vista das portas da primeira cidade além fronteira. O rio, esse, há muito que virara a norte, depois das montanhas, deixando os homens sozinhos, entregues a si na sua quimera contra o tempo.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 22:46
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Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2015

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(micções)

 

Estou certo que já fizestes a seguinte questão: quantas vezes duas determinadas pessoas, perfeitas desconhecidas entre si, se cruzam fortuitamente durante toda uma vida? Tomemos como exemplo as seguintes: Juvenal, solteiro, maior, residente na União das Freguesias de Santo Tirso, Couto (Santa Cristina e São Miguel) e Burgães, concelho de Santo Tirso; e Maria, divorciada, residente na freguesia dos Olivais, concelho de Lisboa. Juvenal e Maria não se conhecem um ao outro, e tampouco supõem a existência de um e de outro. Mais, Juvenal e Maria residem e sempre residiram a mais de 200 quilómetros de distância um do outro. Não têm relações, amigos, ou conhecidos em comum. Trabalham ambos na área da residência de cada um, ele como contabilista, ela como cabeleireira.

Ora, sucedeu a Juvenal e Maria encontrarem-se, por coincidência, no interior do comboio Alfa Pendular que, às 09:20 horas do dia 28 de Janeiro de 2015, partiu da Estação de Santa Apolónia, com destino a Porto-Campanhã. Sucedeu ainda estarem ambos sentados de frente um para o outro, uma vez que, por um acaso do destino, foram-lhes atribuídos os lugares do meio da carruagem (únicos lugares em que os passageiros se sentam de frente uns para os outros, com uma pequena mesa desdobrável ao centro a servir de separador) junto à janela esquerda (no sentido da marcha).

Juvenal foi o primeiro a acomodar-se ao lugar. Maria entrou na composição apenas na Gare do Oriente, ocupando o seu lugar em frente a Juvenal. Nesse momento, e após replicar ao «bom dia, com licença» de Maria, Juvenal pensou para si: «Olá, queres ver que hoje estou com sorte». Não deixara, naturalmente, de reparar nas belas formas de Maria, e na cascata de ouro que descia languidamente até a uns seios de auspiciosas proporções. O perfume inebriante que exalou ao sentar-se deu a estocada final. Juvenal estava rendido. Na verdade, não foi preciso muito tempo para lhe despontar uma erecção, que procurou camuflar colocando o casaco sobre as pernas. Decidiu que havia de meter conversa com aquela mulher até final da viagem, nem que fosse a última coisa que fazia na vida. Porém, este era o género de actividade para o qual não estava minimamente habilitado e muito menos habituado.

Mas já lá iremos. Antes disso, quero informar que Juvenal e Maria, apesar de nunca se terem conhecido, já se cruzaram pelo menos três vezes (que eu tenha conhecimento) durante a sua vida. A primeira, ainda ambos por nascer, mas já em gestação (Juvenal com sete meses e Maria com cinco), aconteceu quando as respectivas mães, grávidas, se encontraram fortuitamente na sala de espera do consultório do Dr. Amílcar Roldão, médico obstetra de Coimbra, com fama em todo o país, corria o ano de 1980. Vinte anos mais tarde, seguindo na Auto-Estrada designada A1 no sentido Norte-Sul, a 400 metros da saída para Fátima, Juvenal inicia uma manobra de ultrapassagem, ocupando a faixa esquerda de rodagem. No sentido contrário, em igual manobra de trânsito, e nesse exacto momento, passou Maria a bordo de um Opel Tigra, conduzido pelo seu, então, namorado. Durante um período de tempo inferior a um segundo, nem cinco metros distaram entre Juvenal e Maria. Por fim, em 2011, no aeroporto internacional de Lisboa, Juvenal retém a porta de um dos elevadores do estacionamento, permitindo a Maria entrar nesse mesmo elevador, fazendo a ascensão ao piso das partidas os dois juntos. Admito que possam ter-se cruzado em mais ocasiões. Porém, as que acabei de enumerar são as únicas que, após longa e exaustiva investigação, fui capaz de descobrir, e para as quais reuni provas cabais de terem efectivamente acontecido (o que fiz por inquirição de dezenas de testemunhas, consulta de vários registos documentais particulares e públicos, e visualização de imagens vídeo e fotográficas de câmaras de vigilância diversas).

Estes dois desconhecidos estavam agora, como disse, frente a frente, na mesma carruagem, do mesmo comboio, e com o mesmo destino (Porto-Campanhã). Juvenal desesperava por conseguir arranjar as palavras certas para iniciar os seus intentos. Cheio de calor, vermelho, e banhado em suor, nem reparou na paragem do Alfa Pendular na estação de Coimbra B (ainda hei-de tentar perceber por que raio não arranjaram um nome mais digno para esta estação, como por exemplo o do sítio ou lugar em que está implantada). Nisto sente alguém a tocar-lhe no braço direito, situação que o fez repentinamente acordar do estertor em que estava. «O senhor, desculpe, será que se importa de trocar de lugar comigo?», pergunta uma velha senhora. «É que assim eu podia ir ao lado dos meus dois netos, que vão aqui» acrescenta ainda. De imediato e de um salto só Juvenal levanta-se do seu lugar, disponibilizando-o à velha senhora, e ainda ajudando-a com as malas. Seguidamente arrastou-se até ao seu novo lugar, sito no final da carruagem, junto às casas de banho daquela composição ferroviária. Até final da viagem dissipou-se a réstia de coragem que ainda tinha, e Juvenal acabou por desistir de seu malfadado projecto. Ficou-lhe apenas gravado, para memória futura, as formas e o perfume daquela bela loira com quem se cruzou no Alfa das nove e vinte.

 

nev

despesadiaria às 16:59
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Terça-feira, 27 de Janeiro de 2015

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Gear

 

Um verbo que ninguém a menos de uma dúzia quilómetros de uma cidade como-deve-ser sabe sequer conjugar - gear. Está-se mesmo a ver, fugir a ideia a uns quantos para o inglês. Mal. Quais cangalhadas tecnológicas, quais quê. Ali geou mesmo - dois grau negativos - quem quer, é aguentar.

Em Campos da Soberana ainda há dois caminhos. O da taberna dos ciclistas e o da casa de cada qual, que é como a não-sei-quê-que-o-não-sei-quê. Quilómetros nas pernas para seguir ao primeiro sem vergonha não há, por isso ele faz por arrumar os tarecos, caminho  do outro. A ver da parentela.

Pesam a rotina dos fechos, dos carregos, das limpezas, mas faz de conta que não. Já à pressa, procura o saco para a roupa suja no intervalo entre o armário das travessas e a parede mestra da cozinha. Sente um mover pequeno. Lento. Vem-lhe um tremor frio, uma repulsa em vaga daquelas súbitas, que vão de dentro para fora. Há ali coisa. Indistinta mas viva. Escura.

São dez e meia da manhã, não deveria sentir medo. Procura o dínamo, dá à manivela. Um rato não é. Abre a porta virada ao telheiro. Faz por dominar a impressão causada por aquele guinchar sumido. Pega na pá, na vassoura pequena. Estupor do morcego. Não entende como foi ali parar, ou onde se feriu. O primeiro toque de despejo faz repetir aquele som. Agora, cá fora, é deixá-lo ficar?  Apesar da respiração aflita, do mau movimento das asas, decide que sim.      

Quarenta quilómetros andados, pára quase na banda de aquém. Sente um peso de culpa, e dá-a ao cigarro acabado de acender.     

 

[Cláudia.]

despesadiaria às 10:00
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Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2015

 

Há quem veja nas mais recentes cortinas da sala um regresso à sua primeira intervenção, não só por voltar a utilizar a sanefa, a que creio nunca mais tinha recorrido, mas também pelos orifícios no tecido.

Tentei juntar nestas novas cortinas algumas ideias que fui explorando ao longo dos anos a uma revisitação. De certa forma, é a revisitação, já não sabemos se na forma de comédia, de opera-bufa ou de apatia em que vivemos todos. Aquelas primeiras cortinas tinham muito de uma efervescência que não faz sentido hoje, em que parecemos esmagados, sobrevivemos como se tivéssemos perdido o nervo. Se reparar, basta andar pela rua e ir olhando para ver que os cortinados de hoje tendem para uma opacidade simples, são aquilo em que materializamos o sonho da privacidade prêt-a-porter, a forma de separarmos definitvamente o espaço privado sobre o qual na verdade temos cada menos controlo de um espaço público que já não sentimos como nosso, que deixou de ser público. As minhas primeiras cortinas faziam sentido num tempo em que me corria nas veias o Pasolini do pós 1968, dos anni di piombo, daquilo que cá chegava, muitas vezes clandestinamente. A sanefa em madeira mantém-se, mas agora sem o forro de tecido, é apenas uma sanefa nua, uma estrutura em madeira simples, sem sequer verniz, e as duas camadas de organza sobrepostas substituíram o belíssimo cretonne de linho completamente opaco, estampado com rosas vermelhas, que hoje só poderia ser interpretado como um anacronismo.

 

Mas manteve os orificíos, uma opção que pode ser vista como uma ironia, uma referência a essa desadequação de uma reencarnação que não pode, de facto, sê-lo.

Sim, os orifícios. Eu sempre gostei muito de orifícios. Mas os orifícios das cortinas de cretonne transportavam para o interior uma esperança imaginada no exterior. Os orifícios na organza fazem parte daquilo a que, se quiser, podemos chamar a rebelião possível, dirigem-se ao exterior. A semitransparência da organza é anulada pela justaposição de duas camadas, que é por sua vez ridicularizada pelos orífcios mínimos, que projetam a liberdade já só ilusoriamente possível em nós, a que deixámos de poder procurar na humanidade.

 

E a escolha da cor. A sua obra sempre tendeu mais para as cores quentes, e aqui opta por um violeta bastante dúbio. Uma vez que, nos anos noventa, foi bastante crítico da síntese teórica, fica a questão de se tratar de mais uma ironia ou de uma nova abordagem a esse tema.

É porque vai bem com a nova carpete.

 

Mas fugiu sempre às cores frias, exceto nalgumas obras de juventude.

Sim, e também logo após ter frequentado Londres, uns anos mais tarde. A minha passagem por Londres foi muito importante, conheci muitas pessoas ligadas à belbutina e deixei-me imergir sem restrições. Embora naquela altura, essencialmente a partir do disco, Nova Iorque fosse o centro da ação, por ali passava muito do que era ainda incógnito mas que veio a não ter influência nenhuma uns anos mais tarde. E a belbutina, pelo  menos na época, só era inteligível em azul, especialmente numas cortinas completamente lisas, como as que aqui tive durante quase um ano. Mas foi uma das poucas explorações nesse campo. Tive, por um curto período do verão do ano passado, um conjunto de pequenas cortinas, quatro, o que para uma janela deste tamanho é claramente excessivo, em polyester glauco intercalado com amarelo cádmio, com umas figuras desbotadas alusivas à comodificação do imaginário infantil, mas não duraram muito tempo porque a gata as rasgou.

 

E pensou em deixá-la prosseguir?

Não, já estava bastante velha e vomitava pela casa toda. Deu-me cabo de dois sofás. Achei melhor mandar abatê-la.

 

Referia-me a essa experiência dos motivos infantis. Parece-me representar uma evolução natural da sua crítica.

Sim, e foi-o, com todos os incómodos que isso provoca num país tão paroquial. A cultura Iqueia não consegue integrar a crítica ao assalto destrutivo que todos os dias fazemos às cada vez mais exíguas hipóteses de futuro que ainda nos restam. Falou da minha queda para os tons quentes. Após a revolução, estávamos em pleno PREC, com o qual a morte de Pasolini coincidiu, e senti um certo esgotamento, que decidi expressar na janela da sala, que sempre foi o meu locus operandi de eleição, apesar de algumas aprendizagens com os candeeiros da entrada e com árvores de natal. Decidi retirar as cortinas, provocar um enfrentamento que representasse a ausência de um caminho claro e, a um tempo, o reivindicasse enquanto direito a um percurso libertador, o próprio percurso visto como libertação, através da vivência e da introspeção, por oposição à naturalização das axiologias que ocupavam todo os espaço disponível. Nessa época tinha-me desinteressado da militância obrigatória a que os quotidianos se viam cada vez mais reduzidos e refugiei-me na juventude, em Thoreau, Proust, [Anatole] France, Orwell. Esta era a minha atitude, demonstrar a inutilidade de cortinas na sala, quando se deu o 25 de novembro. Não houve boa vontade no entendimento da minha obra. E nunca mais tive uma vida fácil neste país. Enquanto outros autores da minha geração foram vistos como um farol do momento e dos momentos, mesmo quando recorriam à ironia do formulaico, eu nunca passei muito bem por algumas gargantas. A minha utilização conscientemente compulsiva mas crítica das cores quentes, e especialmente dos vermelhos, que dominaram o meu percurso intelectual desde a adolescência, serviu para tudo, para todo o tipo de interpretações e de perseguições e mesmo de ameaças. Chegaram a colar um autocolante das bananas Chiquita na vidraça da janela numa altura em que tinha umas cortinas fúcsia de renda que, evidentemente, provocaram engulhos a muita gente. Nunca abdiquei de ser um incómodo, de me mover fora do establishment, mas já não pretendo continuar nada a não ser o puzzle de dez mil peças do Castelo de Neuschwanstein com que vou cobrir a parede norte da minha antiga oficina. 

 

A sua relação com outros autores contemporâneos, entre quais os vizinhos do 1ºD, que julgo terem marcado bastante o seu trabalho, espelha também um pouco o seu progressivo afastamento dos temas tradicionais nas cortinas portuguesas.

Sabe, eu nunca me interessei especialmente por esses temas. Eles estão, como não pode deixar de ser, na génese do meu percurso artístico, e foi nessa base que surgiu um momento em que foi possível um diálogo com os meus vizinhos do 1ºD, mas desde cedo tentei distanciar-me deles. Claro que essas influências eram visíveis em todas as cortinas que aqui colocava, por vezes apenas na escolha dos tecidos, mas sempre senti a necessidade de escapar àquilo que via, já nessa altura, como um remoer mecânico de temas estafados, que tinham perdido interesse e atualidade, como uma inércia. Não quero com isto dizer que toda a tradição acaba por se tornar necessariamente fútil, mas o panorama dos cortinados em Portugal tem sido muito dominado por incessantes releituras de uma linguagem que resulta da assimilação do ruralismo pelos românticos, que foram quem, mal ou bem, fez alguma coisa de novo neste país a este nível, embora na realidade mais não tenham feito que importar o que tinha sido feito em França duas ou três décadas antes. Desde aí, as exceções foram atos isolados e as mais das vezes involuntários, o resultado de uma determinada loja ter colocado à venda um produto importado que se tornou moda, o mimetismo do que se vê nas revistas de decoração, etc. A tradição cortineira portuguesa parou naquele momento fundador e não mais daí saiu, tendo a sua aparente evolução sido capturada pela construção política tardo-nacionalista tão característica do século vinte português. Ainda estávamos na primeira iteração desse movimento quando no centro da Europa já não se pensava daquela forma, já não era aquela a linguagem. O expressionismo, por exemplo, nunca chegou às cortinas portuguesas, que nem por isso abandonaram completamente alguns atavismos do barroco.

 

Mas apesar da sua recusa em alinhar-se, é hoje reconhecido como um autor marcante em toda esta zona da cidade. Acha que se pode dizer que fez uma escola?

Não, não acho, e, se quer que lhe diga muito sinceramente, ainda bem. No contexto em que se desenvolveu a minha atividade, “fazer escola” quer dizer ser absorvido por uma das capelinhas, todas elas virtualmente indistintas para um observador externo, que dominam as nossas janelas. Os resultados até podem ser diferentes, mas o raciocínio que lhes está na base é sempre o mesmo. Embora não venha de uma família com tradição nos tecidos nem na decoração, era uma casa onde se cultivava um certo gosto pelo cosmopolita, onde se liam coisas vindas de fora. A minha mãe ainda chegou a vender alguns pares de peúgas ao André [Breton], no seu esforço para financiar a digressão que os meus pais fizeram pela Europa, logo após a II Grande Guerra, para verem os estragos. Esta base diferencia-me naturalmente de autoras como, por exemplo, a Dona Dulce. A Dona Dulce fez aquilo a que se pode chamar uma escola, e fez muito pelas cortinas deste país, mas nunca conseguiu, por exemplo, abdicar dos folhos. A veemência da minha recusa do folho veio acrescentar ainda mais aos problemas que já tinha com a crítica e com alguns setores do público, por isso não, não creio que se possa associar-me a uma escola ou abordar a minha obra como sendo fundadora de uma. Sou um objeto estranho.

 

Foi no seguimento desses problemas que foi para Londres.

Também por isso. Precisava de alguma abertura, de uma clareira na minha vida. Veja que, depois do reposteiro de cretonne, da mudança frenética de cortinados de 1974-75, da resposta com os estores japoneses, que ninguém na altura utilizava nesta rua, não me era possível, do ponto de vista criativo, limitar-me a um ambiente cultural que, sentia-o, me estava a forçar a uma etiqueta. E não estou a falar daquelas com as instruções de lavagem.

 

Quanto tempo passou em Londres?

Três dias. Foram tempos que me abriram a novas vias para a articulação da dualidade entre o corpo enquanto veículo inescapável do pensamento, em confronto com várias correntes do pensamento europeu, e o corpo enquanto plasmação da urgência de animalidade que a modernidade só nos permite quando não há uma casa de banho por perto. As cortinas da sala passaram a ter uma função, e uso o termo função propositadamente, uma função diferente. Se antes se situavam apenas no campo de uma dualidade filtragem/abertura da qual estava ausente a problematização ontológica, a partir daí passaram a constituir também, e de forma consciente, uma espécie de segunda passagem da latência para a genitalidade. Por exemplo: até então nunca tinha considerado seriamente os algodões, o excesso pop das toalhas turcas de banho enquanto cortinas ou os black-outs com découpages florais, como vim a utilizar uns anos mais tarde no âmbito das festas da cidade. O que mudou foi, essencialmente, a minha relação com as texturas.

 

Anunciou que esta será a sua última obra. O que tenciona fazer à janela da sala daqui para a frente?

Não farei nada. Passarei a convidar jovens artistas para me escolherem e fazerem as cortinas com total liberdade. Os artistas da nova geração não têm muitas possibilidades de desenvolver uma obra e construir uma carreira, porque vivem em andares demasiado altos de subúrbios sem visibilidade ou porque, pura e simplesmente, tiveram de emigrar, muitas vezes para lavar cortinas na Alemanha. E como não há apoios, o panorama é bastante sombrio. A Secretaria de Estado da Cultura, que já nem ministério é, descartou completamente as cortinas, tal como o cinema independente e os buracos na calçada em forma de coração. Foram áreas que este governo, que não me merece sequer o esforço de uma qualificação, entendeu serem irrelevantes. Disponibilizar a janela da sala, ser uma plataforma para a troca de novas experiências, essa é a contribuição que posso dar a este país sem futuro.

 

 

E.

despesadiaria às 17:16
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Domingo, 25 de Janeiro de 2015

 

Antes de terminar o último ano da faculdade tomei a decisão de trabalhar num café durante o verão. Na verdade nem posso dizer que a tenha tomado, vim para aqui não por necessidade mas por insistência do meu pai, que achou que uma actividade durante estes meses seria útil para me formar o carácter. Passou entretanto um ano e meio e por cá tenho ficado, um risco que eu próprio antecipei e do qual informei a família nessa conversa ao jantar. Tendo vindo a confirmar-se, não foi pelas razões que suspeitava.

Sou tão bom a lavar pratos como a fazer cocktails ou a tirar um doppio ristretto com a consistência correcta (de óleo de motor), mas não foi a minha competência e devido reconhecimento que me convidaram a ficar. Também não foi a inércia que me obrigou a fazê-lo, a minha aposta inicial. Terminei entretanto a licenciatura e já tenho recebido os convites que se adivinhavam, tenho tudo o que é preciso para uma carreira sem enviar uma única candidatura. Mas cá estou. O que se passa é que comecei a contar as pessoas.

Não foi um processo imediato, inicialmente fazia por caracterizá-las, isto é, inventava-lhes uma vida ou procurava conhecê-las, sou um desses tipos de empregado com boa conversa, e temos um balcão extenso. Cedo passei de pessoas para grupos. O café está aberto desde cedo e fecha quando sair o último cliente, não poucas vezes depois da uma da manhã. Não vale a pena alongar-me nestas caracterizações, são o que se espera de um estabelecimento que não serve almoços ou jantares. A primeira leva traz gente que vai trabalhar e vem beber uma bica ou tomar pequeno-almoço; desempregados, estudantes, e vizinhos ao longo da manhã; casais de universitários durante a tarde, turistas perdidos ou atraídos por conselhos de recepcionistas de hostel ou escritores de Lonely Planets; e, um pouco antes do jantar e durante a noite, uma massa cada vez mais indistinta.

Numa dessas noites, sem nada de atípico, levantei a cabeça depois de esmagar quartos de lima em açúcar mascavado cristalino, e decidi contar as pessoas. Fui rápido, extraordinariamente rápido, oitenta e seis cabeças. Quis ir mais longe e abstraí-me da tentação de lhes dar contexto, como tinha feito até aí, mas individualizei ao extremo a multidão e consegui memorizar durante uns instantes cada um dos clientes. Não falo em ser capaz de os reconhecer (embora seja), o que fiz foi criar uma memória permanente de cada um deles, e ao fim de uns minutos estava pronto a reconstruir a sala. Continuei ao longo da noite, com cada pessoa que entrava ou saía, e facilmente os compartimentalizava entre os que já estavam e os que já estiveram. Não procurei fazer previsões, nem extrapolações, ou narrativas, penso que de um momento para o outro liguei a memória num modo estatístico impensável.

A massa deixou de o ser, senti-me Funes, capaz de olhar para uma árvore e lembrar e distinguir cada uma das suas folhas. Continuei até ao final da noite. Enquanto lavava copos e virava cadeiras reconstruí com facilidade toda a multidão que por ali tinha passado de forma minuciosa. Não se tratou sequer de reconstruir, era como abrir uma pasta de arquivo e o processo era imediato. É importante voltar a sublinhar que apesar de os ter distinguido e extraído da multidão um a um, não lhes dei mais contexto do que a um conjunto de números inteiros infinito, tornei-me não só imune como incapaz de julgamentos ou adivinhações.

Quando acordei na manhã seguinte, a memória de cada indivíduo continuava presente e imediata, acessível como a do nome da minha mãe ou do meu número de turma no quinto ano. E, claro, fiz o mesmo nesse dia e voltei a memorizar cada uma das pessoas que meteram pé no café, e assim tenho feito até hoje, mais de oito meses depois daquela noite. Temo bem que a minha vida se venha a resumir a esta tarefa, talvez para tragédia do meu pobre pai. Não sei dizer se consegui o oposto da formação de carácter que pretendia, se o anulei, ou se existia para ser formado.

 

Gouveia

despesadiaria às 20:37
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Sábado, 24 de Janeiro de 2015

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 Curta

 

No verão, a Madalena pedia sempre o café cheio e um copo alto com duas pedras de gelo. Agarrava na chávena escaldante e espetava o mindinho anelado; depois vertia o café para dentro do copo num gesto rápido, mas não tão rápido que impedisse a fuga de parte do líquido. Algumas gotas agarravam-se à porcelana espessa da chávena, outras escorriam lentamente pelo copo abaixo até se unirem à mesa prateada. Aí, de mãos dadas formavam um cinto acastanhado em torno da base do copo. A Madalena levantava-o para ver a circunferência escura engordar, como se a forma tivesse sido aplicada ali por um carimbo saturado de tinta. Depois, tentava limpar o chiqueiro com os guardanapos de papel que tirava dos dispensadores com forma de garrafa de Compal: começava por tirar apenas um, abria-o e com ele cobria o rasto de café. Uma mancha nascia na zona central do guardanapo, devorando sofregamente o branco, quase chegando aos bordos azuis e ao exclamativo Obrigado pela preferência em dois dos lados do quadrado; Madalena tirava mais um guardanapo, desta feita emoldurado por um tom encarnado, desgastado, e com letras a condizer; seguia-se outro, e outro, e outros; empilhava-os até haver um que ficasse todo branco, orgulhoso, em cima dos irmãos emporcalhados, e sobre a superfície imaculada pousava finalmente o copo. Só nessa altura começava a beber o café, já os cubos de gelo se reduziam a tristes formas ovoides, quase indistinguíveis no líquido escuro.

Um dia disse-lhe que podia pedir simplesmente um café gelado. A sugestão foi recebida com um sorriso largo, daqueles que usava para mostrar o intervalo dos dentes da frente. Isso não faz sentido, respondeu. Olhando para a pilha de guardanapos entre nós, acabei por concordar.

 

S. White

despesadiaria às 19:20
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Segunda-feira, 19 de Janeiro de 2015

 

X

 

As árvores pareciam distraídas no seu esplendor de Domingo. Decompostos dos bandos, iam e vinham pássaros, anelavam as garras nos galhos mais sinuosos, as penas a penderem no balanço da aragem. Altivas e impotentes, ei-las naquele clã, arvorando a sua causa vegetal, surpreendidas por alguém que se tinha aproximado: as raízes regadas por uma repentina pluviosidade. Nas franjas de sol que as ramagens deixam a descoberto, sobressai uma pequena navalha nas mãos de um Orlando, que furioso cismava uma teoria homicida. A estatura mediana, o esqueleto vergado pela picardia e o olhar enlouquecido para o objecto que se amparava, a medo, naquela infinitude de dedos provenientes de unhas inconclusas: a lâmina quase baça, ainda assim, um retrovisor que espelhava as memórias de desamor da noite passada. Ergue a cabeça, levanta o braço, espeta a ponta do canivete na casca. A dor é lascada à medida que a mão oscila freneticamente. Quando acabou, já o luar lhe rotulava a sanidade perdida. A árvore, sacudida do torpor dominical, revestia-se agora da literatura mais prosaica: «Angelica, pk me abandonas-te?»

 

gisandra

 

despesadiaria às 16:53
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Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2015

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8h30

 

2.O verão revivido em 2006 foi para Gustavo o melhor da sua vida. Lançou-se com os seus amigos mais próximos, insuspeitos ainda da caricatura de amizade que os ligaria oito anos mais tarde, numa aventura pelos trilhos de areia e mar do Sul. Passavam os dias nas praias luxuosamente virginais da costa alentejana e as noites nos festivais de música que pontuavam pela região, erigindo nas madrugadas pagãs daquela terra rituais de reggae, punk, jazz, trance e pimba. Gustavo, inebriado de tanta alegria, apaixonou-se todas as noites com a liberalidade dos vinte e cinco e a sinceridade dos dezassete. Os seus amigos invejaram tamanha desenvoltura; mas aceitaram-na, e experimentaram até a audácia deste novo Gustavo revelado no seu amigo de infância.

Em Setembro, porém, tudo acabou, e os dias de faculdade começaram em Évora. A cidade era-lhe estranha, pacata, branca em demasia, sufocante, tão larga e baixa que se confundia com os sobreiros nos montes. Os anos passaram e a dedicação que o curso exigia – melhor, que o seu interesse e curiosidade pediam, instigados pela recordação dos anos em Engenharia – fizeram-no acarinhar e tomar como sua aquela relíquia do mediterrâneo antigo. No secundo ano do curso, a convite de um professor que ele admirava, aceitou colaborar no projecto para o planeamento de um novo bairro social que seria construído na fronteira da malha medieval. Gustavo estudou o tecido geográfico da zona, inventariou os pontos críticos, as tendências sociais, o tecido orgânico. Mas decidiu completá-los com o contributo de quem, afinal, «vive no seu objecto de estudo, i.e., de quem vive na cidade», escreveu Gustavo em rodapé. Ouviu as histórias daquele sítio à boca das tabernas e no umbral das portas. Obteve da Câmara o perfil das famílias que deveriam vir a habitar o novo bairro e foi falar com os futuros moradores. Explicaram-lhe as suas dificuldades, os seus anseios na mudança, desenharam-lhe ao pormenor a ideia de um dia na casa e na cidade perfeita. Gustavo recolheu com dedicação todos os contributos e depois, deitando ao papel toda a sua inspiração e zelo de artista, fez o melhor para os conciliar num projecto harmonioso. Os vários relatórios que foi entregando na faculdade valeram-lhe uma menção especial da Câmara, que o contratou para mais um projecto no ano seguinte.

No final do curso, Gustavo regressou a Lisboa, sem qualquer plano. Esperou convites, propostas, um emprego bem pago na sua área. Esperou durante um ano, e nada chegou. No final, não tomou nenhuma decisão drástica, como outrora fizera. Não se sentia desalentado pela ignorância do seu futuro. Na verdade, tinha tirado o melhor dos meses que passaram. Arranjou um part-time no posto de turismo da Baixa, onde se divertia a sugerir aos turistas mais curiosos restaurantes, cafés, ruas e bairros de que gostava. Ao final da tarde, assistia sempre a um filme na Cinemateca. Foi lá que conheceu Catarina, o grande amor da sua vida corrigida. Podiam-se ter de apaixonado a meio de um filme de Capra ou de Lubitsch, como bem calhava à história; mas não, conheceram-se enquanto esperavam no hall por um filme do Dário Argento. Catarina não tinha planos para o seu futuro e também não se importava com isso. Era arqueóloga de formação e de paixão, mas trabalhava então como empregada numa perfumaria do Chiado. Gustavo e Catarina continuaram a empenhar-se nas suas investigações de vida. Certa vez, até, concorreram juntos a um concurso para a integração urbana das ruínas medievais de uma povoação francesa. Receberam por esse projecto um meritório terceiro lugar e um cheque de 2000€. Com o dinheiro do prémio partiram nesse verão numa jornada pelo norte de África e pela Arabia, de Casablanca a Bagdad – ou, como anunciaram aos amigos da Cinemateca, do Rick’s Café ao Palácio de Jaffar. No final dessa viagem, notaram possuir uma vontade renovada de fazer as coisas.

Catarina foi convidada por uma Universidade no sul de Inglaterra para integrar um projecto de escavações de um aldeamento saxão. Gustavo e Catarina amavam-se muito mas decidiram que seria melhor para ambos manterem-se fiéis aos seus sonhos; separaram-se, temporariamente, como sempre se espera nas partidas consentidas. Gustavo decidiu continuar os estudos em Lisboa, seguindo um mestrado em Economia das Cidades. No final do curso, trabalhou durante seis meses no Ministério do Ambiente, durante o qual ajudou a definir o mapa das cidades mais necessitadas de incentivos à reabilitação urbana. Ficou muito satisfeito com o trabalho final, pelo qual lhe ofereceram os maiores elogios. Mas não um emprego.

Certa noite, tinha acabado de voltar do aniversário de um antigo colega da equipa do Ministério, três meses passados desde o final do projecto, Gustavo esqueceu-se que era feliz e que conseguira vingar a vida das paixões sobre o correr dos dias esquecidos, sobre o laissez-faire do tempo. Nessa noite, deitou-se cedo, como era seu costume. Precisamente às 23h51 do dia 8 de Março de 2014. Quando acordou, às 8h19 do dia seguinte, estranhou não ter acordado às 7h30, como tinha marcado no despertador antes de se deitar. Então reparou, não imediatamente, mas a custo e com crescente terror, que acordara no quarto, no pijama e no corpo dos vinte e cinco anos da sua primeira vida. Então percebeu tudo. Sem sair da cama, chorou sem alma; chorou muito, exorcizando as recordações daquela segunda vida, mutilando o espírito que crescera renovado em oito anos. As mais cruas lágrimas chorou-as por Catarina. Depois, acordado, caiu num sono de profunda apatia. Dez minutos de dor, em que as horas da sua vida corrigida passaram em acelerada reprise com o acento desolador da tragicomédia. Dez minutos que bastaram para lhe adormecer o ânimo por muito tempo. Eram 8h30 quando se levantou da cama para cumprir a agenda no cubículo do escritório. Gustavo, como em tantas vezes, ansiaria toda aquela manhã pela pausa do almoço, em que pudesse afagar a fome na primeira colher de sopa.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 11:49
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Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015

...

(micções)

 

O pingo

 

Quando colocou o pé direito sobre o piso betuminoso que compõe a estrada nacional número X, com intenção de a atravessar perpendicularmente, sentiu imediatamente um pingo no nariz. Surgiu de repente, em toda a sua pompa e esplendor, como se tivesse preparado a aparição durante toda a manhã. Um pequeno berlinde translúcido, contendo uma mistura de milhões de átomos de hidrogénio e oxigénio (na proporção de dois para um) e uma bateria de germes e vírus de variada natureza, dependurou-se-lhe na ponta do nariz, lá fixando-se por mote próprio. “Que coisa ridícula”, pensou, ao mesmo tempo abanando a cabeça (como se estivesse a dizer não) tentando que o pingo tombasse por força da gravidade. Sentiu o pingo mover-se de um lado para o outro (na verdade não o conseguia ver bem, mas sentia-o em toda a sua plenitude), tal qual um pequeno badalo de uma campainha de chamar criados. Enervante e teimoso, o pingo manteve-se firmemente preso ao nariz. Lembrou-se que tinha lenços na algibeira do casaco, mas isso implicava tirar as mãos dos bolsos das calças. Se por orgulho, se por preguiça, não sabemos, mas é um facto que não tirou as mãos dos bolsos. E o pingo lá permaneceu, agora ainda mais fortalecido, inchado, brilhando ao longe. O peso e a comichão começando a tornar-se insuportáveis. Já não era apenas um pingo, antes todo um globo com milhões de microscópios demónios atiçando-lhe o nariz com malagueta. Nisto passa por ele um camião cisterna, e com um movimento brusco põe o pé esquerdo sobre o lancil do passeio, o pingo cai, e o sapato de pele de camurça fica encharcado.

 

nev

despesadiaria às 13:23
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Domingo, 11 de Janeiro de 2015

 

1. Boa ação
1.1. Boa para quem a pratica
1.1.1. Boa como o milho
1.1.2. Boa boca
1.1.3. Boa peça
1.1.4. Boa constrictor
1.1.5. Boa vida
1.1.6. Boa moeda
1.1.6.1. (risos)
1.1.7.  Boa para assar
1.1.7.1.Haja percas
1.1.7.1.1. Ninguém diria que são de aquacultura
1.1.8. Boa onda
1.1.9. Boa na cama
1.1.9.1. Mas limpinha
1.1.9.1.1. Vê lá se queres
1.1.9.1.1.1. Que te faça um desenho
 
1.2. Boa para quem a sofre
1.2.1. Boa morte
1.2.2. Boa esperança
1.2.2.1. Cabo da
1.2.3. Boa viagem
1.2.3.1. Serra da
1.2.4. Boa estrela
1.2.4.1. Em dia de neve
1.2.4.2. Ou com vento de leste (é)
1.2.4.3. Ou com vento que leste (ê)
1.2.4.4. Já foste(s)
1.2.5. Boa da cabeça
1.2.5.1. Nunca o será
1.2.6. Boa rês
1.2.6.1. Meat is murder
1.2.7. Boa compra
1.2.7.1. Compra, compra, compra
1.2.7.1.1. Vende, vende, vende
1.2.7.1.1.1. Quem anda à chuva
1.2.7.1.1.2. Diz-me com quem andas
1.2.8. Boa companhia
1.2.8.1. Das Ameríndias
1.2.8.2. Mais vale só


E.

despesadiaria às 19:10
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Sábado, 10 de Janeiro de 2015

 

Passava das três da manhã quando cheguei. Estava informado por um mapa desenhado a caneta pelo motorista da camioneta da localização da pensão, mas penso que a teria encontrado com facilidade. O empregado da noite, atrapalhado, explicou-me que o único quarto disponível estava em obras, explicou-me que a pensão estava sem electricidade desde as sete da tarde, e explicou-me que a casa de banho do piso que eu iria ocupar era comum e que só poderia ser utilizada a partir das oito. Perguntei se havia cama e ele demorou um pouco a responder, confessou-me que estava partida, mas que o chão era suficientemente largo para nele depositar o colchão. Pouco podia fazer se não aceitar estas condições. Ao longo do corredor havia garrafas de cerveja e vinho vazias, e beatas, que o empregado me explicou serem de uma despedida de solteiro que ali tinha decorrido, que os quartos estavam agora vazios mas que, quando os foliões regressassem, não me podia prometer o sossego que gostaria. Sorri e entrei no quarto sozinho. De facto em obras era uma descrição adequada. Uma das paredes está ocupada integralmente por um pequeno andaime, a janela não tem vidros, a cama tem os pés da cabeceira partidos. Optei por não tirar o colchão da cama e estiquei na alcatifa vermelha o meu saco-cama polar. Adivinhava algum frio com a janela assim aberta, mas não compreendo a razão da corrente de ar que atravessa o quarto como uma tempestade de neve. A luz da lua que aqui entra é tão forte que seria suficente para ler, mas estou cansado para pegar no Byron, e não trouxe mais nada. Suspeito que não dormirei grande coisa.

Ao ler estas linhas, o dono da pensão sorriu, arrancou a folha ao moleskine preto, colou-a cuidadosamente num papel e arquivou-o no dossier cuja lombada tinha escrito SÓ PRIMEIRA PÁGINA.

Gouveia

despesadiaria às 21:30
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Sexta-feira, 9 de Janeiro de 2015

 

Eu também não gosto de surpresas.

 

Quando a pilha de formulários empalideceu e a portada da janela à esquerda da secretária se fechou, a Menina M rodou na cadeira, pegou na mochila e saiu; rolou escada abaixo e terminou oficialmente a labuta saltando do penúltimo degrau para o trinco da porta do número 33. A espantosa manobra — dois tempos sustidos na atmosfera bolorenta — devia a majestosidade ao hábito, e o hábito devia-se ao mesmo vício que obrigava a Menina M a contar todos os dias o número de post-its amarelos que lhe restavam e a apontá-los num caderninho. Como noutra sexta-feira qualquer, roeu as unhas nos semáforos da Rua R, espremeu-se entre o caixote do lixo e a amostra humana do Beco B, e chegou à Avenida A com um suspiro. Estudou a posição dos ponteiros no seu relógio e não se surpreendeu com o atraso; quando ângulo obtuso já prendia alguns números, a Menina M recordava a sua pressa e estugava o passo.

Mas ao descer apressadamente a avenida, com o barulho dos saltos altos a cumprimentar as primeiras estrelas, reparou que a Senhora S, personagem tão habitual ali quanto o candeeiro eternamente fundido na distante Travessa T, se transformara num par de cães de porte médio. Os animais estavam presos por cordas à coluna na qual a pedinte se encostava, gemendo estilhaços e guardanapos sujos; as unhas compridas e amareladas dos bichos raspavam o cobertor encarnado onde antes se espalhavam as ancas da mulher. O fenómeno, uma verdadeira metamorfose, foi notado a dez unidades de distância. A Menina M parou e bebeu todos os instantes da descoberta como se bebe um xarope para a tosse: os traços abaulados da pedinte refletiam-se na barriga protuberante dos cães; o tom pardacento do pelo não deixava esquecer o cocuruto desgrenhado que costumava estender o copo sujo a quem passasse; humana e animais partilhavam a mesma expressão indolente que todas as pessoas felizes encaram como sofrimento. Era impossível de ignorar. A Menina M agarrou-se ao peito. Sentia labaredas nos pulmões. Um pulsar frenético fazia vibrar a pele do pescoço; deitou os dedos ao pulso, tentou a matemática mas os números perdiam-se nos caracóis encrespados dos cães. Não conseguia deixar de olhar para eles, para o bafo quente que desenhava fractais no espaço.

Finalmente, o horror a puxou-a dali numa corrida, mas o atraso culminou na fuga do comboio: os ponteiros uniram-se e a composição partiu com o eco dos seus passos no fundo do terminal. Dali a vinte minutos, outro se lhe seguiria; a cadência pontual da Linha L não se deixa perturbar por mulheres que se transformem em cães, nem por cães que se transformem em mulheres. Um sinal: tudo iria correr bem. No dia seguinte, a Menina M já saberia ignorar os cães.

 

S. White

despesadiaria às 21:36
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Quarta-feira, 7 de Janeiro de 2015

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Para com os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial que inclui o refluxo de um íntimo globo de vento e água, e o derrame, à força de gritos e empurrões, de uma lisa conversão de elementos acústicos em visuais. Por exemplo, as costas dos dois canos entrelaçados como os peixes do zodíaco (oco um, maciço outro) estão decoradas com estranhos afrescos didáticos: a ciência impõe uma composição rígida da morte, controles que parecem convergir para um amontoado de tabus que não correspondem a um conceito romântico da paisagem; uma paisagem capaz de engolir inteiros os sistemas e a repetição de um ritual que cai como uma pedra no fundo de cada algarismo, e ao meio do qual logo sobrevém algum facto, cada vez diferente, que o interrompe e entreabre como pequenas janelas que perfuram em duas filas de paredes (mas nunca externamente porque fora delas não há pretexto) essa trincheira fonética da qual sobe uma variedade de relações cromáticas e hipóteses franzidas (espécie de crise da normalidade), mas sem nenhuma solicitação ao típico.

 

Peor

despesadiaria às 10:02
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Domingo, 4 de Janeiro de 2015

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Andavam às voltas pela serra há mais de dez horas quando decidiram parar. Se o javelim não tinha aparecido até então, também não seria entre duas sandes de couratos que o sacana haveria de  manifestar a sua até então hipotética existência. Hipotética é como quem diz, porque ter sido Ambrósio o eterno bêbedo o único a avistá-lo não deixava ninguém convencido. Mas também ninguém se esquecia do que tinha acontecido oito anos e três meses antes, quando a falta de crença na velha Palmira - que disse ter visto a besta entre os repolhos - resultou no desaparecimento de três crianças da aldeia.

Júlio aponta para a grande pedra de granito negro e senta-se, convidando Ramira a imitá-lo. Ficaram de bater o lado norte do monte Cipálio, outros andam por outros pontos cardeais, ou pelo menos foi isso que prometeram ao clero local, na figura do abade Constantino. Na verdade, Júlio está bem mais preocupado em impressionar Ramira do que em encontrar a besta. É uma coisa antiga, mais ninguém partilha o fascínio por aquela solteirona a entrar nos 40. Não por falta de beleza, é certo que a rapariga tem os seus dotes, mas talvez hábitos como o de pendurar no alpendre de casa as peles dos gatos que ousam saltar os muros tenha algo a ver com essa repulsa.

Agora são quase seis da tarde, só haverá mais uma hora de sol e Ramira não tem muito tempo a perder.

"Vamos lá despachar isto", diz enquanto desabotoa os botões de cima da camisa de flanela, ciente de que realiza um desejo antigo daquele antigo colega da antiga escola primária. E é a visão de dois corpos nus sobre o granito que faz o javelim ensandecer novamente.

Desta vez foram dois adultos. O título do Semanário dos Montes não tem muito de apelativo, mas a edição está esgotada mal sai da gráfica. Que raio de bicho será esse javelim?

DoVale

despesadiaria às 23:41
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Sexta-feira, 2 de Janeiro de 2015

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CRESO E O DESTINO, por Lev Tolstói*

 

Nos tempos antigos – antes, muito antes da chegada de Cristo – reinou sobre determinado reino um grande rei chamado Creso. Este monarca possuía infindáveis reservas de ouro e prata, e numerosas pedras preciosas, bem como incontáveis soldados e escravos. Na verdade, ele acreditava que em todo o mundo não podia existir um homem mais feliz do que ele próprio.

Certo dia sucedeu estar de visita ao reino de Creso um filósofo grego, de nome Sólon. Por toda a parte Sólon era conhecido como homem sábio e justo; e, tendo a sua fama também chegado aos ouvidos de Creso, o rei ordenou que o sábio fosse conduzido à sua presença.

Sentado no alto do seu trono, e ornamentado com as suas vestes mais luxuosas, Creso perguntou a Sólon: “Já alguma vez viste algo mais esplêndido do que isto?”

“Com certeza que já vi”, respondeu Sólon. “Pavões, galos, e faisões, resplandecendo de cores tão diversas e brilhantes, que nenhuma arte se pode comparar a eles.”

Perante esta resposta Creso ficou em silêncio e pensou para si: “Uma vez que isto não é suficiente, deverei mostrar-lhe algo mais, para o surpreender.”

Assim, exibiu todas as suas riquezas perante o olhar de Sólon, ostentou-lhe o número de inimigos que destruiu, e ainda o número de todos os territórios que conquistou. Depois disse ao filósofo:

“Já tens uma longa vida neste mundo, e já viajaste por muitos territórios. Diz-me quem tu consideras ser o homem vivo mais feliz?”

“Creio que o homem vivo mais feliz é um certo homem pobre que vive em Atenas”, respondeu Sólon.

O rei ficou perplexo com esta resposta, uma vez que estava certo que Sólon iria nomeá-lo a ele próprio; todavia, apesar de tudo o que lhe fora exibido, o filósofo nomeou um indivíduo perfeitamente desconhecido.

“Por que razão afirmaste tal coisa?” perguntou Creso.

“Porque,” respondeu Sólon”, “o homem a que me refiro trabalhou arduamente toda a sua vida, satisfazendo-se com pouco, criou filhos sãos e esplêndidos, serviu a sua cidade de forma honrada, e conquistou uma nobre reputação.”

Ao ouvir esta resposta, Creso exclamou:

“E julgas a minha felicidade como nada, e consideras que não sou apto a ser comparado com o homem de que falas?”

Ao que Sólon respondeu:

“Não raro acontece que um homem pobre é mais feliz do que um rico. Não chames feliz a um homem antes da sua morte.”

Desta feita o rei mandou embora Sólon, dado que não ficara agradado com as suas palavras, nem tampouco acreditara nele.

“Às urtigas com a melancolia!” pensou ele. “Enquanto um homem viver ele deverá viver para o prazer.”

E com isto o monarca esqueceu rapidamente Sólon.

Não muito depois deste encontro, um filho do rei feriu-se a si próprio, por acidente, durante uma caçada, acabando por morrer devido ao ferimento. Nessa mesma altura, Creso foi informado que o poderoso imperador Ciro aproximava-se para invadir o seu reino.

Assim, Creso preparou-se com um grande exército e foi ao encontro do invasor, mas o inimigo provou ser mais forte, e, saindo vitorioso da batalha e tendo esmagado as forças de Creso, penetrou na capital do reino.

Logo de seguida, os soldados invasores começaram a pilhagem de todos os tesouros reais, chacinando os habitantes, saqueando e incendiando a cidade. Um dos soldados capturou o próprio Creso, e quando estava prestes a trespassá-lo, o filho do rei lançou-se para defender o seu pai, gritando:

“Não lhe toques! Este é Creso, o Rei!”

Perante isto os soldados prenderam Creso, e levaram-no até ao Imperador; porém, como Ciro estava no banquete de celebração da vitória, não podia falar com o prisioneiro, e ordens foram dadas para que Creso fosse imediatamente executado.

Para esse efeito os soldados erigiram no centro da praça da cidade uma grande pira, onde colocaram o Rei Creso, preso a uma estaca, e de seguida atearam-lhe fogo.

Nesse momento Creso contemplou todo o seu redor, a sua cidade e o seu palácio. Aí recordou-se das palavras do filósofo grego, e, banhado em lágrimas, apenas conseguiu dizer:

“Ah, Sólon, Sólon!”

Estavam os soldados rodeando a pira quando o Imperador Ciro chegou em pessoa para assistir à execução. E enquanto se aproximava ouviu as palavras pronunciados por Creso, mas foi incapaz de as compreender.

Ordenou, assim, que Creso fosse retirado da fogueira, e perguntou-lhe que palavras eram aquelas que acabara de dizer. Creso respondeu:

“Eu estava somente a pronunciar o nome de um homem sábio – um que me contou uma grande verdade – uma verdade cujo valor é superior a todas as riquezas terrenas, superior a toda a nossa majestosa glória.”

Creso acabou por relatar a Ciro toda a sua conversa com Sólon. A história tocou de tal maneira o coração do Imperador, consciencializando-o que também ele não passava de um mero mortal, e que não podia conhecer o que o Destino tinha reservado para ele. No final teve clemência para com Creso, e tornou-se seu amigo.

 

 

*Esta é uma tradução livre, da minha responsabilidade, do pequeno conto de Tolstói sobre o encontro do Rei Creso com Sólon, a partir das Histórias de Heródoto. 

 

nev

despesadiaria às 12:46
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Quinta-feira, 1 de Janeiro de 2015

 

Roupa Velha

 

Ao fim da manhã, depois de trazerem da sala os últimos estilhaços da consoada, vazando os doces e as carnes frias para sacos de plástico e deixando o resto da sopa esvair-se pelo sugadouro num remoinho de ovos de carpa e alcachofras moídas, as duas mulheres puseram três cadeiras à volta de uma mesa com três pratos e começaram a preparar o convidado.

Decidiram, sem consulta mútua, seguir a receita tradicional. À luz de velas a bruxulear em candelabros, uma dela incinerou folhas de alecrim e poeira de gatos defuntos em brasas vivas e passou o defumador pelos quatro cantos da cozinha, descrevendo um x em nevoeiros breves. A outra posou ao centro um alguidar com água de charco onde deitaram cruzes feitas de junco. Discordaram uma única vez, sobre as palavras correctas e a respectiva ordem.

«A oração de Santo Adrião? Não é isso que lá está escrito.»

«Não faz diferença. O importante é a qualidade da cera.»

Utilizaram velas de aniversário. Derreteram-nas num caldeirão e despejaram a papa no alguidar. Passaram quatro horas antes de o líquido começar a borbulhar, vomitando golfadas pálidas. A figura emergiu – ao princípio, apenas uma cabeça desgrenhada (oito folhas de erva do quintal, o melhor que conseguiram arranjar), um ombro nu e liso, meio braço, meio tronco arrepiado. Uma delas tocou ao de leve no ombro com uma lasca de ardósia. A figura estremeceu, mas continuou a ganhar contornos e opacidade.

«Queremos que tenha olhos?»

A outra riu-se. Era uma piada antiga entre ambas.

«Mas desta vez podemos querer conversar.»

Com um aceno de concordância, a outra estendeu o indicador e traçou um golpe horizontal na cabeça da figura. Um vergão rosáceo ondulou no sítio onde viria a formar-se uma boca. As duas mulheres suspiraram ao mesmo tempo e sentaram-se em cantos opostos da cozinha, admirando a confecção, e aguardando serenamente que aprendesse a falar.

 

Alice G.

 

despesadiaria às 19:58
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Quarta-feira, 31 de Dezembro de 2014

 

As coisas mudaram muito desde a última vez, bebé. Sim, as coisas, tudo. Estiveste demasiado tempo fora. Já não são as mesmas regras, os mesmos lugares, as mesmas pessoas, especialmente quando as pessoas ainda são as mesmas. Que é o caso de quase todas, embora algumas tenham mudado de cara. Desta vez vais ter de recorrer a outros métodos, fazer o mais difícil e enganar-lhes o faro. Só há uma coisa que não mudou: as pessoas, as antigas, as novas e as novas antigas, continuam a não ser cães, a precisar deles como guias.

 

Dos cães. Era uma piada. Pensando melhor, não, não era uma piada.

 

Isso não chega, já te conhecem. Vais bater contra uma parede de betão pré-figurado.

 

Já pensaste na possibilidade de recorrer à automutilação?

 

Vamos, deixa-te de dramas, não tem de ser nada permanente, irreparável, se partirmos daquele princípio estúpido, segundo o qual todos somos obrigados a viver, de que existe reparação, regresso, essas tretas. Simplificando, estou a falar de algo na categoria III de Walsh & Rosen. Menos que isso não te leva a lado nenhum, mas não é preciso exagerar. Ou seja, pensa mais na Princesa Diana do que em Édipo Rei.

 

Esta também não era uma piada, embora seja sempre belo quando hierarquias sem relação previsível se encontram ao virar da esquina. Os gregos antes do Alex eram uns chatos, deviam ser proibidos, a quantidade de problemas que ainda causam. Depois de expurgados os seus restos da imprensa cor-de-rosa, o mundo também o seria.

 

Cor-de-rosa. Monótono, portanto. Deixa lá.

 

Isso não sei, não sou especialista, mas não terás dificuldade em descobrir. Há qualidades que não se perdem… Bom, perdem, até porque nem tudo se transforma, mas tu não as terás perdido, se de facto ainda te sobra uma vida. Sabes com quem falar, noutros lugares, com outras regras. A outras horas. O que posso dizer é aquilo que já sabes sem saber acerca da salvação com minúscula, a única de que temos alguma notícia: podem prender-te a alma, mas jamais conseguirão prender-te o corpo.



E.

despesadiaria às 10:35
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Terça-feira, 30 de Dezembro de 2014

 

Chegada a sua vez, Ricardo escreveu no papelinho que lhe foi passado pela direita as suas três carreiras de sonho, para o grupo poder discutir com ele cada uma das escolhas. O primeiro papelinho dizia vampiro, o segundo astrofísico, e o terceiro contrabandista de cerveja na eventualidade de uma proibição da cerveja. Vampiro era o que sempre todos escreviam, e percebia-se o apelo, o próprio moderador do grupo era um há já muitos anos. Mas as autorizações dependiam da densidade populacional do concelho e da caracterização das actividades económicas locais. Em Peniche era complicado. A astrofísica exigia um passado, ou pelo menos uma infância, e não era decisão que se pudesse tomar de um dia para o outro, mas os restantes ficaram animados com a ideia e debateram-lhe a viabilidade com entusiasmo. Nervoso, Ricardo foi obrigado a interrompê-los e confessar que só tinha escrito astrofísica por vergonha de deixar em branco o terceiro papelinho, optando pelo maior disparate que lhe ocorrera. Para a terceira carreira, a de contrabandista de cerveja, pediu silêncio e tentou explicar:

- Quando eu morava no Porto, havia na minha rua duas strippers que se encontram uma vez por semana num banquinho de madeira, já tarde; calculo que era quando largavam o serviço. Ficavam mesmo debaixo de um candeeiro, sob a minha janela, donde consegui um ângulo morto para poder vê-las e ouvi-las sem que dessem pela minha presença. Compravam sempre seis latas de Sagres cada uma e um maço de cigarros que dividiam. Conversavam sobre muitos assuntos, sem polemizar, sem quererem persuadir ou serem persuadidas, eram vagas e até crípticas, mas sem recorrerem a mitos ou metáforas. Eram muito interessantes e eu ouvia-as com gosto todas as noites. Nunca se embebedavam. Na última semana antes de me mudar para cá, uma delas trouxe uma garrafa de whisky novo e dois copos de plástico brancos, daqueles pequeninos de máquinas de café. Enquanto servia a amiga contou a seguinte história:

Hoje é whisky, Marina, mas eu explico. Neste dia fazia anos o meu pai, que como sabes era contrabandista em San Serife, onde conheceu a minha mãe e onde nasci. O meu pai contrabandeava tudo o que era proibido na ilha, desde cadeados a ukeleles, e nós levávamos uma vida sem dificuldades. Pensarás que num sítio como San Serife toda a gente levava uma vida sem dificuldades, mas não era bem assim. A ilha estava dividida em duas pelo paralelo 38 (sim, é engraçado, mas não, a nossa ilha era no Mediterrâneo, mesmo junto à Sicília). A Norte vivia-se do turismo e quem tivesse um emprego no sector tinha um rendimento aceitável apesar da exploração. A Sul, onde vivíamos, era tudo um bocadinho mais complicado. Só havia oliveiras, lagares, e contrabandistas. Long story short, quando o azeite foi ilegalizado o meu pai ficou muito contente e montou um negócio de turismo rural adaptando os lagares que tinham sido entretanto nacionalizados e posteriormente vendidos em hasta pública. Este negócio servia de fachada para o contrabando de azeite, mas quando, anos depois, se proibiu também a cerveja, o meu pai perdeu tudo para um contrabandista rival do norte, monopolista de lúpulo, que lhe levou o negócio e a minha mãe. Quando chegou a altura de escolher, a minha mãe, de malas feitas, disse-me «filha, tens de vir com a tua mãe», e o meu pai disse-me «filha, tens de ir com a tua mãe», portanto eu decidi ficar com o meu pai. Que no dia seguinte morreu enquanto lavava os dentes (engoliu a tampa da pasta, não sei como fez ele aquilo) e eu fui para o aeroporto decidida a apanhar o primeiro avião que saísse dali para fora. Por azar era Lisboa, ainda hesitei, mas tinha-me comprometido com o primeiro vôo e na altura pareceu-me importante. Cheguei lá sem dinheiro e com duas latas de mau azeite.

Passou e parou entretanto o camião do lixo e não consegui ouvir mais. Quando se foi finalmente embora, já falavam de escritores argentinos. Só que nesse mesmo dia, ou nessa mesma noite aliás...

 

Um alarme de telemóvel anunciou o final da sessão e todos os presentes arrastaram as cadeiras aliviados, acenderam cigarros e dirigiram-se para a Nespresso na mesa de apoio, excepto Ricardo, que ficou sentado de frase suspensa, a pensar na cerveja, em strippers e vampirismo. Uma mulher que partilhava com Ricardo ainda outro grupo de ajuda mútua, voltou com dois cafés na mão e perguntou-lhe se havia verdade na história. Ricardo passou a língua pelos seus decepcionantes caninos antes de responder.

 

Gouveia

despesadiaria às 13:47
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Segunda-feira, 29 de Dezembro de 2014

 

Keims

 

As cartas param, finalmente. Fico com quatro rainhas abertas em leque à minha frente. A vitória cheira ao pão com chouriço acabado de sair do velho forno do bar — só o cheiro, e assim se vai manter. Sobre as cartas que sobraram, inúteis, na mesa, cai a mão aberta da adversária da direita; as pálpebras da cor do champanhe mantiveram-se contraídas durante tempo suficiente para o lápis negro deixar um leve rasto de cinza no canto exterior do olho. Aí encosta-se um pontinho que vai dilatando de curiosidade. Fixa-se nas minhas cartas, como se quisesse ver através delas, e depois sobe como um irritante ponteiro laser, procurando as palavras-chave nas rugas na minha testa. Encontra apenas a dúvida e confunde-a com outra coisa; desvia-se num espasmo desiludido e vota-me à dormência pós-almoço — ou assim pensa. Há uma ténue vibração no fundo da minha garganta que é disfarçada pela gola da camisola. A reação mima o nervosismo de quem não quer perder o autocarro mesmo sabendo que não tem hora para chegar ao destino e que a carreira seguinte parte apenas dez minutos depois. Casos desses são falhanços de microscópio, mas a forma como se somam durante um destes jogos de cartas aproxima-se do intolerável. Detesto o keims; demais a mais, esqueço-me sempre do sinal. Olho para a parceira em busca de uma sugestão. A figura estica-se do outro lado da superfície de plástico amarelo como um copo de pé alto, do género usado pelas avós em dias de festa. O jeito como segura as suas cartas, unidas numa só e encostadas ao queixo, desconstrói-se numa canção de funk brasileiro; se fosse mesmo um copo, teria o desplante de exibir um guardanapo de papel no topo, e o penacho triangular murcharia com o vapor dos cozinhados. Não há nada para mim ali, além do quebranto da digestão em traços excessivamente pomposos. Ocorre-me coçar a cabeça; uns olhos ineptos examinam o gesto, e é tudo. À direita desta triste cúmplice, a quarta jogadora endireita-se na cadeira. Prepara-se para a substituição das cartas, é evidente que ainda tem pelo menos uma para a troca: a pose de mergulhadora denuncia-a. A atenção cola-se às mãos que retiram as cartas do baralho e as colocam lentamente na mesa, responsabilidade que torna à adversária da minha direita. Esta parece concentrar-se exclusivamente na tarefa, mas a franja pintada esconde a maquilhagem esborratada e a astúcia daquela rival. Enquanto coço o nariz, deixo de acreditar que o meu nervosismo é silente: só consigo ouvir o pulsar do sangue contra têmporas como se me quisesse rachar o crânio. Será que o sinal ainda importa? Pela expressão, a minha parceira delicia-se com um filme francês que suponho passar na ponta do meu nariz. Estou perdida em um, dois, três: à sua maneira, as minhas companheiras de jogo atacam a mesa. Eu mantenho-me quieta, com o esgar das quatro rainhas encostado ao peito. Numa questão de segundos, sentirão sobre elas o peso da derrota.

Credo, não posso levar as cartas tão a sério.

 

S. White

despesadiaria às 16:22
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Domingo, 28 de Dezembro de 2014

 

Pequena história de Natal (versão brasileira)

 

Stella saiu de casa apressada e atirou um beijo à avó sentada no alpendre. Com os sapatos de salto na mão esquerda e a pequena mala agarrada na mão direita, corria rua Rio Potengi abaixo como se estivesse a ser perseguida. Na verdade, quem perseguia era ela.

Quando virou à direita para a rua Dr. Mário Negócio, sorriu de alívio ao ver a paragem de autocarro cheia de gente. Se ainda não tinha passado, era possível chegar à hora marcada. Restava-lhe agora esperar que ainda fosse passar, pelo que resolveu aproveitar a pouca luz para se ir arranjando.

Alguns minutos depois, voltou a sorrir ao vislumbrar o seu reflexo na janela do autocarro. Estava perfeita, da maquilhagem ao cabelo. E as luzes dos automóveis que cruzavam a rodovia Governador Mário Covas faziam-na parecer quase uma estrela de cinema.

Saiu na paragem seguinte à do Hospital Colónia Dr. João Machado, mesmo em frente do Parque das Dunas. Era só mais uma caminhada de 30 minutos pelo meio daquele exuberante deserto urbano e pronto.

Quando reapareceu, foi mesmo em frente ao hotel, do outro lado da Via Costeira. Escondida atrás da vegetação, vestiu o sensual vestido que trazia dentro da mala, que substitui pelos calções e t-shirt, e calçou os sapatos. Tirando três mendigos, mais ninguém a viu.

Entrou no hotel, atravessou o lobby dominado pelo gigantesco candelabro modernista e dirigiu-se à recepção.

- Demorou! Pensei que você me ia deixar na mão de novo. Disse uma voz detrás do balcão.

- Me desculpa, Clayverson!  Tô aqui, não tô? Qué que cê acha?

- Tá linda!

- Onde ele tá?

- É aquele cara ali no bar, com a camisa azul.

Stella inspirou fundo, piscou o olho a Clayverson e dirigiu-se ao bar. Nem 5 minutos depois já o velhote lhe estava a pagar uma bebida.

- O meu nome é José. E o teu, minha linda?

Stella, que por aquela altura já o achava bastante burro, respondeu:

- Meu nome é Maria. Sabe, meu papai era português…

 

 

rwtg

despesadiaria às 23:48
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Sábado, 27 de Dezembro de 2014

...

Naquele momento a gente nem desconfia, não dá para saber que depois a coisa não pára mais. Ela me pegava na berguilha só para fazer alguma coisa nesse momento – uma mexidinha na berguilha dentro da média, ou talvez até um pouco abaixo dela. Quando aproveitei para lhe apalpar os ovários e o cu detrás duma cortina, tivemos apenas o tempo de nos beijar. E então ficamos abraçadinhos num temporal magnético com um monte de sensações. Ela começou a dizer, mas assim, apressada, que ainda não tinha idade. Então eu ri, bom, quer dizer, rimos, eu ali de pé com a alma dela nas mãos e os peitinhos.
Dois minutos depois, a gente viu faíscas vermelhas saltarem. Elas me saíam por todo lado, as faíscas. As faíscas dela também, indo para cima e aterrando nas minhas costas. E a gente ficava a mexer, a tentar equilibrar a cabeça em cima do pescoço.
Então, com a boca a fazer um bico dentro da sua orelha, eu disse alguma coisa. Mas acho que ela não me compreendia bem, simplesmente abria a boca na maior mancha roxa que já tive a oportunidade de ver, e toda a vantagem que assim nos oferecia criava também uns embaraços que ninguém esperava mais. O cheiro, esse idioma das mulheres, eu fiava-me um pouco nisso, para me mover e orientar.
Depois, cem pequenos ruídos de tamancos a vir e ir no chão molengo do corredor, ao mesmo tempo.
A boca funda como um desses buracos que a gente encontra num campo de golfe. E a vida que há por trás disso, e uma morte muito de acordo com o resto. Não que me sentisse embaraçado. A diferença tem a ver com o que está a passar. Mas uma coisa destas tem a ver com a fixação, é a coisa consigo mesma. Quando se está lá dentro, nunca se está acordado ou dormindo porque ela mesma nunca está acordada nem dormindo. É um terceiro estado, não um pouco de cada um, mas um outro, sem nada dos dois. Isso faz o mundo inteiro da gente desaparecer. Uma duna dessas é capaz de pôr a gente a se dar conta disso, daquilo, bolhas, galos, luxações, enigmas, fuxicos, coxas, cloacas, espumedos, tudo, tudo de novo. E essa coisa toda, só por curiosidade. E é como se tivesse sido grudada na gente na mesma hora, a confiança nos outros. Essa confiança que se põe de gatinhas e que vai ter de engolir todas as colheradas de merda que os outros conseguirem cagar numa semana. As gajas são um sítio todo em baixo d'água. E no fim estamos separados delas por todo o coito que tiveram de fazer por culpa nossa, de um modo ou de outro. Eu fiquei a socar, simplesmente, porque tinha pensado que era como deveriam acabar agora as coisas naquela noite. Toda a gente já deve também ter sido tocada pela façanha de crescer para ter a idéia de que estava crescendo. Bom, eu apresento isso hipoteticamente, não sei se é verdade. Em todo o caso, estava mesmo a pensar nisso, quando ela se inchou na barriga. As pernas se dividindo e depois reaparecendo juntas. Então eu pus os dois joelhos em cima, como se estivesse a subir na mesa ou na cadeira, ou ainda, como se estivesse a subir sobre a mesa e a cadeira ao mesmo tempo. E no instante seguinte, ela turbilhona que nem uma retrete. Fica em pé no quadril, por cima de nós dois. Balança, a bater um pouco a cabeça no meu ombro.

 

Peor

despesadiaria às 13:11
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Quinta-feira, 25 de Dezembro de 2014

 

IX

 

Uma lâmpada dependurada no tecto reverberava no alpendre como uma forca esquecida num outeiro em pousio. À sua volta, insectos multiformes esgrimavam entre si a melhor colisão com a luz, gravitavam como loucos por entre as mutilações e os suícidios produzidos pelo festim eléctrico. Uma cadeira com pernas e braços de madeira cinzelada pelo tempo decorava um dos cantos daquele espaço; o estofo tecido por uma breve lembrança do que outrora foi veludo a amaciar o firme revestimento de um esqueleto jovem. Ali esteve, tantas horas, quando a tarde começava a vespertar e o sol passava de margem em margem na transição entre estações com uma exuberância cor-de-laranja, a ferida exposta para secar melhor à luz dourada do dia a desvanecer. De dentro, o rebuliço entre gente que se conhecia há muito, a loiça tilintava, um cão ladrava ao longe alertando para o cair das sombras, ali estava, na ponte entre a marca indelével e a sua tentativa de cura, um fazer desnecessário entre a brevidade e a finitude. Agora, as ruínas compostas por uma digna persistência, atentas, e, dentro delas, objectos que ainda vivem da sua função inicial. Alguém deixara a luz acesa, iluminando memórias, alimentando os fantasmas dos intrusos.

 

gisandra

despesadiaria às 12:29
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Terça-feira, 23 de Dezembro de 2014

...

Para dizer a verdade, não lhe apetecia absolutamente nada que fosse Natal. Nada, nem um bocadinho. Enquanto passeava pela Baixa, com as musiquetas da época a picaretarizarem-lhe os tímpanos, o que lhe ocorria mesmo era um atentado. Assim daqueles bonitos, que fazem kachabum e o povo fica a falar neles dias e semanas e directos na tv e as famílias e tudo. Mas não, dizem que não dá jeito, que não é bonito, que agora está a dar um programa melhor na tv. E então lá vai comprar as prendinhas do costume, um guarda chuva, uma caixa de maçãs, duas moedas antigas, vinho do porto com a idade certa e arre gaita com tanto saco já vou ter de pagar um táxi. E é nisto que a divina providência providencia o escape perfeito. Um anjo, um anjinho, uma coisa catita com luzes e tudo a baloiçar por cima das cabeças dos transeuntes em trânsito. A coisa espatifa-se ao comprido (há quem diga que foi de lado, testemunhas oculares desenbocam sempre nestas versões contraditórias) e consegue, com jeitinho, acertar-lhe o suficiente na cornadura para provocar nada mais nada menos do que a semana de cama, sopas e nenhures que tanto desejava. Afinal o Natal pode ser uma coisa linda, às vezes quando esfrega as órbitas com afinco suficiente até lhe parece que está a ver o menino estendido nas palhas - já sem burro e vaca que o alemão agora confinado ao mosteiro não é muito dado a fábulas de estábulo…

DoVale

despesadiaria às 11:42
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Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2014

...

8h30

 

1. Gustavo deitou-se na noite de 8 de Março de 2014 às 23h50 e acordou às 8h20 do dia 9 de Março de 2006. Demorou a notar que o tempo regredira precisamente oito anos naquela noite. Só quando ouviu baterem à porta do quarto é que percebeu que algo estava errado. Era a sua mãe. Vinha chamá-lo para o pequeno-almoço. Mas isso não podia ser, Gustavo mudara-se há dois anos e morava sozinho desde então. Então reparou melhor: o seu pijama não era aquele com que se deitara, o quarto em que estava era diferente, o seu corpo parecia outro, mais delicado e ágil, mais novo. Gustavo percebeu então que estava no pijama, no quarto e no corpo dos seus dezassete anos.

Apesar do espanto, o que Gustavo mais sentia era um grande alívio: não precisava de ir trabalhar. Até perceber o que se passava, não passaria pelo menos aquele dia no escritório da empresa a corrigir orçamentos e a rever projectos. Tinha de ir para a escola, rápido!, dizia-lhe a mãe. E ele, perdendo toda a necessidade de lógica naquele estado de inverosimilhança, sentiu-se contente em conformar-se ao que a mãe lhe dizia para fazer. Tinha de ir para a escola. E assim foi. Durante quatro meses, Gustavo reviveu com desbragada alegria os seus dias de liceu. Reencontrou os seus amigos de 2014 nas salas de aula, nos campos de futebol e nos cafés. Gustavo reparou na espontaneidade daquelas amizades, no viço e na franqueza que desde então se tinham moderado até ao socialmente recomendável dos vinte e cinco anos. As tardes de conversa nos cafés eram tal e qual como a sua memória as preservara. Faziam-se e desfaziam-se planos inadiáveis como se fumavam cigarros. Alguns, poucos, cristalizavam-se no compromisso do grupo; e assim se marcavam as férias de verão, como se fez naquele ano de 2006.

Gustavo, entretanto, debatia-se com um dilema maior. Na primeira passagem pelos seus dezassete anos, renegara a todas as paixões na promessa de uma carreira estável e bem paga quando, em 2006, se inscreveu na faculdade num curso que sempre detestou. Os pais, os professores, os conhecidos, o establishment e, sobretudo e mais do que qualquer outra coisa, a razão e bom senso – os seus, claro; os seus medos – patrocinaram aquela escolha. Tiveram a sua chance, então. Desta vez, mandá-los-ia todos às urtigas. Aos vinte e cinco anos, Gustavo saltitava desiludido de estágio mal remunerado e frustrante em estágio mal remunerado e frustrante, e não alcança o vislumbre de uma janela para o futuro estável e bem pago que lhe tinham prometido. Pensou então que, para igual desfecho, mais valeria estudar algo de que gostasse realmente, ainda que lhe garantissem solenemente que o percurso seria incerto e tortuoso. Convencida a razão e o bom senso, fez então por convencer todos os outros. Seguro da sua decisão, foi mais fácil do que imaginara. Apenas o establishment se manteve intransigente. Mas, na verdade, pensou, quem se importa com ele?

Em Maio, no dia do seu aniversário, Gustavo anunciou que, ao contrário do esperado por todo, ele não seguiria Engenharia Civil em Lisboa. Decidira, isso sim, que se mudaria para Évora, onde ingressaria no curso de Estudos Urbanos. Todos esconderam o esgar de desaprovanção entre a língua a bochecha, e dificilmente acomodaram o sacudir dos ombros nos confins do esqueleto. Mas, pela primeira vez em oito anos, Gustavo sabia instintivamente que aquele era o caminho certo. Porquê? Talvez porque o instinto proceda das paixões, pensou Gustavo, enquanto recordava o processamento dos almoços sem ambição, sem sal e sem graça, dos seus vinte e cinco anos. E as paixões, como os almoços, concluiu, não se devem moderar nunca. 

 

p.a.leitão

despesadiaria às 19:31
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Domingo, 21 de Dezembro de 2014

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Três micro-contos de Natal (a partir de três tweets)

 

I

Era uma vez um menino alemão que pediu ao Pai Natal um Panzer. Queria, com ele, destruir o prédio vizinho, onde viviam judeus. Recebeu uma bomba aliada que destruiu todo o quarteirão.

 

II

Comprara o maior bacalhau de sempre, um portento de quase 1,5m de comprimento. O lombo mal cabia na panela. Na ceia de Natal morreu com uma espinha gigante atravessada.

 

III

Naquele Natal foi com o avô ao pinhal cortar um pinheirinho. No meio da casca veio uma centopeia escondida, que mordeu o Pai Natal. Nesse ano não recebeu presentes.

 

nev

despesadiaria às 12:55
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Sábado, 20 de Dezembro de 2014

 

Animação Cultural

 

Enquanto ela foi buscar gelo à cozinha, passei os olhos pelo salão. Tapetes caros, dois candeeiros japoneses, um poliedro de água suja com três malmequeres recortados, meia-lua de ferro forjado suspensa do tecto. Por cima da lareira um rosto desenhado a carvão, sem moldura. Levantei-me do sofá para o ver mais de perto: seria uma mulher já com idade avançada, de traços vagamente familiares. As sobrancelhas, o maxilar quadrado e o sorriso assimétrico sugeriam o rosto de Mariana, mas os cabelos eram mais lisos (e menos frequentes), os olhos embaciados, o pescoço, quase invisível atrás da queixada enorme, um amontoado de sulcos e trincheiras.

Mariana voltou, deixou cair os cubos de gelo dentro dos copos e veio pôr-se atrás de mim. Uma intuição: «É a tua mãe?»

«Sou eu. Ou vou ser eu, faz mais sentido dizer assim. Há uma ponte em Toledo ocupada exclusivamente por profetas desempregados. Um deles desenha a tua alma gémea, outro mostra-te como serias se fosses do sexo oposto, outro maneja malabares em chamas enquanto recita o teu testamento. Há de tudo.»

«E isto?»

«Isto é suposto ser a minha cara daqui a quarenta e seis anos.»

«Ideia gira.»

«Já me pareceu. Mas o que acontece é que cria uma auto-imagem que não nos é permitido influenciar. É como alguém a ler-nos a sina e depois passarmos o resto da vida a tomar decisões baseadas nesse prognóstico de feira. Não se passa um dia sem que me lembre deste retrato, cinco, dez, quinze vezes. Cada contratempo, cada desilusão, e interrogo-me: será esta a primeira ruga, será hoje que começo a ficar com as córneas amarelas? O espanhol apenas teve de olhar para mim dois minutos e fazer uma piada. Eu tenho de olhar para o espelho todos os dias e ver a piada cada vez mais próxima. Às vezes penso em encher a banheira de cubos de gelo, cortar os pulsos e deixar-me esvair em paz, com esta cara e neste mundo, para nunca chegar àquele, inventado por outro.»

«Credo.»

«Mas depois passa.»

 

Alice G.

 

despesadiaria às 20:15
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Sexta-feira, 19 de Dezembro de 2014

 

Cumpri o dever de nunca perder o norte nem tempo com a busca de um sentido nos objetivos que tracei. Ou que traçaram por mim, não tenho certeza, memória ou interesse em saber o que não pode ser alterado. A futurologia retrospetiva é para os sonhadores, quando dela se pretendem efeitos coletivos que se sabe serem inalcançáveis, e para os cobardes, quando se acabam os lenços de papel. Parto do princípio de que se tivessem posto portagens na autoestrada para Damasco, os factos a partir daí construídos teriam acontecido noutro ponto da rede viária. Que se não me tivessem quebrado os dedos com maldade na porta de fole do elevador, teria abandonado o piano por razões tão válidas como o eram os tendões. Os delírios acerca do percurso de cada um são apenas lenha para o azul da chama do espírito — e eu não tenho espírito, nunca precisei de espírito, tenho um guião que segui à risca e sem risco. Fugi de quem tive de fugir, deixei em branco os espaços que a ignorância permitiu, matei a fome com a carne que os grifos deixaram para trás. Mais que uma das esperanças de plástico importadas do Pacífico, tenho, enfim, o conforto virgem de poder dizer que, se não consegui falhar, foi só porque ainda não me deixaram.



E.

 

despesadiaria às 00:13
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Quinta-feira, 18 de Dezembro de 2014

 

Darya decidiu ir morar para um filme sueco ao pequeno-almoço. Espremia o sumo de uma toranja ao ritmo do moinho de café, cujo zumbido subia meio tom a intervalos regulares, como num blockbuster dos anos setenta acelerado a 78 RPM. Ainda era de noite. Parou ambas as tarefas antes de as terminar, e decidiu que a sua vida precisava de planos fixos e close-ups, precisava de relógios na parede. Fez mentalmente o enquadramento por cima do aparador vermelho onde estava um círculo mais branco do que o resto. Perpendicular ao fogão, deixou cair três fatias de bacon na frigideira de ferro fundido, e isolou o crepitar da gordura da restante banda sonora. Lutou pela supremacia deste, forçando ao silêncio o Frigorífico por breves instantes, ainda assim um feito extraordinário àquelas horas. Quando O libertou, o assobio da chaleira anunciou a fervura em simultâneo com o arranque do motor, e a gota suspensa da torneira caiu finalmente no inox. Desligou os dois bicos e olhou sobressaltada para a porta da cozinha. Christophe, de chinelos velhos de cabedal castanho quebrado por rugas e pijama azul de finas listas verticais. Christophe, com um Lucky Strike de maço mole amachucado no bolso do peito. Christophe, meio fora de plano, a tapar a cara com A Condição Humana de Malraux. Francês de merda, pensou Darya em russo.

 

Gouveia

despesadiaria às 08:43
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Quarta-feira, 17 de Dezembro de 2014

 

Um conto de Natal*

 

A campainha tocou quando faltavam dez minutos para a uma da manhã. Joana abriu os olhos, duas rolhas saltaram contra o teto produzindo dois baques secos, dois tiros. Tinha passado a última hora deitada na cama, debaixo da colcha azul e dos dois edredões; um esconderijo quente e abafado, onde se sentia uma panela de pressão envolta no próprio vapor. As mãos húmidas entrelaçavam-se sobre o umbigo nu e aderiam à pele com um revestimento de cola batom. Os batimentos cardíacos insinuavam-se através de uma artéria que tremia na perna direita; este compasso transformava o tempo numa sensação tátil e permitia-lhe saber as horas sem olhar para o relógio.

A luz do corredor entrou pelo quarto e Joana ergueu-se na cama, segurando as cobertas até às clavículas. Viu a figura da avó agarrar-se ao farto peito que lhe caía até à cintura em dois pesados sacos; uma figura amorosa, à qual a camisa de noite assentava como um largo abajur. Da ombreira da porta, olhou para a neta com temor interrogativo. Aproximou-se da entrada do quarto e estacou ao lado da cadeira onde Mimi se sentava agarrada ao joelhos ossudos, com o nariz escondido e cachos de cabelo a disparar em todas as direções. Parecia um animal selvagem. Os seus olhos rasgados cruzaram-se com os de Joana numa linha de partículas de pó; Joana percebeu tudo:

— É para mim, avó — disse, enquanto se levantava e vestia o robe riscado.

A avó chupou as bochechas para dentro e recuou de novo até ao corredor. Ficou à frente da luminária, cuja luz amarelada parecia enriçar as mechas brancas que lhe saltavam dos rolos e acentuar o ar cadavérico oferecido pela falta de dentes. Derrotada pelo tom veemente da neta, ainda se atreveu a perguntar: — A esta hora, filha?

— É para mim, avó.

Joana esperou até a avó se recolher ao quarto de onde viera para sair do seu. Ouviu Mimi saltar da cadeira e seguir atrás de si enquanto se dirigia à porta: estava trancada; um porta-chaves com uma estrela metálica pendia da fechadura. Quando Joana se preparava para rodar a chave, Mimi tocou-lhe no ombro com um dedinho magro e fê-la virar-se; estendeu o mesmo dedo na direção da sala e caminhou em direção ao braço do sofá que se disfarçava na semiobscuridade.

Na sala havia um grande aparador de madeira escura e estilo rústico. A loiça chinesa que o enfeitava tinha sido substituída há poucos dias por um presépio com chão de musgo e teto de hera. As figuras dos três reis magos perfilavam-se sobre uma linha de farinha entre a cabana iluminada por pontinhos de luz branca e uma grande pedra calcária, atrás da qual um pastor cuidava das suas três ovelhas de cerâmica. Mimi postou-se ao lado do pastor e cruzou os braços. O maxilar anguloso, o traço menos infantil que possuía, apontava ora na direção da pedra, ora na direção do caminho que Joana fez para a alcançar: o bafo imaginado das vaquinhas de brincar guiou-lhe os braços até à pedra, que agarrou e aproximou do peito. Mimi sorriu perante o querido gesto. A lua não estava cheia; o que dela passava através da janela da sala alumiava os pontos mais salientes da cara da rapariga de um modo macabro e estranhamente familiar.

A porta da rua abriu-se com um queixume grave. Uma ligeira neblina abraçava os bolbos esbranquiçados dos candeeiros de rua e os tentáculos brilhantes com que o vizinho da frente envolvera o tronco de uma velha iúca. Joana desceu as escadas e desceu a pedra: encostava-a agora ao ventre, como carga num regaço. Um ramo de rosas excecionalmente pesado. Mimi foi a primeira a alcançar o portão. Empoleirou-se no topo plano do pilar ao qual se fixavam as dobradiças ferrugentas e cobertas de minúsculas gotas de água; cruzou a perna; cruzou os braços; esperou que Joana puxasse o trinco e arrastasse as pantufas até ao vulto que a esperava, encostado a um carro preto.

— Ouve, bebé, eu precisava de esclarecer as coisas — a voz restolhava. — Levaste tudo demasiado a sério. Nós só nos estávamos a divertir.

— Não. Não foi divertido — confessou Joana à pedra.

O rapaz tentou descolar a espinha do carro. Curvou-se para a frente e usou os braços como alavanca, mas assim que se achou sem apoio, uma força invisível atirou-o de novo contra a janela do carro. O movimento arrastou consigo uma massa de ar que se misturou no halo húmido à volta de Joana. Cheirava a álcool. Mimi soltou uma gargalhada que também restolhou, como uma lebre que se escapa entre as canas.

— Não percebi nada. Aproxima-te, pá! — E estendeu um braço mole para a fita do robe de Joana; tentou puxá-la, mas a pedra estava no caminho. Um veio brilhante, como as nervuras da carne de vaca cozida, cortava a pedra ao meio. Refulgia no jeito ameaçador de uma lâmina bem amolada. — Porque é que trazes essa pedra?

Mimi saltou do pilar e colocou-se atrás de Joana, que fechou os olhos. Duas tenazes agarraram-lhe os pulsos; deixou-se conduzir através do conhecido túnel branco, ao som de mil abelhas presas num televisor. Levantou os braços, expondo o laço que lhe fechava o robe. O rapaz estendeu de novo a mão e, à terceira tentativa, consegui puxar uma das pontas. Depois, a pedra do presépio rachou-lhe a fantasia ao meio.

 

*está bem, tenho que reavaliar a minha noção de piada; ainda assim, como já não vos vejo até lá, Feliz Natal.

 

S.White

despesadiaria às 15:22
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Terça-feira, 16 de Dezembro de 2014

 

Chapéus há muitos

 

Era a sua boina favorita. Tinha-a encontrado à beira da estrada, quando ia a pé para a escola. Seu pai tinha-lha tirado com o pretexto de ser uma boina de homem, e só a devolveu no dia em que J foi para a tropa.

A partir daí, usou-a sempre que teve oportunidade, mesmo em Angola, o que fazia dele uma espécie de anedota do regimento. Mas J nunca se importou. Ninguém lhe tirava da cabeça que era uma das razões para ter saído de lá vivo.

Era a sua boina da sorte, chamava-lhe M. Ele tinha-a posta quando a conheceu, e ela não pode deixar de sorrir quando o viu. As boinas estavam já muito fora de moda, por aquela altura.

Naquela manhã, M já não estava lá para se despedir dele com palavras doces e esperança no retorno. Mas ele tinha a sua boina, e isso bastava-lhe para ter a força necessária para sair de casa e ver outra vez o mundo. Eram cada vez mais raras as oportunidades que as mazelas do corpo gasto pelo tempo lhe davam para o fazer.

Olhou-se no reflexo da montra de uma loja fechada e confirmou o ar distinto que a boina lhe conferia. Era a sua boina favorita, e quando o frenesim causado pela ambulância do INEM finalmente passou, era a única coisa que restava dele.

No passeio, junto à paragem de autocarro.    

 

 

r. o. w. tag

despesadiaria às 21:31
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Segunda-feira, 15 de Dezembro de 2014

...

Guardanapo 22

 

No século XI, quando a atracção ocidental pelo patético foi vista pela última vez em terceira pessoa a deambular pelos textos canónicos do Simbolismo Atmosférico, o enxuto catálogo de exemplos que forneceu, separou um dilatável cálculo de probabilidades sem variação daquilo que a fórmula encolhida (trívio) tinha por costume degenerar em mera circunstância biográfica. Da realidade que se propunha imitar, esse origâmi fonético anteposto a futuras encarnações de versos esféricos, cónicos, cúbicos, cilíndricos ou piramidais, esvaziou a tese de que a reprodução de um simulacro por outro subdivide o ridículo em um abecedário cartilaginoso que expele do mundo a necessidade de expedições ao Pólo Norte narrativo. Ao consentir com essa perda de associações, trouxe de um modo evanescente e modesto as maquinações transversais que vinte e cinco mil versos irregulares depois, arribaram em terras portuguesas e, ao dia seguinte, foram embora num impulso semelhante a uma carga de baioneta.

 

Peor

despesadiaria às 02:55
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Domingo, 14 de Dezembro de 2014

...

é pouco mais do que um fiapo de ser humano, a mulher que me toma a dianteira na corrida para a caixa registadora. vejo-a pousar o cabaz cheio e os olhos vazios nas mãos de sopeira da dona augusta, que passa os códigos de barras a velocidade de cruzeiro, ao ritmo do chilreio electrónico que o dinheiro faz quando está a entrar em caixa. uma sinfonia para os seus ouvidos.

no cesto de compras da mulher que tem a espessura de um fio de cabelo, entrevejo um saco de batatas para assar, alguns dentes de alho, uma lata de polpa de tomate, 1 kg de arroz carolino e duas maçãs starking. no fundo do cesto, espreita a cápsula de uma garrafa de logan, muito tímida, por entre os restantes víveres.

ela, como se temesse a censura, põe-se a falar da fruta. elogia com desmando as propriedades das maçãs que leva para casa, lamentando o facto de já só haver duas senão levava mais. já a cicuta parece ser preferível às tangerinas que me viu ensacar para comer mais logo, depois do jantar, avisando-me que, quando as come, passa mal a noite e a manhã é toda feita a vomitar. aliás, ainda ontem voltou a tentar comer uma tangerina. o senhor doutor diz que precisa de vitamina c e, então, levou algumas daqui da senhora augusta. o resultado foi o de sempre. nunca mais. 

ao devolver-me o troco (renitentemente, como é seu hábito), a dona augusta acha por bem informar-me que ontem não teve, em momento algum, tangerinas para vender. 

gente assim só dá mau nome à hortifruticultura.

 

- azeite

despesadiaria às 14:39
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Sábado, 13 de Dezembro de 2014

 

VIII

 

Os cumes da cidade revelavam, agora, não aquela magnitude de quem os observa de um ponto mais baixo, mas uma planície plácida de betão, com um ou outro olho de vidro a reflectir o horizonte. Uma risca rósea atravessava o céu, dissipava-se aos poucos num lento estilhaçar da horizontalidade. O isqueiro faiscava uma e outra vez, a ameaça de lume sempre a desvanecer. O cigarro pousado nos lábios ia absorvendo a neblina que começava a cair e uma nuvem de fumo aspirava à memória, a última seiva de nicotina para sossegar a chusma interior. Acima de tudo, era importante registar as mudanças atmosféricas, os sopros de ventos, a vertigem das chuvas, regular os acontecimentos externos, calendarizar ocorrências. Uma tempestade começava a formar-se; por dentro, os presságios do corpo em alerta. Tudo parecia regressar à ordem iniciática: muito ao longe, as serranias ressoavam o seu grito perpétuo, uma sombra vinha, completa, imensa, cobria-as da noite com a noite. Testemunhava e recuava, um passo atrás para interiorizar melhor os efeitos da subida, a sua presença e atenta auscultação impulsionavam a trepidação daquele mundo em ebulição. O homem-caos em partículas arremessado no ar, um torvelinho de vento a embalar a doce emancipação. Caído, um caderno com anotações, setas ascendentes, cruzes, uma nódoa de números e linhas, a lista imperceptível de eventos celestes. Quando voltou a descer, o seu lugar havia sido ocupado por uma ave tricolor, nos afazeres da manhã preparava o voo, iria trazer-lhe a refeição mais gulosa; era, agora, parte do bando.

 

gisandra

despesadiaria às 16:19
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Sexta-feira, 12 de Dezembro de 2014

 

Querida Luísa,

 

Não cheguei a dizer-te e agora já é tarde para sentires a tragédia, que foi dar em comédia graças ao tempo que passa e leva, mas no dia que sucedeu àquele em que perdi o guarda-chuva, choveu a potes, mas ao céu só lhe deu para rachar minutos depois de eu ter saído de casa, eu que inicialmente decidira ir a pé mas fora convencida pelo João a deixar-me de extravagâncias: ameaçava chover e era longe e eu sou deusa – e as deusas andam de autocarro. Condição pouco divina era aquela em que me encontrava: sem passe e sem dinheiro, prometi-lhe que iria ao multibanco carregar o maldito com os 10€ que me restavam na conta, mas enquanto já pingava sobre o meu cabelo solto, fui informada de que o carregamento mínimo era de 15€ e, então, com aquela desmoralização muito própria dos vivos, fui a pé para o trabalho, à chuva, ao frio (a falta que me fez um lenço ao pescoço) e a sentir-me a mais miserável, no meu melhor número Charlie Brown. Quando cheguei ao silêncio de nenhum olhar em volta, soltei o drama todo que acumulara pelo caminho e chorei, chorei, chorei, até ser patético o suficiente para eu parar de pactuar com a minha veia artística. E foi assim que, já muito calma, me plantei ao balcão do estabelecimento comercial de que sou funcionária para vender o dom da palavra aos vencedores desta vida. Em retrospectiva, não era nada de muito grave, mas sabes quando pequeninas derrotas se sucedem até formarem um drama? Uma coreografia tão implacável de marteladas na cabeça que foi fácil ver-me desaparecer pelo chão.

 

P.S. Eu sabia que alguém me ia levar o guarda-chuva; um guarda-chuva com gatinhos... Mas não é verdade que nesse dia eu fui triste para casa. 

P.P.S. Gosto de ti. Telefona-me.

 

Menina Limão

despesadiaria às 22:02
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Quinta-feira, 11 de Dezembro de 2014

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A pobre Charlotte já se tinha queixado. Água fria pela manhã é uma daquelas torturas hoje muito em voga, em que se acredita que o mero acto de sofrer é, em si, uma coisa boa. Mas Charlotte nunca alinhou nessas merdas. Nunca correu, nunca fez jogging, nunca fez running nem fará o que caralho chamarem a essa merda a seguir. Não se mete em iogas, dispensa o reiki, manda despachadamente para o caralhinho a primeira pessoa que lhe vier com conversetas de alinhamento dos chakras ou leitura da aura ou equilíbrio espiritual ou o quinto dos infernos que os guarde a todos.

Já lhe basta a ginástica diária que o ofício lhe impõe. Não precisava mesmo é que a puta da pensão tivesse agora uma avaria na caldeira - é o que lhe gritam do rés-do-chão. Charlotte, diga-se sem rodeios, é puta. Não foi bem um acidente, acabou por ser uma escolha. Percebeu cedo na vida que curvas rimam com notas, não se fazem muitas perguntas, tem clientela certa e bem educada, às vezes até mete viagens, gostou muito de Paris no mês passado, ora pois, quem não gostaria?

Mas, nas últimas semanas, começou a vacilar. Um novo homem, apresentado por um velho cliente. Não sabe explicar, há qualquer coisa nele de diferente. Um certo jeito de olhar, de falar, de mexer as mãos. Nem consegue perceber porque é que um homem daqueles precisa de uma mulher daquelas. Dessas. Dela. E ele fez-lhe uma proposta. Largar tudo e embarcar na segunda-feira para o Brasil.

Na verdade, não há muito - não há nada - em que pensar. Já arrumou as traquitanas, ia só tomar um duche antes de se vestir e apanhar o táxi para o aeroporto. Mas avariou a puta da caldeira e ela ficou puta da vida e, sentada na cama e embrulhada em dois lençóis de banho, deu-lhe para pensar. "Porque é que ele me pediu cinco mil euros adiantados para o bilhete e estadia, não era suposto ser ele o rico?"

DoVale

despesadiaria às 00:29
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Quarta-feira, 10 de Dezembro de 2014

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A Casa Smithes

Bristol, Outubro de 1961

 

John Henry agarrou-se firmemente aos braços da cadeira quando o avião deu início à corrida de descolagem. Nunca se habituara à ideia de voar, ele que, nas tardes de maior calor, gostava de sentir o moer da terra crua nos seus pés descalços. O soluço do avião no instante de pular da pista fê-lo suster a respiração e fechar os olhos. Pareceu lembrar-lhe a vertigem que o afrontava sempre que subia ao terraço mais alto e mais íngreme do Tua, dobrado sobre a garganta do rio. Esse fora o único voo que experimentara até à idade adulta: um planar sem amarras nem medida, tão aterrador quanto belo. Abriu os olhos. O encosto da frente estremecia com as voltas irrequietas do passageiro. John olhou para baixo. Pousado no colo estava um lápis e um caderno aberto, com páginas solenes e pesadas de tão brancas. Suspirou. Pela janela via-se a noite clara de Londres, e toda a cidade em paz. Começou por escrever

The whole structure of our firm has been indeed a family one, at all levels, especially on the Oporto side, and still is to this day. From 1848 onwards, all the partners in the firm were of the four original families. In the lodge and cooperage there are third and fourth generations on the staff. The Douro Commissary is fourth generation, and the great grandfather of one of the best foremen in the Douro was the master stonemason who worked with old John Smithes building the fortress-like walls of the firm’s quinta at Tua.

John Henry tinha 51 anos. Durante décadas, o seu pai, Archibald, encarregara-se dos trabalhos nas adegas e nos armazéns da firma e, assim, John foi crescendo imerso no vinho, nos reluzentes socalcos das quintas e na penumbra bolorenta das caves. Aprendeu a adorar a memória de um homem que ele nunca conhecera mas cujo legado venerava acima de todas as coisas. Fora o avô – John, como ele – que erguera do nada a grande casa comercial que enviava o vinho com o seu apelido estampado nas garrafas para todas as pontas do mundo. John Henry era filho legítimo desse desígnio crumprido a décadas de esforço e dedicação. Na direcção da firma em Londres estavam agora o tio Ernest e o primo Fred. O parentesco com John Henry não era de sangue, antes fruto de uma parceria comercial que se firmara há quase 150 anos. Foram os antepassados de Ernest e Fred que primeiro montaram o negócio em Edinburgo, e depois em Londres. Mas jamais a empresa teria sobrevivido e prosperado em tão longo e largo tempo se o avô John não tivesse deitado à terra do Douro as raízes da casa.

This quinta is called Tua on its gates, but on the maps is down as Quinta dos Ingleses. It was bought in the 1870s by John Smithes from the famous old lady Dona Adelaide Ferreira. Prior to this purchase he had always stayed at the Ferreira’s quintas, as the two firms did very much business together. John Smithes married in Oporto first a Miss Teage, who died within a year or so of the marriage, and some years later, a Miss Cobb. He retired to Hampshire in the year the Douro railway was finished, with his whole family, consisting of wife, six daughters, one son, a Portuguese nurse and a Galician butler. The last returned to Porto to die 39 years later in 1926.

John pousou o lápis. A hospedeira estendeu-lhe uma chávena de Earl Grey. Estavam a meio da viagem. Da janela via os candeeiros das aldeias adormecidas sucederem-se em borrões iluminados. Como se encontrara naquele ponto, pensou, algures entre Londres e Bristol a mais de 30.000 pés de altitude? Quando aterrasse… (Já não faltava muito, um par de horas). Quando aterrasse assinaria os termos definitivos do contrato e todas as suas cláusulas anexas.

Almost, not to say, all the partners, right up to the present day, seem to have made their main spare time the pleasures of the British country, like farming, gardening, shooting and fishing. Old Johnnie Teage was so keen on fishing and shooting that it is reputed he used to sleep fully clothed on a wooden table on which were drawn the record trout caught at Ancora, so as to be certain to be up at dawn the next morning. Old Cobb apparently hearing at dawn that a flight of woodcock had come in rushed out without his license and was thrown into gaol, where he spent the night. Apparently he did not mind as he had already shot twelve woodcock to his own gun!

Passaram-se cinco anos desde que o primo Fred discretamente lhe sugerira num jantar de directores a venda da firma. Propusera o negócio a uns antigos clientes da casa que logo se mostraram interessados. O primo Fred garantiu a John Henry que nada mudaria. O espírito da casa seria o mesmo de sempre, os novos donos manteriam a essência do negócio, os seus vinhos, todos os empregos em Gaia, as boas de relações com os lavradores do Douro, a casa do Tua. Lembrava-lhe Fred que o mundo mudara, que já ninguém vendia vinho como no tempo do avô Smithes. O mercado exigia organizações mais dinâmicas, mais sofisticadas, mais modernas; aquela bela relíquia de empresa familiar oitocentista não tinha lugar naquele tempo. E o investimento para uma renovação adequada da casa era de tal envergadura que nenhum dos sócios da nova geração o poderia comportar, quer pelos capitais que não possuíam, quer pelo rasgo que lhes faltava. Sim, faltava a ambição do avô Smithes, mesmo em John Henry, que sem ilusão o reconhecia.  Os prejuízos persistiam ano após anos. A necessidade dava razão ao primo Fred. E, entretanto, a venda foi-se consolidando na consciência de todos. Em 1960, passou ao papel. Os directores anuíram e John, impotente perante as evidências e perante si mesmo, fechou com a sua palavra a consumação do facto.

They all seem to have been much the same, full of life and verve – perhaps because they so much enjoyed their own wares! Uncle Willie is perhaps the best example of this, as it seems he bought ten pipes of port from the firm when he retired in 1895, but had finished it in a few years and ordered another five. But he was a very, very generous man and no doubt gave much away.

Pediram-lhe que escrevesse as suas recordações pessoais, as memórias da firma. Explicaram-lhe que seriam de particular interesse para as actividades promocionais, por mascarar a operação de engenharia empresarial, contrária à antiga tradição do sector. Na verdade, disseram-lhe, toda a gente gosta de uma boa história, uma anedota, de preferência contada na primeira pessoa – ainda para mais por um autêntico Smithes! Os nossos clientes não precisam de ler relatórios enfadonhos, rematavam, e John Henry fingia compreender. O que mais lhe custava era isto, verter as suas queridas lembranças para instrumento e deleite da nova administração. Fariam aquelas histórias parte da transacção? Talvez lhe tivesse escapado por entre os anexos do contrato. Por quanto venderiam na praça o avô Smithes, a tia Marion, o relato heróico da tia Dorothy, as chalaças tio Willie, do avô Teage, a infância com os primos de Londres, os verões em família na casa do Tua, a memória do seu próprio pai? John sentiu todo o desconsolo assomar-lhe à boca.

The firm has always shown great independence and a lack of fear in going its own way. It has always bought and made its wines at the vintage and all over the Douro district, from Rede, below Régua, to Batoca and Freixo Espada à Cinta, right on the Spanish frontier. Before the railway, all work was done by boat and of course in horse-back. The journey from Porto to Regua took about four days. When the partners began to travel by train apparently at almost every station one or more farmer friends brought them large hampers of cooked foods and wines, complete with cutlery, plates and glasses. And the scene was repeated over and again until they reached their final destination.

Iniciaram a descida de aterragem. Os advogados estariam à sua espera no aeroporto. Asseguraram-lhe desde o inicio que manteria as suas funções no escritório de Gaia. Trataria dos assuntos do vinho como sempre fizera, sujeito apenas às gerais e vaguíssimas directivas de Bristol. Se quisesse, poderia mesmo optar por se dedicar à promoção da boa imagem e relações públicas da empresa. Seria um respeitável senador do vinho do Porto, uma autoridade no sector. Nada que lhe causasse maior repugnância. John olhou novamente pela janela e pensou que àquela hora os lagares do Tua estariam transbordantes de música e alegria, no início de mais uma longa noite de cantigas para acompanhar a pisa. Era a primeira vez em toda a sua vida que faltava ao precioso ritual que celebrava o fechar do ciclo de um ano inteiro de trabalho na vinha. Chamaram-no à pressa do Douro em plena temporada de vindimas. Era impensável tal coisa, imperdoável o mero pedido. Por isso nunca se perdoaria por ter embarcado naquele avião em Londres. Aterraram suavemente em Bristol às 7h20 da tarde. John, que permanecera vários minutos de olhos cerrados, espreitou pela janela para o escuro. Veria acenderem-se os lumes das aldeias do Tua e as lanternas dos arrais nos barcos parados junto à margem, aguardando novas ordens. Mas não escreveu mais nada. Guardou caderno e lápis e dirigiu-se para o aeroporto.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 20:43
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Terça-feira, 9 de Dezembro de 2014

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(micções)

 

Naquela fria manhã de Dezembro ninguém deixou de reparar na alegria mal disfarçada de Ermelindo, quando este, pontualmente (como era seu apanágio), entrou ao serviço.

Ermelindo era, há mais de vinte anos, funcionário da 2.ª repartição de Finanças da cidade de N. E desde que fora atropelado por uma carroça de ciganos, conquistara o dom da profecia. Indivíduo recatado, fazia por guardar os seus vaticínios para si próprio. Sempre soube, além disso, não misturar os deveres laborais com as suas predições, nunca lhe tendo passado pela cabeça beneficiar-se, ou beneficiar terceiros, à conta dos seus poderes. Em abono da verdade, também nunca prejudicou ninguém. Uma criatura simples e exemplar, em todos os sentidos do termo. No serviço era conhecido sobretudo pela extrema timidez e reserva, que contrastavam com a sua competência e afinco no labor. Todos os dias da semana, pelas doze e trinta, saía sozinho para almoço, o que fazia também de forma pontual. A escolha recaía, invariavelmente e há mais de vinte anos, no mesmo restaurante: Casa de Pasto Manuel Brás – Cozinha Tradicional. Não existia outro período do dia tão feliz para Ermelindo como a hora de almoço.

Mas o motivo para a invulgar satisfação naquela manhã prendeu-se com a profecia que Ermelindo fizera na noite anterior. E neste particular diga-se que as predições de Ermelindo raramente falhavam. Conseguiu prever a queda do meteorito de Sanfis com vários dias de antecedência; profetizou a queda do Governo do partido PLC, que se verificaria um mês depois; adivinhou o vencedor do pentatlo moderno nos Jogos Olímpicos de X. Contudo, a natureza da profecia daquele dia era diferente: Ermelindo predisse um cozido à portuguesa como prato do dia no restaurante Casa de Pasto Manuel Brás.

 

nev

despesadiaria às 13:39
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Segunda-feira, 8 de Dezembro de 2014

 

Levantamento de Informação Geográfica de Suporte ao Ordenamento de bruno

 

Será útil reflectir sobre bruno não como área urbanizada, mas como um espaço de complementaridades resultantes da diversificação de condições naturais no território.

O maciço central de bruno foi erguido (na década culturalmente incorrecta) pela ascensão tectónica contínua de uma coluna magmática, o cone vulcânico perfurando a rugosidade arrepiada da superfície topográfica - a camada de recordações sedimentares constituída por escoadas basálticas, margas, vanessas, cristinas.

Essa cobertura sedimentar foi sendo progressivamente desmantelada por agentes geomorfológicos erosivos. Fluidos de escorrência escavaram a rocha mais branda, ajudando à decomposição de aspectos consensuais, depositando aluviões e permitindo a formação de áreas deprimidas, independentes, construindo uma Península (alice).

bruno permaneceu ladeado por plataformas diletantes. Alguns desses micro-relevos acidentais eram compostos por materiais carsificados, cavidades de moral e humidade variada, possibilitando a dissolução do calcário por novos, insuspeitos afluentes. A idade das areias pode ser determinada medindo os sinais de Outono na Península.

O paleossolo testemunha o escoamento, a dimensão do que se ganhou, do que se perdeu. A área emersa foi atingida por colisões eólicas, colonizada por novas vegetações, cujo florescimento permitiu que regimes de erosão ocorressem em segredo. Faunas adquiriram vocabulários próprios. As vertentes declivosas de bruno, com alto teor de argila e esquecimento, tornaram-se propensas a perder a coerência morfológica na presença de fluidos terceiros. A Península derivou.

A fauna ganhou extravagância e, protegida por copas frondosas, afirmou nos seus alfabetos privados que odeia o Outono. Nas enseadas gémeas de bruno, suportadas por cartilagens amnésicas, águas salobras sepultam redomas de sal e relevos submersos.

Será útil reflectir sobre bruno não como um espaço de complementaridades passível de ordenamento, mas como uma grelha em que cada quadrícula é um olho, a piscar na direcção Poente, para longe do que é agora um arquipélago.

 

Alice G.

 

despesadiaria às 19:47
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Domingo, 7 de Dezembro de 2014

 

Um partiu para escrever a nova história da sua vida. O percurso e a escrita confundiam-se, o movimento das pernas virava o da caneta, redigindo um presente que se relacionava com o pretérito como dois ossos de um cadáver esquisito. Uma boleia para longe fazia as vezes de páginas corridas, uma braçada através do rio cosia os restos de um capítulo que cicatrizava. E depois da cordilheira esquemática, superada às custas das articulações, preposições e caligrafia, o oceano da obra inacabada: nem um índice ligava aquela inexistência ao frontispício donde trouxera a matéria.

 

Dois ficou parado no espaço para não se ver no espelho das épocas. Enredado no micélio que escrevia a história dele sobre si mesma, até a página única mais não dizer que um borrão negro, absteve-se de sujar os dedos na tinta do porvir. Incunábulo invisível, insensível, intransmissível, a morte fingida antes da vida como forma de vida depois da morte. Tivesse Dois acontecido algures na viagem de Um e talvez ambos estivessem ainda entre nós, no sentido próprio da pessoa. Tivesse Um lido o abismado epílogo de Dois e talvez tivessem trocado de lugar no tempo, no sentido próprio da física.



E.

despesadiaria às 12:35
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Sábado, 6 de Dezembro de 2014

 

Dizia assim um bordado emoldurado na parede:

 

UMA CASA SEM LIVROS É COMO UM CORPO SEM ALMA
Cícero

 

Quem se deparasse com este pequeno mau gosto não demoraria a perceber que não havia um único livro nesta casa, uma ironiazinha reconfortante. É provável que também notasse, embora mais tarde, que a alma de Jaime lhe era realmente externa. Nas estantes, apenas pastas de arquivo, centenas de dossiers pretos iguais, com o registo total das ocorrências documentais da sua existência. Se um momento gerou um papel, Jaime catalogou-o e arquivou-o, um processo que começou ainda não tinha doze anos. Talões de restaurante, enunciados de exames, catálogos, correio recebido e enviado, flyers e publicidade, contratos selados, recibos de vencimento, ou umas palavras cruzadas, que podiam ou não estar terminadas.

Surgirá naturalmente a tentação de partir desta informação e inferir algumas outras que parecerão fáceis de adivinhar, e que provavelmente não estarão erradas, desde que uma delas não seja a presença de uma patologia no comportamento de Jaime. Aliás, quase se poderia dizer "muito pelo contrário".

O que se passa com Jaime, a sua tragédia, é que todos os seus fantasmas se materializam. São abundantes, como os nossos (como os de alguns de nós, pelo menos), mas manifestam-se de forma mais literal. Vêem-se. A maior parte deles fala, alguns com sentido, outros sem, uns observam apenas, outros ladram ou produzem ruídos metálicos, sons industriais como máquinas a vapor. Que factos originam estes fantasmas? Todos, do mais irrelevante ao mais traumático. Uma conta da luz por pagar, fantasma. Uma aula a que faltou no décimo ano, fantasma. Um amigo conta-lhe que engana a mulher, fantasma. Garrafas de vidro junto com o lixo orgânico, fantasma. E naturalmente tem ainda os seus fantasmas mortais, os que derivam de escolhas de vida erradas, de oportunidades perdidas, de fraquezas maiores, ou das consequências do amor.

Materializam-se de formas diversas. Alguns são espectrais, de aparência demoníaca, esqueletos em mantos como a Morte, homens que carregam as entranhas nos braços, e até o clássico lençol branco com buracos para os olhos, mas há muitos outros. Por exemplo, há um que assume a forma da Mila Kunis nua. Aparece quando Jaime está na cama com alguém e fica a olhar divertido sentado numa cadeira de verga, também ela uma cadeira fantasma (felizmente apenas um outro aparece nu, mas desgraçadamente na forma do Kissinger). Uma mão cheia deles são pessoas reconhecíveis, figuras públicas ou personagens de ficção, mas a maior parte são-lhe desconhecidos, humanóides, e vestidos de forma normal.

Não há uma omnipresença, ou, dito de outro modo, os fantasmas não estão sempre lá em simultâneo. Os que aparecem ao domingo de manhã são diferentes dos de domingo à noite, o que nunca houve foi um momento sem fantasmas até onde vai a memória de Jaime. Também não são todos desagradáveis. Com alguns até se consegue conversar, são sensíveis e inteligentes e Jaime recebe-os com agrado. A questão desesperante é que cada incidência tem potencial para criar fantasmas, donde a extrema organização documental. Só que inevitavelmente, e mesmo estando tudo muito melhor agora, há fantasmas que não consegue prever. Chegou a criar o fantasma de um fantasma, no dia em que, após ter combinado um cafezinho na baixa com um dos simpáticos, o deixou pendurado uma tarde inteira.

É nas decisões cruciais, naquelas de carácter especial ou aparentemente irreversível, que vive o grande terror de Jaime. Quando chegou à idade de escolher uma profissão tirou um ano sabático, e logo veio o fatídico fantasma da indecisão, um gordo careca, de rabo de cavalo, que hoje aparece muito menos mas que ainda vai e vem. É certo que para evitar novas assombrações foi sempre um aluno de excelência, estando portanto à vontade para escolher o curso que entendesse, mas cedo conluiu que não havia saídas seguras. A mãe sonhava-o em medicina, o que seria como abrir as portas do inferno em par, o pai sugeriu-lhe história da arte, mas bastou a Jaime considerar este futuro para levar com os fantasmas da fome e da miséria. Decidiu não ir para a faculdade, estudou em casa o que havia a saber sobre gastronomia e conseguiu emprego num restaurante vegetariano (a imagem de exércitos de fantasmas de novilhos e leitões ocorreu-lhe em cima da hora, já com alguns currículos enviados). Tirando um ou outro fantasma de gastroenterites, que nem tem a certeza de lhe pertencerem, tem uma vida profissional sem sobressaltos.

 

Gouveia

 

despesadiaria às 09:00
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Sexta-feira, 5 de Dezembro de 2014

 

Tabelas

 

Na cozinha, o fervedor gorgolejava entre o vapor escaldante. Já quase não havia água lá dentro: tinha passado a nuvem, e daí multiplicara-se em gotinhas cansadas deslizando pelos azulejos. A luz vermelha na base do pequeno eletrodoméstico desistira de piscar, a cor tornara-se permanente, aflita. Tropecei uma caixa de cartão para chegar à bancada da cozinha. A última bolha empolada estalou um agradecimento quando desliguei o aparelho. Do vulto sentado à mesa ouvi outro agradecimento, saído de uma gruta formada pelo corpo debruçado.

— Ias fazer chá?

A cabeça da Madalena não se levantou.

— Cafééé — respondeu o pompom do gorro que usava em casa, um gorro vermelho, feito com lã grossa. Inclinei-me ligeiramente para trás, tentando ver de onde vinha a sílaba arrastada, mas as orelhas do gorro tapavam-lhe a cara; as pregas de malha quase roçavam na madeira e terminavam em duas tranças de linha que se enrolavam ao lado de uma folha como duas cobras reguilas.

— Estás de ressaca? — perguntei, enquanto tirava do armário duas canecas e distribuía entre elas a pouca água que não fugira do fervedor.

— Ooooooh, nããão!

Mergulhei um saquinho de chá verde na minha caneca e despejei uma colher de café instantâneo na que pousei junto ao intenso labor da minha companheira de casa. O baque da loiça sobre a mesa fê-la endireitar-se na cadeira. Agarrou a caneca com as duas mãos:

— Está friiiiiio! — disse, a vogal tão aguda que a imaginei capaz de rachar icebergues. Olhou desiludida para a caneca meio vazia e depois para mim, que procurava encontrar espaço para apoiar os meus cotovelos na mesa cheia de lápis de cor e marcadores, — ontem tive um blind date — disse, e juntou os lábios para sorver sonora e cuidadosamente o café.

— Um blind date?

— Um blind date — repetiu. Estendeu-me a folha na qual estava a trabalhar.

Eu não sabia o que é que a Madalena fazia quando estava fechada no quarto a ouvir as suas gajas modernas chorando de amor. Interessava-me que pagasse a renda, coisa que oito horas diárias a digitar números lhe permitiam fazer com louvável escrúpulo e pontualidade. Também me interessava que ajudasse na manutenção da casa. Por sua sugestão, uma tabela de duas colunas e muitas linhas enfeitava parte do quadro de cortiça junto ao frigorífico; nela estavam discriminadas as tarefas domésticas e, no final de cada semana, as duas colunas colecionavam aproximadamente o mesmo número de pinos coloridos, colocados em função do que cada uma tinha feito. A princípio, pensei que fosse uma questão de justiça doméstica. Sentia-me ridícula em cada viagem que fazia até ao quadro; se trocássemos os pinos por estrelinhas, tornar-nos-íamos volúveis no tempo como Billy Pilgrim, saltitando entre aquele Outono da nossa juventude e a escola primária da nossa infância. Quando, ao fim de algumas semanas, reparei que as tarefas se dividiam sempre da mesma forma, questionei a utilidade da tabela. As tranças do gorro deitaram as suas línguas de fora (tsssssss): — Eu confio na tabela.

No sítio de sempre, a tabela das tarefas domésticas olhava para as duas pessoas sentadas à mesa. Ria-se da que se engasgava com o chá — gostava tanto de mim como eu dela.

O que eu tinha à frente também era uma tabela, construída com régua e esquadro.

— O que é isto?

— O meu date! — Os lábios desapareceram quando esticou a cara num sorriso estúpido. — Eu seeeeeeeei — virou os olhos para o teto —, ainda há campos por preencher.

A Madalena levantou-se. Entre as ancas e os joelhos, unidos num jeito puro e despropositado, o seu corpo desenhava um coração fendido. Procurei o vidro do fogão através da racha daquele coração. Só consegui ver o reflexo do meu nariz: estava franzido, como o de um porquinho.

— Vou mostrar-te uma coisa —, disse; levantei os olhos e juntei-os aos dela, que pareciam meias luas. O gesto era uma interrogação, um pedido, uma autorização.

O coração desfez-se em duas pernas finas, mas fortes. Mesmo descalça, os passos da Madalena soavam como os de um bailarino de flamenco. Ergui a minha caneca para acabar com o chá. O meu focinho rosado mergulhou na escuridão da caneca; reapareceu em dois goles, frente à pasta de arquivo que a Madalena atirava para cima da mesa. Virei-a para ficar com a lombada à minha esquerda. Muitos dos lápis e marcadores ali espalhados rolaram e atiraram-se para o chão em protesto. Abri a pasta e soltei as dezenas de homens no vapor que enchia a cozinha.

A Madalena voltou a sentar-se à minha frente. Cravou os cotovelos na madeira e apoiou o queixo fino nas mãos.

— Eu confio na tabela.

 

S. White

despesadiaria às 11:54
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Quinta-feira, 4 de Dezembro de 2014

 

Natureza morta

 

O homem assobia rua acima com uma passada descontraída e bem-disposta.

A cada reentrância na magnífica e viçosa sebe que o acompanha desde o início da rua, baixa-se e estende a mão. O gesto é feito com tanta dignidade e cerimónia que quem o observasse poderia pensar que cumprimentava, com uma quase vénia seguida de aperto de mão, um velho e admirado conhecido.

O homem abre a cancela e entra.

“Correio!”, ouve-se então por entre a cacofonia dos pássaros.

Está uma manhã límpida, com uma luminosidade franca e directa.

A rua é muito bonita, todo o bairro é, aliás. Atingiu aquele ponto em que já não é fácil distinguir o que tem interferência humana do que é natural e nativo. As casa parecem estar ali há pelo menos tanto tempo quanto as grandes árvores que ornamentam a rua e os jardins das habitações. A fronteira entre estes e a rua é cada vez mais ténue.

Do lado de dentro dos pequenos jardins, flores coloridas insinuam-se por todo o lado, lançando-se com o seu o perfume por cima dos muros. E nesta altura do ano, o jacarandá florido do Sr. H. dá uma pincelada exuberante de cor na linha de árvores que marca o horizonte.

 É um quadro idílico, e quando nos encontramos diante dele torna-se difícil pensar em tudo o que há de errado com o resto do mundo. É mais fácil imaginar que estamos no meio de uma floresta mágica habitada por pequenos gnomos que vivem em completa paz e harmonia.

“Correio! Sra. H?! Tenho uma encomenda para si!”, ouve-se, enquanto o homem se encaminha para as traseiras da casa.

O curto caminho de saibro rasga um relvado quase perfeito, pontuado por pequenos ajuntamentos de margaridas. Junto à entrada da cozinha, canteiros transbordantes de crisântemos, gladíolos e tulipas ladeiam o alpendre.  

“Sr. H?! Sra. H!? Está alguém em casa?”. O homem sobe ao alpendre e espreita pela pequena janela da porta da cozinha.

Lá dentro, a mesa está posta e guarnecida para um pequeno-almoço abundante. Há ovos mexidos, salsichas, fiambre, pão - torrado e simples, croissants, uma variedade de doces e compotas, manteiga, leite e sumo de laranja. No rádio, ouve-se a previsão do tempo, seguida de música. Um tão belo como redundante vaso de flores no centro da mesa compõe finalmente a cena.

De repente, o silvo de um fervedor ao lume. O homem repete o chamado pela ultima vez, num tom mais tranquilo, mas também mais desanimado: “Bom dia! Está alguém em casa?”.

O homem retira o telemóvel do bolso e liga para a polícia, cujo número já estava memorizado.

“Estou sim? Podia passar-me ao Inspector P? Eu espero. Bom dia, inspector. Tenho más notícias. Aconteceu outra vez. Sim. Igualzinho. A família H. Sim. Sim. Ninguém, como de costume. Não. Ninguém. Não sei, diga-me o senhor. Esta semana já é a terceira vez.”

 

rwtg

despesadiaria às 23:24
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Quarta-feira, 3 de Dezembro de 2014

...

O ritmo, reduzido a uma simples carícia à casca d'água, expõe dos remos alternadamente o lado emborrachado e a banda amadeirada de sua palheta. De tempos em tempos dois rolos espessos de nuvens se abrem; entre eles, através de uma velutina morna e esticada, as aves, num frenesi nutricional, coalham o rio em cima de uma manta de carne azulada da qual se alimentam. As asas, dobradas para o mesmo lado, cobrem à maneira de telhas o corpo escavado onde a pele estendida e o esforço daquele que a puxa criam uma trepidação que garante, ou melhor, esgota o valor dessa mesma trepidação. São as mesmas aves que estão a revirar nas ourelas, parecem frutas vivas a balançar os galhos. A partir delas, as dimensões não são meios de situar os objectos mas ao contrário os objectos que estão ali para situar as dimensões, para fazê-las saltar como uma contrarevelação onde a correnteza, desafogada e rápida, é varada por lajedos verticais. Escavadas num tronco de árvore ou feitas de tábuas costuradas à gavinha, as nossas montarias fazem água de todos os lados e acabarão por afundar. Continuamente esvaziamos o fundo com a cabaça, enquanto, ao longe, insinua-se a curva gradual de um abismo abaulado, um madrigal flutuante de arbustos, rígidos e salientes, que quase não estão pegados ao chão. Depois de rompermos um mofo grosso de folhas onde as cores haviam-se congestionado (o lilás tornara-se arroxeado, o pulso inchava-se, do rosa ao vermelho, e de um amarelo a puxar para o alaranjado), aos poucos, a vegetação dá passagem ao rio, coando-o, entre duas faixas de argila planas e esponjosas. Na margem, perto do pontão, uma estaca sai da água e o chão cresce directo da propulsão achocolatada da espuma. A terra e o rio foram içados, meio de barriga, meio de lado, por mil ventosas superaquecidas, e estão agora obrigados a abolir as distinções habituais entre si. Embriões de faúlhas articulam-se sobre losangos folhudos e placas de dentes silhares encravados até meio da parede, extraídas, não se sabe de onde, numa espécie de fosforescência mal distribuída. Enxurros de encarnações passadas. Aqueles alagados de vinte séculos de vício. Espécie de simum submetido a uma rede interna de entulhos e sangradoiros que há pouco lombrigava, a romper torcicolos de rios, e que agora é um naco de céu que cai e vem atingir o espelho d'água de que é prisioneiro. À frente, parte de um arco-íris o atravessava, dobrado, chapinhando pelos campos de ananás. Rente às tábuas, espiada através de breves parênteses abertos nas juntas vacilantes da canoa, a vida é menos do que uma tênue ondulação no rio, sobe num halo moribundo de plumas e escamas, circuitando-nos os flancos no meio dos quais evoluem insectos que quando se elevam é toda a piroga que parece se elevar acima da água.

 

Peor

despesadiaria às 02:41
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Terça-feira, 2 de Dezembro de 2014

...

é então que o choro é o teu último refúgio

que o torpor te abocanha as entranhas

como se a carne crepitasse por entre as castanhas

 

é então que te sentas na mesa do fundo

para que não te vejam gastar um euro que seja

em copos de vinho e rodadas de cerveja

 

é então que é outono

que fumas o teu cigarro como se não inventasses as luas

nem te confortasse o desespero a que em silêncio te habituas

 

- azeite

despesadiaria às 13:17
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Segunda-feira, 1 de Dezembro de 2014

 

VII

 

No meio do caminho da vida, contornou o passeio e entrou dentro de uma loja. Comprou vários tipos de material: gesso, pincéis, tintas, telas. Ia experimentando diferentes técnicas, maneiras de fazer emergir a torrente que o ameaçava engolir. Pegou num pedaço de gesso que estava junto a si. Sentiu-lhe a textura, tatuou-lhe presságios, uma ideia figurava a matéria. Com as mãos a articularem uma massagem infinita, os veios iam-lhe inflamando vida, esculpiam por dentro o que ia tomando forma por fora; a consciência a brotar de um amasso mais impetuoso. Quando terminou, ao fim de longas horas, viu que tinha erguido uma figura humana semelhante a uma mulher. Vénus desabrochou do doce leito quando a escultura já esperneava. Aprontou-se logo a assinar o despacho a autorizá-lo a desposar o que dele emanou. Por ser um processo demiúrgico em círculo, a matéria tinha ficado contaminada, a mácula estava ostentada no olho direito, o defeito estava simultaneamente na origem e no fim, precisava de ser destruída, recolher ao sentido inicial, uma amálgama disforme: um artista acidental projectara a ilusão mais perfeita, moldou-a, tomou-a para si, mas a realidade não podia coincidir com a criação.

 

gisandra

despesadiaria às 15:15
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Domingo, 30 de Novembro de 2014

 

Third world problems

 

Do alto deste prédio, ninguém parece uma formiga. Não há abismo, como nos filmes; uma abstracção a convidar ao esvaziamento. Vê-se perfeitamente a mercearia do Sr. Esteves, o sapateiro do Sr. Augusto, o aleatório casal cansado e um passeio impecavelmente limpo. Que belo bairro. Faz todo o sentido que não seja o meu. É tão cedo; oito da manhã a cortar a respiração, a respiração a cortar o ar gélido, os meus melhores agasalhos, as contas todas por pagar, as mensagens de Natal exemplarmente ignoradas. Pelo canto do olho esquerdo, vejo entrar no enquadramento uma mulher de passo largo e ondulante, cabelos ao vento, cachecol colorido, pernas longas em collants transparentes. Um súbito abatimento. Ainda não é hoje que me atiro. Não fiz a depilação.

 

Menina Limão

despesadiaria às 10:32
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Sábado, 29 de Novembro de 2014

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Escreveu:

 

Estimado Miguel Capelo Sousa Viveiros,

Quero começar por prometer que a frase que escrevi antes desta será a última mentira que lhe dirijo. Porque de “estimado” você nada tem. Absolutamente nada. Mandaria a prudência que, na hora em que apresento a minha demissão, me mostrasse agradecido pelo emprego que me proporcionou nestes seis anos que levo na sua empresa. Deveria, talvez, louvar o seu espírito de liderança, a justeza das suas decisões, a amabilidade no trato.

Mas estaria, mais uma vez, a mentir.

Na verdade, quero que saiba que você foi o pior patrão que alguma vez conheci nestes 25 anos que levo de profissão. O mais arrogante, o mais ignorante, o mais lesto a apropriar-se das ideias alheias para as fazer brilhar como suas. Não sei se tem noção do quanto as pessoas destes escritório o odeiam. Não, Dr. Miguel, ninguém acha que você tem graça, ninguém acha que você faz uma boa imitação do professor Cavaco Silva, ninguém pensa que os seus reles comentários sobre as mulheres que entram no escritório têm graça (já pensou que o facto de existirem três casais nesta casa pode tornar as pessoas mais sensíveis?), nem tão pouco o empregado do restaurante onde você almoça todos os dias acha alguma piada às suas graçolas sobre o estado do tempo ou o tempo verbal em que faz o pedido.

O que o senhor precisa definitivamente de compreender é que você é uma pessoa de merda. Ou uma merda de pessoa, como queira. Talvez a sua extrema vaidade seja a razão que o impede de ver o quão cruel e arrogante consegue ser para os que o rodeiam. Será tão difícil compreender que as pessoas detestam que lhes peça para ir à lavandaria ‘num instantinho’ ou que lhes vá buscar uma encomenda pessoal ao correio ‘num pulinho’; que o contabilista tenha de tratar do seu IRS e das declarações de mais cinco membros da sua família ou que as suas secretárias fiquem todas as semanas hora e meia para lá do horário de serviço porque precisa do ‘favorzinho’ de uma boleia para levar sua mulher a casa?

Já agora, quero que saiba que não, a sua "jovial e encantadora" esposa não é a mais bonita que já vimos. Nem sequer é a mais bonita que já vimos hoje. É até uma mulher bem desagradável, talvez seja o hálito a leite azedo que a prejudica. Ou será das mamas desproporcionadas que você lhe ofereceu no Natal passado?

Por isto tudo e mais alguma coisa, despeço-me sem um adeus. Espero sinceramente que só nos voltemos a encontrar em tribunal (o seu advogado explicar-lhe-á) . Diria passe bem, mas seria mais uma mentira.

Quero que você se foda.

 

Gravou o texto. Quando o computador lhe perguntou o nome do ficheiro não precisou de muito tempo para pensar: carta de despedimento v45.
São nove e meia. É melhor começar a abrir o correio que o cabrão deve estar a chegar.

 

DoVale

despesadiaria às 10:25
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Sexta-feira, 28 de Novembro de 2014

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A Casa Smithes

Peso da Régua, Julho de 1855

 

Querida tia Dotty,

Com enormes saudades lhe escrevo, nesta breve paragem que faço na Régua. Sigo a caminho do Porto, depois de uma prolongada visita à região vinhateira. Lamento não lhe dedicar o tempo que seguramente lhe devo nesta e em tantas outras cartas que falho em escrever-lhe; devo, porém, embarcar para a cidade em poucos minutos. Mas não irei sem lhe deixar, para seu informado cuidado, estas três páginas escritas com a pressa com que ultimamente correm os meus dias. Digo-lhe, ao demais, que para compreender o novel emaranhado que é a minha vida, bastará o anúncio breve das suas principais linhas para se poderem atar os nós decisivos do entendimento.

Fugindo à partida dos variadíssmos problemas que me enlameiam o passo, digo com alegria, a si, querida tia, que a vindima deste ano, apesar da parca quantidade de uvas, deverá produzir vinhos prodigiosos. No presente estado de desolação que se abateu pelo Douro, será um sopro abençoado e de esperança. A praga continua a alastrar pela terra. Todas as aldeias desesperam quando o labor do fio de meses é perdido em poucos, nefastos dias. Há sete anos, quando visitei pela primeira vez o país do vinho, pareceu-me ter descoberto um paraíso habitado, não por anjos, mas por uma raça de criaturas toscas e sujas, em plena comunhão com o mundo natural e todos os seus seres inferiores. Não esperei nunca a sua amizade, e menos ainda a sua confiança. Depois, com mais atenção, vi como dominavam e subvertiam as leis desse mundo e sobre ele estendiam o edifício rústico, mas aprumado, da sua sociedade. Ora, assistimos a um tempo de estranha novidade para a ordem antiga que subsiste no Douro. Esta nova moléstia não estava prevista nem foi contada em nenhuma prece ou lição deixada pelos séculos. Nada sobrevive no escuro; as pessoas estão desamparadas.

Um dos primeiros lavradores com quem estabeleci negócio foi o senhor Motta, actualmente um grande amigo da nossa casa. Com ele aprendi o cuidado que se deve a tudo o que cresce da terra, homem ou planta. Sendo lavrador com extensíssimas terras no distrito de Covas, impressionou-me a sua profunda angústia quando a moléstia primeiro atingiu as suas vinhas. À primeira vide doente, dedicou dias inteiros de cuidados, passados quase sem comer e sem dormir. Toda a comunidade da quinta se mobilizou em meios e braços para suster a praga. Quando, ao final de sete dias, a vide que ele tão extremosamente tratou, cuidou como pode e como não sabia, com ínfimas poções em que se descobrisse o milagre de um remédio; quando a vide, por fim, morreu, todos se juntaram ao senhor Motta, que permaneceu de joelhos, de mãos na terra, prostrado sobre o cepo seco e morto. Durante essa fria noite, entre ele e entre todos que o viram partilhou-se o mais íntimo desalento.

O luto tem-se espalhado de aldeia em aldeia, da Régua até para lá da Valeira. A terra sofre, e as pessoas que nela crescem sofrem com ela. Sempre foi assim no Douro, contam-me. Porém, como a força do rio que por lá corre, as dores calam-se nos dias de lavoura e a esperança vai renascendo naquela gente, não sei ainda por que misteriosa luz. O senhor Motta, ao longo de muitas e laboriosas semanas, tem inventado formas de, se não anular, ao menos abrandar os efeitos da terrível doença. Graças a ele, ao seu engenho e perseverança, nesta vindima os nossos vinhos deverão sair já com o vigor que lhes é sobejamente reputado em Inglaterra.

Queria tia, muito contente lhe conto que o sucesso da nossa casa se deve à estimável e preciosa parceria com os lavradores desta terra. Os terraços da nossa belíssima casa de Lamellas, em Covas, dificilmente rivalizarão com o seu magnífico jardim de Entre-Quintas; mas a bênção que aquela casa é!, por nos permitir a gerência de todos os negócios na região, a visita dos nossos queridos amigos e, ainda e mais que tudo, o repasto das doces tardes de verão. Não há decididamente sol tão puro como neste país – a tia sempre me disse. E desse sol, lhe digo, vem toda a excepcionalidade deste vinho.

As grandes casas de lavradores do Douro percebem isso. Uma figura, em particular, domina com perfeita mestria essa maravilhosa alquimia que transforma o sol em vinho. Os nossos compatriotas no Porto vêem-na apenas como mais uma nativa ignorante, indigna do seu interesse. Messr. Greig pensava precisamente o contrário, e escreveu-lhe pouco antes de partir recomendando os meus préstimos e incentivando o negócio com a casa. Foi assim que conheci Dona Antónia. Estávamos na Régua, eu e Henry, que tinha vindo visitar o país por altura das vindimas. A inteligência de Dona Antónia cativou-me de imediato e desde então tenho-me correspondido regularmente com ela. Planeio, aliás, uma grande parceria com a sua casa, se assim no Porto me derem os meios para tal. Dela tenho recebido preciosos conselhos. O senhor Motta entusiasma-se sempre com os relatos do trabalho na sua mais requintada vinha, o Vesúvio. A sensibilidade daquela grande senhora para o vinho e para os negócios são já lendárias entre as gentes do Douro. Como já o confessei a Henry, tenho a inteira certeza que, se pretendemos o contínuo e crescente sucesso da nossa casa, Dona Antónia será a chave para o alcançar.

Mas eis que se levanta a magna e indignada oposição dos nossos compatriotas no Porto. Já lhe contei, tia Dotty, como me sinto tristemente excluído, duplamente expatriado, da excelsa comunidade inglesa naquela cidade. Nem as elogiosas palavras de Messr. Grieg valeram à minha boa aceitação. Os capitais que me faltam para firmar o meu nome como sócio de propriedade, em pé de igualdade com Mr. Archibald e o irmão em Londres, impedem a minha plena inclusão no grupo dos comerciantes. Dificultam a minha entrada no club, ignoram-me em todas as festividades que animam os salões. Com grosseiro descaramento, concedem-me os fundos necessários à administração dos negócios apenas ao juro que se pratica aos portugueses de crédito duvidoso. Cheiram e apregoam publicamente a ruína! Todas as portas se fecham e nas minhas costas vão segredando as desgraças da nossa casa, antes próspera, agora irresponsavelmente deixada ao cuidado de um simplório do Yorkshire. Sei que o dizem e magoa-me – não por mim, mas por todo o respeito que eles devem a Messr. Grieg, e a si também, tia Dotty, a quem eles tanto devem.

Não me queixo do desprezo que me votam. Aliás, agradeço-o. Sem ele dificilmente teria descoberto e jamais entendido os segredos do Douro. Os ingleses vivem já com dificuldade na urbe imunda do Porto, nunca se veriam entre os vinhedos da região. O desabafo vem também do meu amigo Mr. Forrester, a notabilíssima excepção a esta regra –  ou, talvez, nem por ela contemplado, já que o cofre da sua nacionalidade há muito que abandonou as ilhas britânicas, e está agora preso ao curso deste rio. Foi ele a inspiração do meu plano. O sucesso da sua firma deve-se, quase por inteiro, à sua desmesurada dedicação à terra do vinho. Sigo confiante no seu encalço.

Conto-lhe, por fim, que me agarro a este plano nas noites em que desfio as humilhações que no Porto me têm preparado. No meu pensamento o terei também quando ler os votos do meu casamento. Ainda não conheci a minha noiva, Miss Teage, com quem me casarei em breve. Não importa conhecê-la. É apenas um expediente, uma mercadoria, tal como eu o sou, tal como o casamento será o preço para aceder a um estatuto aceitável dentro da comunidade e aos seus valiosos capitais. Os Teage são dela um importante pilar de respeitabilidade. Demonstraram a sua imensa generosidade ao ceder a mão de uma de suas filhas a um pária como eu. Aceito todas as condições em nome da nossa ainda periclitante casa, e em nome deste plano que me preenche as horas. Sinto genuína pena por Miss Teage. Talvez venha a amá-la, talvez não, talvez ela compreenda o negócio do nosso casamento; talvez não. Espero, pelo menos, dar-lhe uma vida digna e honrada. Dar-lhe-ei também o meu sonho, se ela dele quiser comungar. Dar-lhe-ei, com a mesma benevolência com que o sol acaricia a terra, a promessa de criar algo novo e belo. E talvez o amor.

Devo partir, tia Dotty. Escrever-lhe-ei assim que chegar ao Porto, em dois dias. Deverei encontrar-me com Henry em Outubro, por altura das vindimas. Quando dermos por terminada a lavoura, marcarei o meu casamento para a semana seguinte. E embarcarei para Inglaterra por altura do Natal. Apresentar-lhe-ei Miss Teage, digo, Mrs. Smithes nessa altura. Anseio por vê-la, querida tia, mais do que qualquer outra coisa neste mundo.

O seu devoto sobrinho, que lhe guarda todo o afecto e saudade,

John

 

p.a.leitão

despesadiaria às 14:28
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Quinta-feira, 27 de Novembro de 2014

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(Micções)

 

A velha impressora X LFH-7615 andava a manifestar, desde há umas semanas a esta parte, um comportamento deveras estranho. Sempre que recebia uma ordem de impressão, a vetusta máquina iniciava uma série de rugidos interiores, como se, tomada de uma crise intestinal aguda, fosse a qualquer momento regurgitar toda a porcaria ingerida numa pândega realizada na noite anterior. Porém, após alguns minutos de revolver visceral, a ameaça não se cumpria. Tampouco imprimia o documento que lhe fora pedido, seguindo-se um período de silêncio e placidez que perdurava até nova ordem de impressão. Os sintomas de má digestão perduraram por vários dias, aumentando, porém, o grau e intensidade dos tugidos internos da velha impressora sempre que os seus serviços eram necessários. De igual modo, continuava sem expelir das suas entranhas o que quer que fosse, dando a sensação que, à medida que os dias iam passando, cada vez ficava mais inchada. As perturbações intestinais, essas, já eram tão frequentes que se manifestavam agora a qualquer altura do dia. Aos bramidos interiores, que por si já assustavam todo o escritório, acresceram pequenos e súbitos movimentos da impressora, como se estivesse a ser dilacerada por cólicas infernais.  

Incomodado e saturado com toda a situação, o velho Dr. F. decidiu que estava na altura de substituir a impressora X LFH-7615, cujo préstimo, aparentemente, se esgotara. Encomendou um novo modelo, de última geração, e mandou que lhe levassem a impressora para o electrão mais próximo. Coube ao estagiário R. a ingrata tarefa de a transportar na sua última viagem. E foi durante o trajecto que o inusitado sucedeu. A velha impressora, após dias de desarranjos intestinais, começou a imprimir ininterruptamente. Como numa torrente contínua de diarreia, saiu do interior da impressora um total de 217 páginas, todas numeradas, contendo um texto com 91.357 palavras. Estupefacto, o estagiário R. passou o resto do dia e da noite seguinte em leitura desenfreada daquele extraordinário texto. No final, sabia que tinha em mãos algo de prodigioso. Todavia, faltava-lhe um título. Resolveu, após dias de desespero e inúmeras tentativas, chamar-lhe “A Cólica”. De seguida, enviou uma cópia a várias editoras, que prontamente se digladiaram entre si pelos direitos de publicação.

“A Cólica”, romance de estreia do escritor R., vai, hoje, na sua oitava edição, com mais de 100.000 exemplares vendidos em seis meses. Com os direitos de tradução já negociados, é presença permanente nos escaparates das livrarias, e a crítica não fala de outro assunto. “A revelação do século”, “Um romance visceral”, e “A melhor obra em prosa escrita em português”, tudo frases que constam da contracapa da última edição portuguesa.

 

nev       

despesadiaria às 15:09
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Quarta-feira, 26 de Novembro de 2014

 

Uma Aventura na Pós-Adolescência

(dedicado a Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada)

 

Álgebra linear, ou lá o que é,” explicou o Chico, no seu jeito abrutalhado. “Sabes como é o Pedro. Deve estar a chegar. E o João? Não o vejo há três meses, desde aquilo.”

Luísa arregalou os olhos e inclinou-se sobre a mesa. “O João passou-se, ninguém te contou? Pediu a Teresa em casamento. Foi uma cena tão triste. Foi lá a casa com o fato das entrevistas de emprego e duas alianças de latão. Fazia questão de falar com o nosso pai. O problema é que se esqueceu de a avisar primeiro. Ela entrou em pânico, evidente, pediu-me para o meter na rua e depois trancou-se no quarto. E o João no vestíbulo: ninguém o convida a sentar-se, ninguém lhe oferece um café, não é nada disto que ele viu nos filmes.”

Em que século, em que planeta, é que esse gajo vive?” perguntou Chico, com um ar divertido.

Depois do acidente a Teresa deu-lhe demasiada confiança. Saiam todas as semanas, ele andava sempre a arrastá-la para a Cinemateca. Uma vez, repara bem nisto, vão a um filme italiano e ele tenta impressioná-la com aquela coisa que ele faz, deves saber_”

Estou mesmo a ver.”

_e começa a debitar os diálogos com vinte segundos de antecedência. A Teresa, porque gosta de armar caldo com malucos e também porque deve ter concluído que estava a lidar com uma criatura inofensiva, decide dar-lhe a surpresa da vida dele e começa a mexer-lhe na coisa.”

Epá”, disse o Chico, levantando-se energicamente e começando a pontapear o chão com a biqueira da bota.

O João cala-se logo com os diálogos e fica muito quietinho no assento, os olhinhos abertos, os lábios rígidos, mas ela garante que a respiração dele continua normalíssima e jura a pés juntos que a batida cardíaca seguiu imperturbável. Mas abaixo da cintura_”

Eu quero lá saber disso, ó Luísa!”

_tudo normal. Segundo ela, que eu não perguntei. Tamanho um pouco acima da média, asseadinho. Palavras dela. Mas isto sendo o João, o que é que ele faz? Antes de se vir, desvia a mão da Teresa, puxa de um lenço bordado do bolso do casaco e enrola-o à volta da coisa como se fosse ofensivo se ela o visse a_”

Eu sempre disse que ele não batia bem.”

_ estás bem a ver? Não é um guardanapo que havia ali à mão, Chico. Um lenço bordado no bolso do casaco.”

Quem é que anda com lenços no casaco?”

Quem é que se esporra para lenços bordados?”

“Não é normal.”

A Teresa nem sabe onde é que ele enfiou o lenço depois. Fica tão abalada que nem presta atenção ao resto do filme. Ele tenta comentar uma cena qualquer à saída e ela até tem medo de lhe dizer que não se lembra, pois o mais certo é que ele desate a papaguear as palavrinhas todas. Lá lhe diz que tem dor de cabeça e apanha um táxi. No dia seguinte baldou-se ao turno no supermercado com medo de o encontrar. Depois, dá para adivinhar, começa a ter dúvidas.”

É mesmo da Teresa.”

E vem-me com 'Ai, Luísa, será que estou a exagerar?' bla bla bla. Convence-se de que, na verdade, foi um gesto galante, eloquente. Ele continua a telefonar, deixa-lhe mensagens engraçadas (eu ouvi duas quando ela estava no duche e não achei graça nenhuma). Já com certeza de ter reagido histericamente, é ela quem faz o telefonema seguinte e o João é todo rococós e cavalheirismos e pergunta-lhe se pode passar lá por casa. Diz que tem uma surpresa. Ela põe-se logo a imaginar um gesto romântico, um ramo de flores, ou outra coisa qualquer com um simbolismo de cinema que ele depois tratará de explicar detalhadamente.”

Santa paciência.”

E a Teresa começa a cair na fantasia, a achá-la confortável. E uma hora depois ele aparece-nos à porta com a cara mais solene e assustadora do mundo e diz que quer falar primeiro com o nosso pai. A surpresa está no bolso, diz ele, com um sorrisinho. E saca do lenço.”

Não pode ser.”

A Teresa fica branca e eu também, pois pensei o mesmo: que ele ia fazer um daqueles truques de ilusionista e começar a sacar lenços esporrados, um para ela, outro para o nosso pai, outro para a nossa mãe e sabe-se lá quem mais. Mas dura pouco, pois no momento seguinte ele abre o lenço e mostra-lhe duas rodelas de latão e diz que a ama, e etc, etc, e ela percebe que está metida num grande sarilho, mas um sarilho diferente, pois entretanto o nosso pai chega da cozinha a perguntar o que se passa.”

Mas olha lá, o lenço era o mesmo ou não?”

Ó Chico, o que é que isso interessa?”

Silêncio. O Chico enfiou as mãos nos bolsos e voltou a pontapear o chão com a biqueira da bota.

O gajo nunca mais foi o mesmo desde que o Faial morreu.”

 

Alice G.

despesadiaria às 09:56
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Terça-feira, 25 de Novembro de 2014

 

Também eu tive um sonho, um sonho que partia do patamar a que já teríamos sido içados pelos fundilhos se não fossem as falhas na corrente elétrica. Nesse sonho, em que dava por adquirida a igualdade entre os homens e entre estes e as mulheres, a paz universal cobria a terra habitável com o seu manto doce (°Bx ≥ 22) e as gomas ácidas tinham desconto de cinquenta por cento em cartão todo o ano. No meu sonho, a televisão tinha deixado de chamar desertificação à comodidade do despovoamento e os comboios partiam com aquela segurança que só eles para destinos desconhecidos. No meu sonho, todos, baixos e altos, gordos e magros, ruivos e negros, androides e janelas, ateus e agnósticos, desempregados e inativos, cretinos e idiotas, todos e todas podíamos andar sós nas ruas da noite sem medo de acordar três dias depois numa valeta de Timisoara com um rim a mais ou uma colónia de larvas no gesso. Os povos falavam todos a mesma língua gestual e as buganvílias, as buganvílias, nem sei que contar das buganvílias senão que haviam abdicado dos espinhos por respeito aos passarinhos que, agradecidos, esvoaçavam pelas esplanadas, piu piu, polvilhando os queques com escitalopram. Do fim do sonho esqueci-me quando o estremunhar foi substituído pelo susto da pontualidade, a realidade de um ônibus com o seu percurso ondulante agarrado a uma hora, uma hora certa. O estado em que ficou o ursinho que me deste no nosso terceiro aniversário diz-me que talvez tenha sido pelo melhor mais este esquecimento.



E.

despesadiaria às 13:23
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Segunda-feira, 24 de Novembro de 2014

 

Que empregos já experimentou?

Os que estavam disponíveis. Jardineiro, cabeleireiro, cozinheiro e técnico de lavandaria. Todos horríveis.

Parece novo para tanta experiência.

Fazem formação em posto de trabalho, pode começar-se qualquer um a todo o momento; até nos incentivam nesse sentido.

O que é que correu mal?

Com qual?

Com todos.

Não me lembro.

Lembra-se que foram horríveis.

Está mesmo interessado?

[aceno]

Meteram-me a trabalhar com gajos que acreditam ser o Kennedy, o Napoleão ou o Dom Sebastião. Está a ver o dó de imaginação que para aqui vai, mesmo para um gajo que bate mal dos cornos? E não estou a brincar, era assim que chegavam ao trabalho. Bom, estou aqui, pensei eu, vamos lá, mas o esterco faz-me um bocado de confusão, e convenhamos que uma lavandaria tem tudo para correr mal. Foi o primeiro. Nesse trabalhava com dois tipos que se atropelavam para receber os clientes. Desafiavam quem entrasse com apostas sobre os respectivos poderes de adivinhação. O primeiro, filho de um astrólogo daqueles da televisão, garantia saber de caras o signo e ascendente de qualquer pessoa. Falhou de todas as vezes. Olhe que não estou a exagerar, nunca acertou. À primeira pelo menos. O segundo, que era filho de um feirante, garantia que acertava no tamanho e copa dos soutiens das senhoras que tinha à frente. Nunca falhou, mesmo quando estavam tapadas com casacos grandes e golas altas ou écharpes compridas. A infância deste infeliz foi passada a vender soutiens numa feira, e, numa feira, experimentar é complicado. Sei lá, acho que isto não é talento, é repetição, mas a verdade é que acertava sempre. Obviamente que nenhuma delas achava piadinha nenhuma a isto, a maior parte ia-se embora, algumas ficavam, deslumbradas com o outro tonto que sabia imenso de astrologia, e que tinha acertado à terceira ou quarta vez no signo. Enfim, pedi para ir para uma cozinha depois disto, confiante que não veria clientes, mas entrei numa sala fechada com seis doidos rodeados de facas e de recipientes de água a ferver. Tive medo, mas estava a ser estúpido. O trabalho de cozinha é de uma apatia que quase me comoveu, mas deste fui expulso.

Porquê?

Não resistia a fazer certas coisas e não aturava certas merdas.

Não estou a perceber.

O quê?

Pode dar-me exemplos? A que é que não resistia?

Bem, segui para a jardinagem, o problema é que tinha de escolher sempre um, compreende? Não podia estar ali sem fazer nada, escolhi jardinagem. Foi onde encontrei o Kennedy.

Fale-me desse.

Do Kennedy?

Estamos a falar do seu colega, não é?

Há outro Kennedy?

Hum

Estou a meter-me consigo [risos]. Este maluco pensava que era o Kennedy, é verdade. O Presidente dos EUA, o que foi assassinado. E tinha de levar todos os dias com isto. Atirava-se para o chão a qualquer barulho, fazia discursos, mas sobretudo nunca fechava a matraca. Este gajo trabalhava a falar em permanência. Eu acabava o dia com os nervos desfeitos. Bom, andávamos ali pelos jardins municipais. Os serviços da Câmara eram chantageados para nos adjudicar tudo o que quiséssemos, porque - está a ver não é? - coitadinhos, e um dia estávamos por acaso no jardim do hospital e o Kennedy pega num gancho e encosta-o ao pescoço de um desgraçado que só ia a passar, era o contabilista, tinha mais de um metro e noventa e urinou-se todo pelas calças abaixo, nunca mais nos esquecemos. O Kennedy só dizia que ia ser assassinado e chamava pelos serviços de segurança. Bom, vieram os enfermeiros e levaram-no e o gajo lá gritava que era o Booth, que era o Booth, o estúpido. Quer dizer, o Booth tinha para aí um metro e setenta

O Oswald.

Como?

Ele não gritava Oswald?

Sim, e o que é que eu disse?

Desculpe, continue.

Estive lá os três anos, depois um gajo tem de ir à sua vida, acaba o emprego protegido e eu fui à procura, mas passados seis meses estava de volta, não arranjei nada e fui ao que faltava: cabeleireiro. Não passei da formação e nunca devia ter começado. Felizmente deste não tive de pedir para sair, o curso foi interrompido. Estava para lá um, que entrou ao mesmo tempo que eu, uma bisarma descomunal, cabelo rapado, barba de meses, a primeira coisa que me disse foi que não era maluco como os outros. Olha-me este, está-se mesmo a ver. Eu sei que sou maluco, não tenho é paciência para malucos, que é bem diferente, mas dizia eu, que ele diz-me isto e estende-me a mão para apertá-la. Tenho justificado orgulho no meu aperto firme, mas este gajo esmagou-me os dedos de tal forma que soltei um grito, fraquejaram-me os joelhos, acredite, e o sacana com um sorriso cândido sem tirar os olhos dos meus. Olhe que, convenhamos, merdas de macho alfa num cabeleireiro, com franqueza. Ninguém passou do primeiro dia. Não sei se sabe, nestas formações treinamos com manequins. Este animal, só com a escova a puxar o cabelo das bonecas, arrancou a cabeça a três. Depois pedia imensa desculpa, parecia uma criança, mas aquilo tinha de parar por ali e uma das formadoras lá ganhou coragem e disse-lhe que não podia continuar, tinha de escolher outro ofício e o tipo passou-se e destruiu aquilo tudo. Espelhos, cadeiras, secadores, em cinco minutos o chão era um mar de entulho e a formação acabou para todos. Agora cá estou.

Já lhe perguntaram o que é que realmente gostava de fazer?

Sim, perguntam sempre.

E responde o quê?

Repositor de supermercado.

Está a falar a sério?

Repositor de supermercado.

Mas isso não deve ser complicado de conseguir.

É complicadíssimo. Já tentou candidatar-se a repositor?

Quer dizer, não, mas

Há sindicatos, há lobbies, isto é o emprego que toda a gente quer. Arrumar artigos, compor cinco prateleiras em altura, é trabalho criativo, dá gozo.

Nunca tinha visto as coisas assim.

Por isso é que é jornalista.

Eu não sou jornalista.

ah não?

 

Gouveia

despesadiaria às 15:08
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Domingo, 23 de Novembro de 2014

 

McClintock (não-ficção que só passa ao domingo)

 

Quando aprendi a conduzir, dividi o meu instrutor com outra rapariga, a Mariana. Era uma gaja de pacote à qual acrescentaram demasiada água — de resto, cozinharam-na na mesma forma bem enfarinhada, igual a tantas outras garotas geminadas, frutos de um mesmo ovo partido em pedaços exatamente iguais. Um estereotipo para apresentar à mãe. Mais alta e mais morena que eu, usava o cabelo comprido e atirava-o para o lado, contrariando o risco — uma rebeldia ensaiada, a única a que se permitia. Vestia apenas peças de corte senhoril, tinha uma predileção por casaquinhos de malha nos ombros, pérolas nas orelhas e tons sóbrios em todo o lado. Preferia o castanho e muitas vezes vestia-se integralmente dessa cor. Eu via-a cruzar a esquina a caminho do carro, todo o comprimento de perna enrolado nuns collants de mogno. Parecia um palitinho de All-Bran. Eu não duvidava que ela cagasse em função do calendário.

Fomos obrigadas a passar algum tempo juntas enquanto aprendíamos a dominar o Hyundai prateado. Em sessões de duas horas, alternávamos assentos: uma hora para ela, outra hora para mim; ela exibia-se na marcha atrás, eu mostrava-lhe como se faziam os pontos de embraiagem. Nas retas, trocávamos algumas palavras, mediadas pelo instrutor — ou a Mariana atirava-as contra a minha nuca enriçada. A familiaridade dos seus grandes dentes brancos convidava à partilha e os detalhes de uma vida-tipo iam sendo soprados através dos estreitos intervalos: estudava farmácia como quem busca minério, gostava de estrelícias, era capricórnio e via-o como uma característica mais definidora do que a rigidez com que as suas costas encaixavam no lugar do condutor. Em vez de histórias, eu devolvia-lhe migalhas — sim, não, a sério?, pois. A Mariana não levava a mal; as minhas respostas descuidadas ficavam soterradas no All-Bran, na estereoquímica, nas pérolas maiorquinas; a Mariana, como tantas outras, só queria ouvir o som das suas palavras refletido num par de olhos despertos.

No dia do exame de condução, a mão fina agarrou-me pelo braço e puxou-me com sorrisos através do átrio do centro de exames. Notei alguma urgência na forma como os longos dedos me pressionavam a carne. Parámos na casa-de-banho das senhoras. A Mariana encostou-se à fila de lavatórios.

— Tenho quase a certeza que me veio o período — disse, fazendo a cabeça rodar entre a porta entreaberta do cubículo em frente e as minhas sobrancelhas enrugadas.

Eu também tinha quase a certeza que lhe tinha vindo o período: eu estava com o período — adiantado, anormalmente doloroso, como uma porta arrombada. O meu útero e o da Mariana de mãos dadas, saltitando rumo ao pôr-do-sol sangrento. A passiva-agressividade feminina que cumprimenta com uma mão para logo esbofetear com a outra: menstruações sincronizadas. A realidade detestável de ter uma parte de mim, mesmo que tão primária e tão pouco exclusiva, influenciada por outra gaja.

— Queres… queres alguma coisa para isso? — perguntei, começando prontamente a vasculhar a minha mala.

— Tens um penso? Tens um penso?

O meu primo de sete anos usava o mesmo jeito ansioso e os mesmos agudos entusiasmados quando procurava por caramelos no armário da cozinha. A cena não me irritava menos por causa disso.

— Não. Tenho tampões — e uma vontade quase irresistível de os atirar contra o nariz que se arrebitava de embaraço à minha frente. Um jogo de dardos. Um apedrejamento. Confettis!

As minhas botas pretas despertaram um súbito interesse na Mariana. Aproximou-se um pouco de mim e procurou o seu reflexo nas biqueiras por engraxar. Depois, apontou-me um olhar que acreditava ser autoexplicatório. Mostrei-lhe que não o era empurrando a cabeça para a frente, num movimento de pescoço brusco. Uma dança de interrogações e traduções falhadas. Ela acreditava na empatia, mas eu sabia que, entre nós, os únicos elementos capazes de comunicar no silêncio eram os nossos úteros.

— Eu sou virgem — acabou por dizer.

— Hum. Eu também.

— Mas tu usas tampões…

Fez-se silêncio. Até o candeeiro retangular, que do teto observava toda a cena, parou de fazer o seu barulho típico de iluminação industrial. Passara os últimos dois meses com aquela caricatura no banco de trás: não aguentei mais. Senti a minha cara contorcer-se: a boca abria-se, os olhos a fechavam-se; ondas de calor avermelhavam as bochechas salientes, sucessivas gargalhadas que quase passavam por guinchos, um curto roncar porcino e brutalmente sincero. O meu corpo curvou-se, abracei a barriga que tremia com um braço e estendi o outro para a bancada de mármore. Nunca me tinha rido tanto em toda a minha vida. Entre os meus guinchos, ouvi o estampido de uma porta furiosa, o papel higiénico a ser puxado sem cerimónia,

— QUAL É A PIADA?

Ria-me com tal vigor que logo comecei a tossir. Abri uma torneira e atirei uma mão em concha de água para a minha cara. Depois, com a humanidade libertada pelo ataque de riso, voltei a olhar para a escuridão da minha mala. Acabei por encontrar a embalagem cor-de-laranja de um penso higiénico superabsorvente. Lancei-a para dentro do único cubículo fechado.

— Obrigada. És uma pessoa horrível.

Fiquei verdadeiramente aliviada ao ouvir aquela frase.

 

S. White

despesadiaria às 19:38
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Sábado, 22 de Novembro de 2014

 

905

 

Manhã chuvosa e eu outra vez à tua espera. Não me queria estar sempre a queixar, mas dou por mim muitas vezes à espera de alguma coisa e, vamos dizê-lo sem mais rodeios, nos ultimos tempos é de ti.

A chuva também não quer saber se fico ridícula aqui à beira da estrada, coberta de plástico e de guarda-chuva em riste, como se fosse um pescador. As ondas batem com estrondo nos prédios em meu redor e a água chega por todos os lados. Ela não está à tua espera e por isso não percebe. Quer que eu volte pra casa.

Mas o pior ainda é fazeres-me sentir tão impotente perante o ritmo da tua passada, do teu caminho. Porque tu sabes que eu preciso de ti, que quero ir contigo. E por isso fazes-me esperar, essa antiga prerrogativa do poder. Fazes de propósito, só pode ser. Ah, que raiva sinto por precisar tanto de ti.

Mas preciso que venhas, e que venhas rápido. Preciso do teu calor, do teu conforto, do suave balanço do mundo visto pela tua janela. Preciso que me tires desta realidade cinzenta e chuvosa e me leves embora daqui para ser feliz ou infeliz, quem sabe. O padre está sempre a dizer-me que a paciência é a virtude mais difícil de obter mas também a mais frutuosa. Mas ele só sabe falar de eternidade, quando o que lhe pergunto é tão urgente. Não tenho a vida toda.

Anda, por favor! Já estamos cá todas, como sempre. E mais virão, à tua espera. Não há posse nem ciúme, nem podia haver, era ridículo. Sinto, sei bem, como elas precisam de ti tanto quanto eu. Pressinto o vazio e o bloqueio que se apoderaria da minha vida se uma delas te tivesse só pra ela. Somos todas Irmãs aqui, estamos todas no mesmo barco.

Acendo um cigarro, fecho os olhos e imagino que te vejo vir. É o suficiente para o primeiro sorriso do dia. Cada uma de nós tem que arranjar técnicas para suportar a espera. Há quem goste, por exemplo, de se manter sempre ocupada, a ler, a escrever ou a falar ao telefone. Mas pra mim, isso é só para fingir que ainda não se submeteram, que não te esperam, como se estivessem ali por acaso.

De repente, um burburinho entre as vigias, velhas cadelas de olhos tão pequenos quanto míopes, mas capacidades auditivas tuberculosas (pudera, com este tempo!). São sempre as primeiras a ouvir o rugir que anuncia a tua chegada. Abro os olhos e vejo-te aparecer de rompante ao fundo da rua. O cigarro!, ainda pensei numa tentativa quasi-científica de racionalizar tanta excitação e alívio, com vista a posterior replicação em situação de semelhante angústia. Mas já não havia tempo para superstições, tu vinhas claramente disposto a compensar o atraso.  

Pus-me a jeito, e fiz-te sinal.

 

r ow t ag

despesadiaria às 19:55
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Sexta-feira, 21 de Novembro de 2014

...

É preciso, e é preciso bastante, que estejamos avisados de que, logo após o canavial que cobre tão regularmente a ravina, há uma casa que parece feita de renda de madeira; tem a estrutura flexível, suave, fina como os ossos de um gato (mas sem as ripas pregadas nas cambotas para guardar postura de vida). Sem tapeçarias, sem corante nas paredes, parece existir apenas para si mesma. Mistura de carvalho, azevinho e medronheiro, por duas vezes foi incendiada e reerguida no mesmo estilo de reconstrução de Hiroshima. Na ida de um cómodo a outro (são dezasseis), pode-se ver um rebanho de Yahoos a correr como uma descoberta enfiada na outra. E não há limite a partir do qual evidencia-se por dentro: uma arquitectura que é só externalidades, uma exoarquitectura. Só mais tarde lhe vem o sentido: a ligação entre as coisas é parte das coisas; uma parte que podemos ultrapassar sem merecer, e que vai um dia se tornar uma assombração na minha cabeça, sentada no meu cérebro entre as duas orelhas como se estivesse na sanita. Vou ter de levá-la por toda parte, espécie de chapéu-coco, ou daquelas coisas que esforçamo-nos muito para ver mas que, apesar de tudo, não podem ser maiores do que a nossa incapacidade de vê-las. 

 

Peor

despesadiaria às 03:51
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Quinta-feira, 20 de Novembro de 2014

...

deves adivinhar que é novembro, aquele mês em que os dedos te surgem crestados pela fuligem do carvão e das castanhas que golpeias, uma a uma, com a navalha afiada na pedra pomes destas tardes frias de outono. nem reparas em mim quando me aproximo, quase sem falar, e, na concha da tua mão, deposito a moeda que trocas por uma meia dúzia que velavas em câmara ardente. 

sigo o meu trajecto de volta a casa neste cacilheiro que galga as ondas em velocidade de cruzeiro, enquanto lá fora a chuva que começou por cair miudinha se estatela agora de encontro ao vidro fosco das janelas. o barco, esse, balança numa dança de convocar fantasmas e enjoos. posídon e mil dos seus cavalos em fúria viram o tejo do avesso. 

com o que me resta de dignidade, recuso dar-me ao pânico e, fora eu homem de menos esguardo, diria que não é coisa própria dos deuses invejarem um deleite tão mortal.

 

eram só castanhas, senhor.

 

- azeite

despesadiaria às 21:50
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Quarta-feira, 19 de Novembro de 2014

 

VI

 

Entre ele e o objecto, um vazio inominável. Da sua mente ausentaram-se os nomes, a funcionalidade do mundo existia à margem de qualquer definição, os usos tinham retornado aos serviços mínimos, um animalzinho gestual. Acordava pelas duas da tarde, as insónias nocturnas eram leves, concentravam-se num mostrador com um pêndulo que balançava, matemático, medidor do tempo que não consegue conceber. Mesmo com a ilusão do olhar a ceifar o vidro, o exterior não se traduzia, nos estilhaços do seu entendimento tudo se tornava indecifrável. Movia-se entre a sombra e a luz; numa, escondia o cansaço, noutra, deixava que um arrepio electrizante lhe estremecesse o corpo da cabeça aos pés, não existindo nada além de si mesmo, um palimpsesto humano. O final da tarde trazia sempre uma imprecisão nova repetida: alguém lhe entrava pela porta, a mesma indumentária a ferir de branco. Entregava-lhe as mãos, a língua, o peito. As sensações de frio e calor, em alternância, deixavam-no desatento, esgotado, desistira de compreender, apenas porque a desordem de si lho ordenava. Findava o encontro, um travo ácido descia-lhe pelo esófago para depois subir, na senda do sangue, à hipótese de cérebro. Uns minutos depois, o embrião de uma palavra gerava-se-lhe na boca, mas autodestruía-se logo a seguir, mesmo antes de conseguir levantar os dedos e, com o olhar (trans)lúcido de comoção, apontar para o relógio.

 

gisandra

despesadiaria às 00:23
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Terça-feira, 18 de Novembro de 2014

 

Paulo

 

Desisti que a realidade me acontecesse, mudei de estratégia. Agora digo às pessoas que me chamo Paulo. Ficam confusas, assumem que ouviram mal. «Obrigada, D. Paula.» «Paulo, Paulo», insisto. Sorriem, baixam os olhos, pisgam-se dali para fora. Evidentemente, não sou um homem. Não estou a fazer nada para ser um homem, apesar de me lembrar frequentemente do conselho de Don Corleone quando dou por mim à espera da felicidade, com as lágrimas a rolar-me pelas faces. Continuo a ir à casa de banho das senhoras. Até agora ninguém reclamou, apesar dos meus esforços em falar no masculino com quem se encontra na fila de espera: "Minha senhora, já viu como está o tempo? Cheguei todo encharcado." Mais consternacão disfarçada de indiferença. Alguma coisa está prestes a mudar na minha vida, tenho a certeza. Mal posso esperar para saber o quê.

 

Menina Limão

despesadiaria às 18:35
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Segunda-feira, 17 de Novembro de 2014

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Escritório

14h28. Era agora inevitável reconhecer o desastre anunciado. O prazo expirara há precisamente 28 minutos, o computador recusava-se a aceitar o formulário, estava agora tudo arruinado. Dois anos de esfrangalhamento mental, a pesar prós e contras, deve e haver, peso e medida. Tudo escrito, reescrito, desaprovado no geral mas ainda assim a permitir a leve esperança de que talvez o destinatário não achasse assim tão mal.

A decisão que não se toma é mil vezes pior do que a decisão errada. Passou a manhã a preencher as alíneas - Estes caralho querem saber tudo, pensou - estava tudo pronto, bastava carregar na tecla “enviar”, “send”, “go” ora foda-se, porquê Tristão, porquê?

Ele sabia que esta era a sua oportunidade. Um novo país, uma nova era, amarras cortadas, tudo certinho, limpinho, tábua rasa para começar do zero.

Mas não. Sentado à velha secretária do escritório, procurando escrutinar a paragem do autocarro por entre as lâminas vencidas do velho estore de madeira, percebeu que a derrota era inapelável e definitiva. Pegou no telefone.

- Sr. Jaime, daqui Tristão Valente. A que horar posso ir ao seu escritório para vermos essa questão do IRC?

 

DoVale

despesadiaria às 14:45
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Sábado, 15 de Novembro de 2014

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A Casa Smithes

Porto, Fevereiro de 1848

 

John sabia que a fortuna não lhe reservara qualquer lugar ou missão digna de nota. Nesse aspecto, era um jovem desiludido em paz com a vida. Pelas suas humildes origens, fora já uma sorte a tia Dorothy ter conseguido empregar os irmãos Smithes numa prestigiada casa bancária da City londrina. E agora surgia, para ele, a incrível possibilidade de aspirar à posição de sócio numa firma comercial com escritórios na Península. O epíteto de “negociante” agradava-lhe. Via nele, nesse papel, uma condição de aventureiro respeitável, pronto a viagar pelo mundo em busca de aliciantes oportunidades de lucro. Mr. Archibald, o sócio sénior da casa, contara-lhe das viagens que fizera com o pai nos primeiros anos do negócio: a cavalo pelas serras portuguesas cortadas em vales mais belos do que ousa a imaginação; cruzando a galope as planícies infindáveis da Andaluzia até ao repouso final e justo das praias do mediterrâneo. Se John não aspirava a uma vida de opulência e desmedido sucesso, esperava ao menos – queria ao menos – ver o mundo que existia para lá do seu Yorkshire natal. E a tia Dorothy, qual celestial benfeitora, atendera fielmente ao seu pedido.

John desconfiava, no entanto, da sua aptidão para merecer o que a sorte singelamente lhe propunha. Contara à tia Dorothy as suas apreensões, sobretudo o grande medo de não conseguir vingar aquela vontade que ele ardentemente sentia. E logo se apressava a desculpar a sua aparente, mas não sincera, ingratidão; eram apenas palavras de conforto que procurava. A tia Dorothy, como de costume, deu-lhe isso e mais ainda: entregou-lhe um precioso pedaço escrito de si. À partida de Inglaterra, há exactamente um ano, confiara a John as cartas que escrevera durante os treze meses de cerco à cidade onde morou na sua mocidade e para onde John partia agora – o Porto. Baixinho lhe confessou terem sido estes os dias mais excitantes da sua vida. A tia Dorothy conhecera o seu marido, Mr. John Procter, num baile em Lonsdale, sua aldeia de origem perdida nos pastos férteis do Yorkshire. Ao tio Procter, sócio de um negociante de algodão, cedo lhe foi pedido que se mudasse com a sua jovem esposa para aquela peculiar cidade da Península. Dorothy levou algum tempo a acostumar-se à nova casa, numa ladeira sobre o rio a que, no Porto, davam o nome de Entre-quintas. Mas depressa percebeu que os seus dias seriam, no menor dos casos, sempre intensamente preenchidos. O país travava uma terrível guerra consigo mesmo, alimentada pelas inquietantes ideias de liberdade e de progresso que chegavam da França e da Inglaterra. Os dias viviam-se por inteiro, ninguém parava um segundo para respirar. E depois veio o cerco. Às primeiras horas do levantamento das barricadas, Dorothy suspeitou possuir uma capacidade que nunca experimentara, provavelmente fruto daquelas extraordinárias circunstâncias: bastava-lhe querer, apenas querer, para deitar mão ao curso dos acontecimentos. Assim fizera. Aos primeiros dias do cerco, abriu a sua porta à causa e aos amigos do Rei Libertador. Ria cada vez que se lembrava com que solenidade os ministros e oficiais do Estado-Maior, reunidos à volta da sua mesa de jantar, proclamavam a chegada do seu querido amigo, «sua alteza, o Rei Libertador». Mas era quando o rei se sentava com ela à varanda da casa de Entre-quintas para tomar chá que ele, condoído, lhe confessava, no mesmo tom que John usara, «ponho em séria dúvida a minha capacidade de defender esta causa, caríssima amiga». Dorothy lembrara ao rei estas palavras quando, no final, vencido o cerco e a guerra, e já com Maria da Glória, sua filha, coroada rainha, ele viera ao Porto e à sua porta agradecer a valentia da cidade e o consolo dos lanches de Entre-quintas. Com a mesma gratidão com que louvara o Porto com o título eterno de cidade invicta, também Dorothy recebera, do seu coração, a graça de siege lady.

Era uma das histórias favoritas de John. Não admira que a cidade idealizada pelos contos de galhardia e heroísmo lhe tenha parecido deslocada da cidade real, burgo lúgubre e bolorento dobrado de velho sobre o rio, sempre em frenética actividade, como que para prevenir que a humidade infeste e apodreça as suas fundações: são as ruas largas que se abrem sobre vielas medievais, os palácios que se constroem sobre as ruinas de outros, chafarizes novos que se oferecem aos bairros decadentes, as igrejas que se renovam ao estilo da época, cafés novos que abrem portas às ideias novas. Estava mudada a cidade que Dorothy trocara alguns anos depois da guerra pelo conforto burguês da Inglaterra vitoriana.

John chegara ao Porto há exactamente um ano, numa manhã fria de temporal cheia de neblina, como são por costume as manhãs de Fevereiro. A falta de visibilidade obrigara o capitão do navio onde John viajava a encurtar a viagem e a atracar na foz do rio Leça, evitando assim a entrada na perigosa barra do Douro. Messr. Grieg, que o esperava, estava habituado a estes contratempos próprios daquele mar sempre bravo, e prontamente se apresentou em Leixões para o guiar à sua nova casa. Assim fora o seu primeiro encontro com Messr. Grieg, o amparo de John nesse ano e quem ele, em pouco tempo, tomou como mestre.

No prédio alto da Rua de São Francisco, Messr. Grieg recebia-o todas as noites para jantar. Conversavam sobre os assuntos da política, da ciência e da religião enquanto John saboriava os vinhos da firma. Messr. Grieg, pelo contrário, bebia quase sempre cerveja importada da sua Escócia natal. Nunca mais lá voltara desde que, aos 18 anos – a idade de John quando deixara Inglaterra – saíra de Edimburgo para se alistar na marinha mercante. Apesar de cedo ter deixado a vida de oficial, o velho criado português ainda o tratava por “senhor capitão”. Grieg era um cavalheiro recolhido mas toda a comunidade britânica na cidade o conhecia e admirava. Era exemplar o extremo empenho que dedicava às suas duas missões de vida: a administração da casa comercial, com escritório na Rua dos Ingleses, à Ribeira, e em constante e cordialíssimo contacto com casa-mãe em Londres; e o enriquecimento da biblioteca do club local, que pela sua mão se tornara uma das mais completas bibliotecas inglesas fora das ilhas britânicas. A trajectória diária de Messr. Grieg era simples de desenhar: de casa seguia para o escritório logo pelo raiar do dia; no final do expediente dirigia-se ao club, onde ficava a ler até o sol pôr, altura em que voltava a casa para jantar com John. É curioso notar que estes três pontos eram intersectados por uma linha geográfica real, a Rua dos Ingleses, que, entre os seus extremos (a casa da rua de S. Francisco e o club) não distava mais de trezentos metros. Tudo isto John relatava à tia Dorothy nas laboriosas cartas que lhe escrevia semanalmente. Dorothy, em resposta, revelou-lhe por que razão a obstinação quotidiana de Messr. Grieg se tornara lendária na cidade. Contou-lhe que essa linha de trezentos metros que ele todos os dias percorreu em trinta e dois anos de serviço à firma, se tornara, nos treze meses que durou o cerco, na principal linha de fogo das baterias inimigas instaladas em Villa Nova. Mas nem por isso Messr. Grieg deixou de a talhar nesse tempo. Quando já toda a gente, ingleses e nacionais, tinham abandonado a zona ribeirinha, ele persistia em fazê-lo, impassível. Foi o último a abandonar a Rua dos Ingleses. Só quando o inimigo incendiou os armazéns da casa comercial em Villa Nova, Grieg se viu incapaz de continuar com a sua rotina. Já nada restava para administrar a não ser a sua própria vida.

Catorze anos passaram-se desde então, período durante o qual Messr. Grieg recuperara as instalações de Villa Nova, o normal funcionamento do negócio e, em especial, a sua rotina. John ia com ele todas as semanas ao armazém onde o quase centenário Senhor Domingos misturava e preparava os lotes de vinho que eram depois enviados para Inglaterra. Messr. Grieg obrigava John a escutar pacientemente as lições do Senhor Domingos, na opinião do escocês o mais refinado provador de vinhos da cidade.

No dia em que se completava um ano desde a chegada de John ao Porto, Messr. Grieg anunciou ao jantar que em breve deixaria a firma. É a minha despedida, disse. Voltará à Escocia, perguntou John. Não, nunca mais lá voltei desde que tinha a tua idade e não pretendo fazê-lo agora; não irei passar os meus últimos anos enterrado na neve e dilacerado pelos ventos do Árctico. Pelo contrário, irei ter com o meu irmão Hector à ilha de Malta, onde ele assume o cargo de secretário do Governo do arquipélago. Messr. Grieg descreveu a John como aquela ilha vivia sob o sol implacável do Mediterrâneo, como eram altos os muros brilhantes, intransponíveis da capital, Valleta, nunca derrubados por qualquer armada. Contou-lhe como, ao final de cada dia, se sente uma serenidade tão plena nas ondas que acaricíam as baías da ilha que se crê que o mar as escolhe para lá passar a noite descansado… Mas antes, vou levar-te ao Douro, declarou. O livro de contas agora pertence-te. Começarás a assinar as cartas da fima. John, meu rapaz, agora estás tu ao leme. Toma-o bem, segura-o firme. Partiremos para o Douro em três dias, a tempo da feira da Régua.

Naquela manhã de Fevereiro, John escrevera à tia Dorothy especialmente ansioso. Messr. Grieg esperava-o no cais. Era a sua primeira viagem à terra do vinho; e era a sua primeira aventura como "negociante", dotado de livro e de firma própria: John Smithes, wine merchant. Naquela carta, pediu perdão à tia Dorothy pelo tempo que passaria sem lhe escrever, ocupado em longas e fascinantes viagens pelos vales do Douro. Messr. Grieg ajudou-o a entrar no barco; deixá-lo-ia em breve, pensou. O vento corria forte, as velas enfunaram-se num sopro. E John viu a cidade afastar-se, cada vez mais longe de si.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 18:51
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Sexta-feira, 14 de Novembro de 2014

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O poço (um outro)

 

Não havia entre Minho e Lima um melhor vedor do que Carolo, como então era conhecido na aldeia de N. A eficiência no seu ofício era tal que, mesmo bêbado, o que sucedia amiúde (diz-se que se meteu na bebida ainda novo, após um desgosto de amor), nunca falhou uma veia de água. Estes raros atributos, combinados com os rudimentares instrumentos que utilizava (por regra um arame dobrado em Y, ou um ramo de oliveira com o mesmo formato), conferiam-lhe, apesar da vida desgraçada, uma certa aura mística respeitada pela generalidade do povo.  

Mas foi com grande surpresa que, naquele dia, Carolo ouviu do Sr. Comendador o estranho pedido (ou melhor, a ordem) para ir à propriedade da Casa da Torre detectar água para abertura de um poço.

– Mas o Sr. Comendador não tem já um poço lá em cima? – perguntou Carolo intrigado.  ­

– Tenho Carolo, mas quero abrir outro. O que lá temos agora não tem profundidade suficiente e é já muito antigo.

O Sr. Comendador havia adquirido a propriedade e o palacete da Casa da Torre ainda nem há seis meses, após a morte da viúva Noronha de Azevedo. Os herdeiros, todos por Lisboa e Porto, depressa se desfizeram do património da família quando o Sr. Comendador lhes abanou as notas no focinho. Não se falou de outro assunto na aldeia durante semanas.

– Foi o meu falecido pai que detectou a veia para esse poço, ainda no tempo do velho Noronha de Azevedo – acrescentou Carolo. – E segundo creio nunca lhe faltou água, mesmo nos Verões mais secos.

– Pois, ó Carolo, mas eu quero abrir um novo poço, o mais profundo de toda a freguesia, e onde possa meter a minha mulher.

– A Sr.ª Dona Isabel? – perguntou gaguejando Carolo.

– Além disso, faz o que eu te digo Carolo, bem sabes como eu pago bem a quem trabalha para mim – disse já furioso o Sr. Comendador. – Ó Laurinda, quando te deve aqui o Carolo em vinho?

- O Sr. Comendador não precisa…

- Está calado Carolo – praguejou o Sr. Comendador. – Fica pago Laurinda, e serve-nos uma taça de vinho a cada um.

A sobranceria do Sr. Comendador era bem conhecida em toda a aldeia. Logo após a compra da Casa da Torre, ela própria construída sobre o morro que dominava toda a freguesia, mandou subir o telhado da torre dois metros. O Sr. Comendador não admitia viver numa casa que em altura só perdia para a igreja paroquial.  

Também conhecida era a forma bárbara com que tratava a sua mulher, a D.ª Isabel. Não eram raras as vezes que D.ª Isabel aparecia na missa com um lenço escuro sobre a cabeça, na vã tentativa de tapar as nódoas negras e os cortes no rosto. Por vezes tinha até de se abrigar em casa de vizinhos, para onde fugia dos pontapés e ameaças de morte do Sr. Comendador. Acreditava-se na aldeia que o Sr. Comendador, além dos ciúmes (apesar dos quarenta e muitos, D.ª Isabel ostentava ainda os traços da rara beleza que a distinguia quando era mais jovem), não perdoava a mulher pelo facto de nunca lhe ter dado um herdeiro.

 

Após o inusitado e ameaçador pedido do Sr. Comendador, Carolo entregou-se à bebida com mais denodo do que era habitual. Esteve uma semana sem aparecer em casa, vadiando em contínua borracheira, dormindo pelas valetas ou sumidoiros que encontrava. Isto até ao dia em que o Sr. Comendador o arrastou desde a taberna da Laurinda até à sua propriedade, curando-lhe a bebedeira a murro e pontapé.

Foi necessária toda uma manhã para Carolo, andando de trás para diante, da esquerda para a direita, segurando a vara de vedoria, encontrar um local onde pudesse ser perfurado um poço. Finda a tarefa, Carolo volveu à actividade interrompida pelo Sr. Comendador.

Porém, passados dois dias apenas, o Sr. Comendador voltou novamente à taberna da Laurinda para arrastar novamente Carolo. E desta vez deu-lhe tamanha carga de porrada que o desgraçado ficou de cama por uma semana. Sucedera que, após os primeiros metros de escavação no local indicado por Carolo, os pedreiros encontraram um bloco de granito tão duro e maciço, como nunca haviam visto em toda a província do Minho. Viram-se obrigados a abandonar a empreitada, à força das picaretas partidas e do pouco avanço na perfuração durante dois dias de trabalho contínuo.

À segunda tentativa, sob coação do Sr. Comendador (que previamente se munira com uma das suas caçadeiras), Carolo não se enganou, indicando um local passível de ser perfurado, e onde existia uma farta veia de água. O poço foi escavado em menos de uma semana, resultando num furo com a profundidade de 32 metros, uma marca sem precedente na aldeia.

O Sr. Comendador decidiu aproveitar o dia do seu aniversário, num Domingo, para celebrar, com toda a pompa e foguetório, a inauguração do novo poço da Casa da Torre. Assistiram à inauguração e bênção do poço todas as entidades civis e eclesiásticas da freguesia e arredores. O Sr. Abade, explodindo de contentamento, espumava-se só de imaginar o grande repasto que se seguiria. E, de facto, o Sr. Comendador mandara matar um porco e abrir uma pipa de vinho de propósito para o acontecimento. Foram lançados os foguetes, e a procissão seguiu para o velho palacete dos Noronhas, onde iria ser servido o almoço festivo.

Uma ausência que se notou durante a manhã, e se confirmou ao almoço, foi o de D.ª Isabel. O Sr. Comendador inquiriu os criados, mas ninguém sabia do paradeiro da senhora. Encetaram-se buscas pela casa e pela propriedade, bem como nos terrenos vizinhos, e nenhum rasto foi achado. Partiram a cavalo, pelos campos e montes da freguesia, três moços em busca da senhora. Porém, regressando ao final da tarde, não lograram descobrir quaisquer notícias de D.ª Isabel. Nesse momento alguém mencionou o poço. Foram chamados os pedreiros que o haviam perfurado uns dias antes, e, com o auxílio de cordas e iluminação, desceu-se ao poço. E lá estava D.ª Isabel, já cadáver, juntamente com o cadáver de Carolo, ambos afogados no novo poço da quinta da Casa da Torre.

 

nev

despesadiaria às 15:20
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Quinta-feira, 13 de Novembro de 2014

 

Sim, já estou melhor, obrigado. Tenho vindo a já estar melhor desde __/__/__ (ano/mês/dia). Começou logo a seguir a ter deixado de piorar, após um curtíssimo período de travessia da planície. Aliás, essa evolução foi tão amplamente publicitada que não considerei a hipótese de haver quem ainda o não soubesse. Mas, agora noto, já por vezes se anuncia aquela sensação de bolha imobiliária na cabeça que só desaparece quando a desço uma rua, o sinal de que em breve ficarei quase farto de já estar melhor. Ou de que ando a comer demasiados carboidratos. Em qualquer dos casos, talvez seja novamente chegado o momento em que o círculo evita, da maneira mais eficiente que conhece, fechar-se: armando-se em espiral sinistrógira. Ou seja, sim, ainda estou melhor, obrigado. Tenho vindo a ainda estar melhor desde que me perguntaram.



E.

despesadiaria às 16:00
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Quarta-feira, 12 de Novembro de 2014

(voltamos a apresentar)

 

Como é facil de calcular, quando Alexandre, por não usar luvas, tirou o gorro, o atirou à cara do Capitão e lhe gritou Exijo satisfação, está-me a ouvir? Um duelo, nós, já!, com Cazé, tarde demais, a puxar-lhe o braço, os três agentes de pé e mãos nos coldres, a situação estava mais uma vez, pela terceira vez, descontrolada.

Menano, ainda assim aliviado por Alexandre ter escolhido a taberna e não um beco para o confronto, fez sentar os homens. Limpou a cara com um guardanapo, procurou o seu mais conciliador sorriso, e esticou a mão com o gorro na direcção de Alexandre

- Meu rapaz, há aqui excessos imperdoáveis de parte a parte, devemos reconhecê-lo, mas está a propôr a um agente da autoridade um duelo. Está a sugerir uma ilegalidade para resolver o nosso problema, há formas

- O capitão desculpar-me-à, não pude deixar de ouvir, e o assunto interessa-me muitíssimo. Na verdade não é uma ilegalidade. Melhor, não é necessariamente uma ilegalidade.

Menano e os agentes, Alexandre e Cazé, olharam o homem que da mesa ao lado tinha decidido intervir, e que, já de pé, estendia o cartão de visita de firma de advogados continuando

- Nada impede um duelo de poesia.

Alexandre, cansado, incrédulo, revirou os olhos,

- De quê?

- Tem morrido muita gente de poesia, jovem.

Menano interrompeu

- Caro Dr...

- Antunes Pinto.

- Antunes Pinto. O doutor sabe melhor do que qualquer um de nós que o Estado tem o monopólio do uso da poesia, não me posso envolver poeticamente com um civil.

- Excepto em duelo, aliás a mais bela das excepções. Repare, quando o legislador proibiu os duelos em 1899, foi da mais desavisada especificidade, proibindo todos os confrontos com as armas que, à altura, eram utilizadas, e enumerou-as no decreto. A poesia, tendo sido criminalizada há apenas alguns anos, não foi considerada, pelo que estamos perante um dos mais magníficos vazios legais, provocados pela intersecção de duas proibições.

Menano não respondeu, consultou seus agentes por uns minutos e todos concordaram com o advogado.

- Não há necessidade de chegarmos a isto

disse ainda a Alexandre, que sem responder arrastou Cazé para junto do balcão. Cazé era o mais antigo amigo de Alexandre (e o mais robusto, o que talvez o tenha levado a ligar-lhe antes de entrar), mas mesmo este tipo de lealdades têm dificuldade em entender determinadas decisões.

- Cazé, a Raquel não pode saber disto.

- Tu nunca contaste à Raquel que andavas metido na poesia?

- Não, pá! Quando a conheci já a poesia era proibida e, de qualquer forma, eu tinha deixado uns anos antes, não sei o que fará se descobre isto

- Meu, avisei-te tanto...

- Opá, 'tá bem, já sei, o que é que queres agora? Não passa uma noite sem que me lembre de todas as pessoas que sofreram por me ter metido nisto.

- Bem, tu nunca

- Eu nunca o quê?

- Nunca escreveste. Pois não?

- Cazé, eu declamei poemas meus em público. Não sobreviveu ninguém naquela sala, ninguém.

- Foda-se, Alex...

- Ela não pode saber disto. E não é só, porra, arrisco-me a matar o velho.

- Ou morrer, man, ou morrer. Estes gajos andam na poesia todos os dias, os jornais estão cheios de histórias de putos desarmados que levaram com uma estrofe pelas costas. E estes porcos sempre a protegerem-se uns aos outros, que só mandaram versos para o ar.

- Não tenho medo nenhum deste gajo, nem dos três que estão com ele. Acredita, não sou eu quem vai sair mal disto.

Cazé não respondeu mais e regressou à mesa. Conferenciou com o outro padrinho as condições possíveis. A Menano, por ter sido desafiado, coube a escolha das armas. Alexandre estranhou a confiança com que ouviu Camões, sonetos. Invertidos. Do último para o primeiro verso, mas não podia ter ficado mais satisfeito. De resto, pouco a acrescentar, seria até ao fim, quaisquer que fossem as consequências.

Alexandre e Menano enfrentaram-se em silêncio por mais de quinze minutos. Dir-se-ia que combinaram acrescentar tensão ao drama e a julgar pelos presentes estavam a consegui-lo. Começou Alexandre, de olhos presos no Capitão. Com voz lenta e melódica arrancou:

Senão a mim, que de matar-me vivo.
Ó pastores! fugi, que a todos mata,
As setas traz nos olhos, com que tira.

Mas com as armas foge ao moço esquivo.
Para tamanha empresa, não dilata;
A Ninfa, como idóneo tempo vira

Antes que adormecesse, pendurava.
Num ramo arco e setas, que trazia
A vir passar a sesta à sombra fria,
Cupido, que ali sempre costumava

As amarelas flores apanhava.
E subida nũa árvore sombria,
Sibela, Ninfa linda, andava um dia;
Num bosque, que das Ninfas se habitava.

Que espectaculares violência e desenvoltura. Cazé e os agentes duvidaram se alguma vez tinham lido o poema de outra forma, mas a partir de agora os silêncios terminavam e o Capitão, com o queixo exageradamente levantado, de tom mecânico mas deslumbrante ritmo, respondeu de imediato,

Para tão longo amor tão curta a vida.
Dizendo: − Mais servira, senão fora
Começou a servir outros sete anos

e assim por diante, até ao fim, com segurança despreocupada. Os dois homens atiravam-se ao soneto seguinte como se não tivessem acabado de levar em cheio com catorze versos e nisto ficaram durante horas. Quando acabaram a lírica conhecida, trocaram de sonetos e declamaram o que o outro tinha escolhido, tantas vezes quanto as necessárias.

Ao fim de quase quatro horas sem interrupções, Alexandre estava no chão, de joelhos, com um corte no olho direito e arranhões por todo o corpo, as dores eram inacreditáveis, a respiração pesada era só o que ecoava pelas paredes da taberna. Os versos de Menano tinham sido de uma crueldade surpreendente, sobretudo vindos deste homem, uma interpretação sem paralelo com nada que Alexandre tivesse ouvido. Voltou o silêncio, doente de raiva e humilhação, encolheu-se ligeiramente, sentiu o chão debaixo das mãos e deixou cair uma lágrima derrotada. Levantou lentamente a cabeça para o Capitão que já olhava para os seus homens com caretas vitoriosas e não foi possível evitar mais o que se seguiu. Recuperou com tempo a respiração e, com uma espectral voz queimada, atirou sem qualquer remorso,

Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date

Não chegou a começar a segunda quadra, os agentes saltaram sobre ele, imobilizaram-no imediatamente e fecharam-lhe a boca com as mãos, com os braços, com o cassetete, Cazé agarrava-se à cabeça em desespero, o advogado chorava. Era com toda a certeza tarde demais. O Capitão, apanhado à traição por um soneto de Shakespeare pela ordem correcta, jazia no chão quase imobilizado excepto por uns aflitivos espasmos. Uma linha de sangue muito escuro escorria-lhe pelo ouvido.

Quando entraram bombeiros e restante força policial, já nada havia a fazer por nenhum dos dois.

parte I

Gouveia

despesadiaria às 16:18
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Segunda-feira, 10 de Novembro de 2014

 

Beicinho

 

A Diana está sempre a fazer beicinho. É das almofadinhas que lhe aconchegam os olhos e espremem a boca num trejeito eternamente desapontado; almofadinhas bem afofadas e mimosas, às pintinhas acastanhadas: por causa delas, a Diana parece estar sempre à espera do pacotinho de Sugus que a mãe não lhe comprou. A curva da boca em forma de coração: sempre forçada para baixo. As orbes protuberantes: sempre de um azul líquido. Quem não a conhecer, acha que os gestos lassos vêm de um estado de aborrecimento perpétuo. Mas a Diana é simpática. Descobri-o quando lhe dei um lenço de papel, num dia em que o ar condicionado do comboio estava particularmente agressivo e ela não parava de fungar. Por momentos achei que a resposta ao meu gesto seria uma língua rosada a querer apanhar ar. Mas ela sorriu, e quando o fez pareceu-me que a cara dela ia explodir como uma piñata derrotada.

Depois desse dia, passámos a sentar-nos juntas no comboio. Partilhamos meia hora de vida: o segmento diário da pequena atualidade onde a Diana é a estrela e eu apresento a meteorologia. Sim, a Diana gosta de partilhar o pacotinho de Sugus que comprou às escondidas da mãe: a primeira coisa que fez quando lhe estendi o lenço de papel foi assoar-se — ruidosamente, agradecidamente, aliviadamente; a segunda foi contar-me que trabalhava na receção de uma clínica.

— Tento sempre oferecer um sorriso às pessoas. — A Diana explica-me isto como quem anuncia ter aprendido a fazer contas de dividir com dois números. Aqui, sem referencial nenhum, vogando nas letras, esta é uma declaração simples; dentro da carruagem, no nosso pequeno segmento noticioso, sei que foi dia de consultas de psicologia na clínica. A seguir ao intervalo, não perca: histórias de quem faz terapia.

— Há esta miúda, chama-se — é inevitável, informa-me a colega, não decorar as caras e os nomes. Na maior parte dos casos, as visitas são semanais, e se não o são agora é porque já o foram antes. Os traços marcam, as pessoas são únicas e não há dois narizes que arrebitem da mesma forma; depois, alguns vazios são demasiado perturbadores para serem esquecidos: os nomes vêm classificá-los. Toda a gente traz uma etiqueta presa ao pescoço, alguns aproveitam para enforcar-se nela. A Diana conhece-as — as gastas, as carcomidas, as rasgadas — porque assim tem que ser, mas do outro lado do balcão branco, prefere mantê-las viradas para baixo, — e tem sempre um livro debaixo do braço. É a única coisa que sei que ela vai ter sempre: um livro debaixo do braço.

Um suspiro para a câmara, um encolher de ombros para mim. — Mas todas as semanas é um livro diferente.

Hoje a miúda usava um livro de mais de quinhentas páginas encostado ao peito, como um escudo. As pestanas murchavam com o peso das lágrimas. Uma moldura triste, a condizer com o quadro: escleróticas avermelhadas, linhas de água nuas e inflamadas. Nariz-torneira, corrimento mal contido por um lenço de papel encharcado. A Diana têm aquelas bochechas porque é na boca que segura a empatia, para a ter pronta a ser soprada a qualquer instante. Enquanto lhe tratava do recibo, reparou nos lábios avermelhados. O contraste entre a cor dos lábios — grossos, desenhados com precisão — e a pele branca sugeriu a interação:

— Eu disse-lhe que o batom lhe ficava muito bem. Ela olhou para mim com os olhos muito abertos. Parecia um desenho animado fanhoso. — A concavidade da curva infeliz acentua-se, entre as sobrancelhas nascem três risquinhos indignados. — Afinal não havia batom nenhum. Olha, ela nem sequer estava a chorar! Aquilo era alergia e os lábios estavam inchados do cieiro. Por causa da alergia, ela estava sempre a lambê-los. Nunca me passou pela cabeça que o cieiro ficasse bonito em alguém. Nela ficava.

Vamos seguir para intervalo. Dois minutos dedicados aos compromissos comerciais para tentar explicar à Diana que nem toda a gente gosta de Sugus: agarram-se muito aos dentes. Mas a Diana têm a infância nas faces de fora e nas faces de dentro. O mal entendido desilude quem leva a sério a tarefa de bem receber e a arte de perguntar por formas de pagamento, sistemas de saúde e tratamentos seguintes. Não teremos outro programa além do lábio bicudo montado no irmão de cima, todo empinado, orgulhoso. Regressamos com o prólogo, fatal e amuado prólogo: — Ela até se estava a rir enquanto me explicava tudo. Depois marcou a consulta para a próxima semana e saiu aos saltinhos. Estava feliz.

 

S. White

despesadiaria às 12:45
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Domingo, 9 de Novembro de 2014

 

O tempo é uno, indivisível. O tempo é sempre. Mas nós precisamos de dividir o tempo para contar e apontar o que contamos, e para isso criamos uma máquina monstruosa: o relógio. O relógio é um mecanismo criado por um génio supra humano para nos escravizar. É uma fonte inesgotável de desgraça, que espalha sem mercê desencontros por todo o mundo e ao mesmo tempo!

Mas não quero falar dos relógios em geral e sim de um especial: este relógio. Sempre ao meu lado, tic-tac-tic-tac, não pára de me chatear e de me lembrar constantemente o atraso de vida que levo desde que o comprei. Não é um relógio qualquer, tem despertador. Mas o principal é que ele é o tempo, o meu tempo. Parece uma coisa difícil de perceber, mas não desanimes. Insiste.

O atraso aparentemente já existe há muito tempo, o relógio só o tornou aparente. Por exemplo, quando me deito na cama junto dele e me embrulho no seu cheiro, ou quando mergulho no sonho da preguiça e fico lá em baixo sentada a ver passar os barcos, esqueço-me completa e desastradamente do tempo que passa com eles.

É então que o relógio se chega a mim com aquela voz maternal e ritmada e me diz: come, minha filha, come.

Um destes dias, não chega a tempo.

 

r. owtag

despesadiaria às 21:06
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Sábado, 8 de Novembro de 2014

 

A meio caminho entre o ponto para onde a sala a impelia e aquele para onde o quarto a puxava, ou seja, enfim, lá onde o senso comum a vê, a miúda acabou de entrançar um punho de linho na cintura. É agora uma abstracção recuada do espelho para avaliar o efeito. Eu - que há pouco ameaçava castigá-la em regime de pão seco - digo: quando cresceres, casarei contigo. Ela ri, e um ethos sedativo pula por cima da sua idade. Deixo-a cair no fundo dessa profecia. Ela sente no crânio o calor da minha palma. A minha beirada inteira vai bater contra suas arestas. O indefinido em carne e osso, a dizer frases inteiras sem uma única palavra, disparando cada projéctil através de uma nevoenta repugnância de pólvora salpicada de fagulhas: pescoço, peito, quadril, nessa ordem pavorosamente natural em que as coisas se ajeitam. Foi sempre assim: quem quer muito às miúdas, as quer contra os homens. A receita é simples: temos de confiar no diabo. Até porque o amor à infância, se curado, ao homem não resta nada. Ela aperta-me o abraço. Admira instintivamente. Não se incomoda de ser o meu supérfluo, uma vez que sabe que sempre me faltará o necessário. Cada afago, regressivo, escorregadio, emaranha e resvala numa rigorosa hierarquia de méritos. Depois esbate-se, liquefeito, contra o mesmo orifício de onde vinha num eco de pêlos e covinhas um gorjeio de pequenos e deploráveis espasmos. Se fecho os olhos, tudo o que vejo é uma espécie de clarão a piscar como uma cloaca (o mundo que lá ficou por pura inércia e os matizes menos intensos de que são feitos os rudimentos de uma precaução devidamente fingida). E o futuro todo enfiado em dois ou três minutos do passado, a transbordar intenções vazias, jogadas, numa estranha e pequena contracção pélvica, mais para dentro dela do que para ela: uma infância em estado natural, sem os homens, a desempenhar seu próprio papel, a esvaziar completamente o mundo como se este fora sua própria bexiga.

 

Peor

despesadiaria às 00:26
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Sexta-feira, 7 de Novembro de 2014

 

V

 

Era um bosque muito antigo, de caminhos estreitos e áridos onde já nem as ervas daninhas cresciam. Todos os dias, depois de um pequeno-almoço vigoroso de ensopado de boi, Actéon levava a sua matilha a esvaziar a raiva das entranhas. Em casa ficavam os seus açaimes, já lassos à força de tanto reterem as mandíbulas espumosas de ódio. A caça jorra vida pelo bosque, pululante e matinal, comendo para ser devorada. Enquanto um dos seus cães abocanha um veado pelo pescoço, Actéon, descontraidamente, puxa com os dedos a licra que o estava a oprimir a vazante. Ao fazer este gesto, apercebe-se de umas movimentações inabituais que vinham de uma clareira ali perto. Dirige-se até lá e vê Diana e umas amigas a chapinharem num riacho murcho, enchendo e esvaziando vasilhas, repetitivamente. Por se alegrar com aquilo que avista, aproxima-se cada vez mais, até ser descoberto por elas. Continuam no seu preceito, indiferentes ao olhar intruso. De repente, Diana parece ser surpreendida por uma memória antiga que logo se lhe enraiza no pensamento, reformulando a sua servidão à literatura. É nessa altura que cicia uma prece e Actéon se desumaniza, um quadrúpede com chifres, irmão do que tinha golfado sangue há uns instantes. No momento em que a sua consciência de homem morre, também o seu corpo cervídeo finda, dilacerado pela matilha servil que tinha trazido de casa.

 

gisandra

despesadiaria às 00:10
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Quinta-feira, 6 de Novembro de 2014

 

Nenhuma estrela

 

De onde me situo, um pouco de luz, alguma poeira, nenhuma estrela. Tenho os quarenta à porta, junto com a publicidade. Não pedi nada. Desde que desisti de limpar a casa, ficou difícil encontrar-me. Alpes de roupa por todo o lado. Há pelo menos dois anos que não consigo ver-me ao espelho na totalidade, surjo sempre entrecortado. Faz parte do plano. De vez em quando penso em sexo, mas não dessa forma. Não tenho o membro adormecido à espera do príncipe encantado. É uma questão de memória, o meu corpo ainda se lembra — e lembra-se bem. Óptimo, sou capaz de me fazer rir a mim próprio. É um princípio, e os princípios escasseiam. Neste ponto, em alto mar, olhando o horizonte, o que se grita é fim à vista. Não lamentes, é só um pouco grave. Mal ou bem, ainda tenho as mãos abertas, ainda me planto no meio do nada para me deixar inclinar pelo vento, ainda puxo de um papel para fingir que não me esqueço. Mas sei que estou quase lá, cada vez mais perto. Perto de encolher os ombros à finitude do universo.

 

Menina Limão

despesadiaria às 15:58
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Quarta-feira, 5 de Novembro de 2014

...

O padre Dionísio fechou a porta da Igreja às 14h28. Mais um domingo cumprido, sermão, comunhão, "ide na paz de Cristo" e eles foram, mas levaram a paz toda com eles porque o mar em cachão da alma de Dionísio há muito que não conhece calmaria.

O telefone toca. O ecrã do aparelho antiquado insiste-lhe pela terceira vez naquele dia que Ana F. exige explicações. E estas são devidas há quase três semanas. Dioníso não sabe se se apaixonou porque perdeu a fé ou se perdeu a fé porque se apaixonou. Há coisas que nem no pensamento se verbalizam, mas Dionísio sabia bem que o problema espiritual que o assombra é apenas um sucedâneo das vibrações da carne. 

Não resistira, era essa a verdade. Gostava de ir à cidade, de vez em quando, despir a batina e mergulhar anónimo nos bares onde fumava e bebia. Onde reparou nas pernas de Ana F., no decote de Ana F.. Onde deu por si na casa de banho a fazer....

 Paremos! há histórias que queimam só de as lembrarmos.

 E assim as viagens à cidade foram aumentando de cadência até chegar à quinzenal rotina de "olá amor" e dois dias de muita cama e pouca verdade. Ana F. toma-o por representante da indústria farmacêutica, muito viajado, coitado, sempre fora, nunca está ao fim-de-semana. Dionísio prometeu que, a partir do final de Novembro, terá nova função na empresa e até a hipótese de se estabelecer na cidade. 

Dionísio já não sabe qual a pior das mentiras nem a quem a disse. Entre fugir ficando e fugir partindo, a escolha parece-lhe inevitável. Não atende a chamada de Ana F., mas abre o menu dos contactos. D. Julião já se ilumina no ecrã antiquado - mas a bateria dá para cinco dias, não me venham com merdas de smartphones se nós aqui na serra nem sabemos que porra é essa do 3G!!!

 [o narrador pede desculpa pela linguagem, mas neste ponto já não vê o interesse em continuar a disfarçar o vernáculo que o padre Dionísio usa na intimidade]

 - Está, Vossa Excelência Reverendíssima...

- Ó Dionísio, se começas a conversa assim é porque vem aí problema

- O caso é sério senhor, posso aparecer em sua casa daqui a pouco?

 DoVale
despesadiaria às 10:28
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Terça-feira, 4 de Novembro de 2014

 

Bendicò

 

Quando Bendicò acordou a casa ainda dormia no profundo descanso da noite. No seu passo de sentinela percorreu o silêncio dos corredores, visitando as portas dos quartos, uma a uma, com circunspecção precisa e calma. No final da vigia, vendo que tudo estava imperturbável, voltou à almofada que tinha por cama e lá esperou que a alvorada chegasse; só aí saberia por cumprida a sua guarda diária do sereno sono da casa.

Mal o sol tocou nos muros brancos de Donnafugata, Bendicò sentiu a agitação no quarto de Don Fabrizio. Uns minutos apenas e o príncipe saía do seu quarto, já equipado e pronto para a jornada de caça que os esperava naquele dia. Bendicò cumprimentou-o com inesgotável afecto, como era seu costume e que sempre foi, desde o início da Criação, a dádiva dos cães para com os seus protegidos da espécie humana. Don Fabrizio afagou-lhe as orelhas. Com um estalar da língua, Bendicò soube ser altura de se fazerem ao caminho. O sol estendia-se pelo jardim de Donnafugata com preguiça de se levantar. Bendicò saltava pela erva e fazia crepitar o orvalho com o bater das patas. Passaram pelo portão e lançaram-se na direcção dos montes de giestas e carvalheiras.

Fabrizio era um jovem príncipe, soberano da sua vida como são todos os rapazes antes da idade adulta. Tinha no pulso o nervo contagiante dos heróis das histórias, e no corpo, incorruptível, a cor e o cheiro da juventude. Bendicò era a figuração do seu desbragado ânimo, na sua forma mais nobre. Corriam ágeis sob o raiar daquela manhã, lestos como o rio a seu lado, na ilusão pura e bela de serem, como ele, impassíveis ao andar do mundo. Sem descansarem um minuto, correram durante o tempo que o sol precisou para se espraiar sobre todo o vale. Então, junto de um penedo, num salto, Bendicò parou. Muito quieto, esperou que Fabrizio o alcançasse. A sua pose hirta indicava prudência, sinal que o jovem príncipe soube ler. Bendicò avançou, ligeiro, na direcção de uma moita de urzes. Fabrizio aguardava, preparado. Com o impulso das patas traseiras, Bendicò investiu entre a folhagem fazendo saltar uma lebre cinzenta que desatou numa fuga desalmada. Fabrizio apontou a espingarda e bastou um tiro certeiro para a abater. Ainda ofegante da corrida, o príncipe sentou-se no chão, encostado ao penedo. Logo surgiu Bendicò, vibrante de satisfação, depositando-lhe aos pés o troféu da caçada.

Durante a manhã repetiram várias vezes este exercício. Quando sentiram o sol do meio-dia queimar-lhes a pele, subiram ao cabeço mais alto das redondezas e sentaram-se, exaustos, sob a única sombra que lá havia. A vista alcançava todos os montes e leiras daquele verdejante vale por onde passava o rio. Ao longe, marcada por uma enorme palmeira, estava Donnafugata, a casa de campo da família Corbera, usada como parenteses dominical e refúgio da venenosa rotina de Palermo. Fabrizio tirou da mochila duas fatias de broa amarela com presunto, tomate e cebola, e um cantil com vinho tinto. Bendicò, que se lambia em antecipação, recebeu num jornal velho as miudezas cozidas guardadas para si do jantar da noite anterior. Ambos comeram sem moderação, como mandava aquela fome aguçada pelo cansaço.

Fabrizio deu o último trago de vinho que havia no cantil. Sentiu-se refeito, pleno de conforto. O calor daquele início de verão encheu-o de sonolência, suavemente acarinhada pela brisa fresca da tarde. Bendicò pousara o focinho no seu colo e já dormia profundamente, como se assim estivesse há muitas horas. O príncipe afagou-lhe as orelhas, o pescoço, o dorso. Dormia em paz, o fiel Bendicò. Fabrizio recordou-se da noite em que pela primeira vez dormira com ele a seus pés. Na altura (quantos anos tinham passado?), era tão pequeno que cabia numa caixa de costura. Agora, quando se apoiava nos membros traseiros, chegava com as patas aos seus ombros, esforçando-se sempre por lhe molhar o queixo com solícitas lambidelas. Riu-se com esta imagem. O peso do sono fê-lo fechar os olhos, mas teve ainda tempo de ver, ao longe, onde o rio desaparece entre os montes, os ameaçadores indícios de uma daquelas tempestades de verão que, fulminantes, não importa a que distância, acabam sempre por nos alcançar.

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Era a última semana de Setembro. Ao regressar a casa, pousei a mochila das férias e o saco da tenda à porta, enchendo o chão de pó e folhas que trazia comigo. Disseram-me para que, mal chegasse, o fosse ver, que ele não estava bem. Que sofria muito. Quando entrei no jardim, vi Bendicò deitado no chão, inerte, à sombra de uma árvore. Tinha caído no dia anterior uma chuva leve que servira de tempero à terra seca. O cimento do chão estava ainda molhado, coberto por um manto de folhas já tingidas de amarelo. Era naquele quadro que Bendicò jazia, num gemido suplicante, quase silencioso.

Aproximei-me dele, junto ao chão e pus-lhe a mão no dorso. Ele acordou e viu-me, franziu as orelhas; foi tudo o que a força lhe permitiu. Afaguei-lhe a cabeça. Respirava a custo, cada fôlego exigia o esforço que já o abandonara. A perseverança pela vida é mais forte nos animais porque brota, intacta, do instinto natural, segundo as regras daquela antiquíssima ordem. Bendicò estava no chão, estendido e quedo, porque as suas pernas não lhe respondiam. Ao longo do último ano um tumor corroera os seus membros e deixara-o paralisado. O verão, que agora acabava, dera-lhe a convalescença dos dias quentes em que o seu corpo se foi aproximando cada vez mais do chão, até se colar a ele. Era como Bendicò estava agora, colado ao cimento molhado do chão. Morreria em breve.

Não. Falei com ele como já não falava há muitos anos. Como quando ele corria pelos montes junto ao rio, e caçava coelhos e corria atrás das galinhas e dos gatos vadios. Com cuidado, levantei-o com os braços. Senti-o contorcer-se de dores, mas Bendicò abafou qualquer gemido. Pousei-o sobre as patas, que tiritavam na arquitectura instável do seu corpo. Mas dele partiu a vontade, e avançou decidido com os membros dianteiros. Segurava-o pelo dorso. Bendicò arrastava-se no apoio dos meus braços, as unhas riscavam o cimento e os passos eram todos em falso, apontados ao chão. A determinação, no entanto, era dele. Arfava, com a língua de fora, como noutros tempos fora sinal de contentamento, e olhava para mim, de passo a passo, para se certificar de que, apesar do toque, eu o acompanhava; lembro-me agora que nesses relances estava ainda, vivo como sempre, o afecto com que ele todos os dias me recebia de manhã.

Iludido por uma esperança impossível, larguei-o. Ele parou. Não ousou avançar nem olhar para trás. Quando tentou um curto passo em frente, logo se precipitou num tropeçar de pernas que o atirou para o chão com um baque seco. A minha avó, que nos observava da escada de pedra, aproximou-se dele. Baixando-se, sacudiu-lhe com carícias suaves a sujidade do pêlo. «Pobre Bendicò», disse. «Veio para cá no mesmo ano em que o teu avô morreu. Já lá vão treze anos. Deu alegria à casa depois dessa altura. Foi uma boa companhia, este cão». Também ela estava triste. Bendicò fora para a minha avó a companhia dos primeiros anos da viuvez, os anos mais solitários. «Passaram treze anos», disse eu em voz baixa enquanto olhava o corpo moribundo de Bendicò.

 

Pensei no que significara todo esse tempo. Passara pela minha vida uma sucessão inverosímil de dias: dias de tédio em palestras inúteis, dias de ansiedade pelas paixões interrompidas, dias de entrega a empregos breves e devoradores, dias de ressaca pelos fracassos vários – palestras, paixões, empregos. Enfim, dias que nos dão, com sarcástico desfecho, a idade adulta. Em todos esses dias, Bendicò esteve lá, acompanhando-me ao longo dessa incrível sucessão em que se fizeram e desfizeram as ilusões do futuro

(e quando sobre as cinzas dessas desilusões se repetiu, vez após vez, o mesmo ciclo, num número de voltas necessariamente finito, limitado ao momento em que a força motriz se esgota pelo cansaço de suster a dádivas de esperança a construção de um altar imaginário; então a roda pára, passando a mover-se apenas com a força do vento; mas ainda conserva uma luz nossa, pequena e franca, que consegue projectar uma ou outra imagem mais querida com razoável nitidez; é isso a juventude)

Bendicò foi a minha companhia de juventude e dela a figuração na sua forma mais nobre.

 

Morreu, colado ao chão do jardim, no final daquela tarde de Setembro.

 

p.a.leitão

despesadiaria às 09:51
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Segunda-feira, 3 de Novembro de 2014

...

(micções)

 

Nunca pensei que fosse tão pesada. Já tinha manejado as caçadeiras do meu avô, em criança, mas nada que se compare à sensação que se experimenta ao segurar uma Walther de nove milímetros com uma só mão. Roubei-a ao pai da minha mulher, reformado da PSP, enquanto estava ocupado a grelhar sardinhas. No último Natal chamou-me à parte e disse: «Tenho lá em cima, no escritório, a minha arma. Quero que fiques a saber onde a guardo, pois nunca se sabe». Agradeci-lhe o gesto de confiança, e afiancei-lhe que, por certo, nunca iria ser necessária. Agora que a tenho encostada à têmpora direita reconheço como estava errado. Nada mais é tão necessário. Meter um balázio na cabeça é, nas minhas circunstâncias, o único acto de dignidade que me resta.

 A coisa mais bela que vi em toda a minha vida foi um campo de urtigas, que crescia livre e exuberantemente, como um manto verde sobre o leito de um deus, no interior de uma fábrica abandonada e já sem telhado. Ia-mos para lá fumar e ver revistas pornográficas às quartas à tarde, e masturbava-mos virados para a parede, envergonhados. Foi numa dessas tardes que me apercebi daquele manto de urtigas. O meu desejo imediato foi despir-me e deitar-me sobre ele, entregar-me totalmente, sentir com todos os poros, ocupar o vazio da minha alma. Não fui capaz. Acobardei-me naquele momento. No fundo, fui honesto comigo próprio. Incapaz para a acção, a maior nulidade do nosso tempo, quem sabe o maior filho da puta vivo. É isto o que eu sou.

A dúvida que me domina, neste momento, é se serei capaz. Procuro forças em memórias antigas. Lembro-me como me era fácil disparar sobre as rolas com as caçadeiras do meu avô. Recordo-me até do dia em que matei vários galináceos da tia Etelvina à pedrada. No entanto, como me é difícil premir agora o gatilho. Sinto cada vez mais o peso da Walther a produzir o seu efeito inexorável sobre o meu braço, como se os portões do Inferno tivessem sido forjados em chumbo maciço.

Ouço gritos e os passos de alguém que se dirige para aqui. Atiro a pistola para longe. Não posso escapar ao que sou.

 

nev

despesadiaria às 14:54
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Domingo, 2 de Novembro de 2014

 

O pastor, o último pastor, chamou a ajuda, que lhe terá levantado o corpo da terra molhada onde em maio houve papoilas e prontamente levado para a unidade de referência. Depois de sujeita a estímulos de reanimação por profissionais certificados, não soube dizer porquê nem como, apenas quando, e mesmo assim.

A última recordação da noite anterior era a de uma luz que aproveitara a cortina aberta e a cegara; ou era da televisão que deixara ligada num canal de notícias.

Pessoas de escafandro observaram-na imobilizada numa marquesa de metal; ou era ela que as vira à distância, executando o ritual adequado ao vírus.

Fora sugada pelo desconhecido através da janela do quinto mas à altura de um sexto; ou descera as escadas e percorrera, com que meios e consciência, os quilómetros até ao conforto uterino do solo.

A ambulância fora filmada a partir de um helicóptero no seu percurso para o hospital das quarentenas; ou era aquela a ambulância em que ela própria havia sido transportada, vista de cima pelo seu espírito desprendido.

As cabeças inumanas trocavam entre si sons inacessíveis à sua interpretação; ou eram jornalistas sem rosto que misturavam o inglês com a traição simultânea.

Procurou com as mãos, escorrendo pela pele, as partes indispensáveis à vida; ou foram enfermeiras sem barreiras que a despiram e lavaram.

 

Veio a informação de que alguém, provavelmente de outro ramo da ajuda obrigatória, lhe investigara a casa e apagara o televisor, que nessa altura apenas transmitia estática. Não foram registados sinais de violência nem de arrombamento. A notícia era de uma paz suburbana perturbada apenas pela precariedade com que um portátil se equilibrava no abismo de uma mesa, ao lado da pasta de quem acabara de chegar de um emprego odioso.

(Fazia contas; ou dava graxa, mas em todo o caso na baixa).

Conseguia tocar na ponta do nariz com ambos os indicadores; ou o ambulatório sai mais em conta do que tê-la por cá.

O documento declara-a incapaz para pouco mais do que deitar-se e comer; ou tem apenas de tomar, ateiamente, um de manhã e outro ao jantar.

As costas estão empapadas no suor de quem não sabe por onde ir; ou permanece ainda no torpor da terra onde em maio houve papoilas.



E.

despesadiaria às 04:39
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Sábado, 1 de Novembro de 2014

 

Para determinadas pessoas, os primeiros dez minutos da manhã podem estragar um dia inteiro. Problemas com a água quente, problemas com o despertador, problemas com a torradeira, o leite que ferve para fora, um autocarro que se perde por segundos. Chamamos-lhe mau acordar. Para algumas pessoas, como Alexandre, ter de levantar-se e sair de casa estraga-lhe o dia, não são necessários pretextos acidentais. Mesmo assim, não deixou de ficar surpreendido quando, no eléctrico, perdeu a paciência e deu uma palmada na cabeça de uma senhora de alguma idade que, de costas para si, rosnava entredentes sentenças sobre a juventude por Alexandre não ter pedido desculpa quando lhe tocou na puta da malinha. Menos surpreendente foi o espectáculo que se seguiu, e uma paragem depois o guarda-freio sugeria-lhe que saísse. Com ele desceu um homem que o informou que a senhora com quem se tinha desentendido era a esposa do chefe da guarda. Alexandre suspirou fundo, amaldiçoou o seu humor matinal, a velha, a manhã, o dia, a sociedade, a vida, e tentou prever em que buraco se tinha enfiado.

Poucos dias depois, o Capitão Menano estava à porta de Alexandre para acertar contas. Durante este tempo pensou bem na forma de resolver a situação, e optou por não meter o quartel ao barulho, nem ir fardado, e muito menos armado. O Capitão Menano era um homem de evitar confrontos, como já tinha sido um jovem de evitar confrontos e uma criança de evitar confrontos, mas era suficientemente esperto para fazer crer à hierarquia que sabia resolvê-los sem recurso às últimas consequências. Pelo contrário, quase tudo no quartel ficava despachado à primeira ou segunda consequência. A verdade é que Menano era um cobardolas de primeira água, daqueles cuja função narrativa nos romances é a de sublinhar a valentia do protagonista. Mas o argumento da esposa era incontornável. Toda a gente do bairro viu ou ouviu de quem viu que um fedelho de vinte e tantos anos lhe tinha chegado a roupa ao pelo. Nós sabemos que não foi bem assim, em rigor chegou-lhe o cabelo ao couro, mas, fosse por força, fosse por liberdade de expressão, o rumor ia-se instalando com nuances diversas. Convinha que alguém agisse.

O Capitão Menano subiu as escadas do prédio ensaiando o que dizer a Alexandre a um passo que perdia velocidade a cada degrau. Pendurou o indicador no ar apontado à campaínha e respirou fundo mais do que uma vez. Quando Raquel abriu a porta, por pensar que era Alexandre que chegava, Menano ainda não tinha tocado. Raquel, namorada de Alexandre, era uma miúda por quem todo o bairro tinha justificado fraquinho, mas ninguém a tinha visto assim, com uma t-shirt branca que tapava o umbigo por uma unha negra, e umas cuecas de cintura baixa com padrão de stormtroopers. Menano supôs que as longas pernas de Raquel também ali estariam mas os seus olhos dispararam para cima o mais que pôde obrigá-los e, se já estava nervoso, a situação descontrolou-se, quis sair dali com urgência, mas quis muito menos ter de lá voltar, pelo que se resolveu pela Lei de Talião aplicada através de uma direita de punho fechado em cheio na cara de Raquel. Em cheio, enfim, em cheio planeava ele, mas depois de puxar o cotovelo atrás, e sendo Raquel muito mais alta, o impulso e inclinação desequilibraram-no e o soco apanhou ali meio lábio, meia bochecha, ainda assim o suficiente para a fazer cair para trás e lhe deixar solto um dos seus magníficos dentes brancos. E o Capitão Menano, que por pouco não caiu também, fugiu escadas abaixo.

 

(continua, em princípio)

 

Gouveia

despesadiaria às 08:15
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Sexta-feira, 31 de Outubro de 2014

 

uma ideia assaltou-o de repente. levou-lhe a carteira e o relógio. sim, ainda usava relógio. a vida moderna não era para ele. conhecia perfeitamente a convenção social de dormir, mas há muito que decidira não participar nela. os dias confundiam-se com as noites, com os dias, com as noites, com os já é tarde, com os nunca mais, com os para sempres, com os já agora. praguejava amiúde contra a juventude. de uma inutilidade consabida - tanto o praguejo como a juventude itself, mais as suas manias de usar expressões toscas em inglês, os seus iás e os seus iés, a sua pseudomodernidadezinha de quem por ter barba desleixada se acha muito coiso, e bebe gin tónico porque agora, sem saber da existência dos contos do mário henrique. os velhos e os novos. todos iguais, mais o azedume que os pariu. pagava para o tirarem deste filme, mas a ideia que o assaltou fugiu-lhe com a carteira e com o relógio. ficou sem trocos, sem horas e sem ideia, e percebeu que era tempo de pedir a conta e acabar o texto. 


um tal de joão gaspar 

despesadiaria às 07:32
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Quinta-feira, 30 de Outubro de 2014

 

(lembrando a Rapariga das Maçãs)

 

G.,

 

Anteontem à tarde olhei para o céu como se fosse o sol e visse o meu reflexo no vidro embaciado por um longo banho. Quase senti as gotas quentes a desprenderem-se dos cachos escurecidos do meu cabelo e a caírem na curva das costas, aninhando-se naquele esconderijo húmido. Mergulhado no bafo das nuvens, o sol era um circulo de contornos difusos, pálido e desbotado; e tu dizias, em dias como esse, quando a luz era filtrada por um pano sujo e a ausência de reflexos me deixava ver claramente a cor dos teus olhos, que cada um tinha a solidão que merecia. Não sei se ainda pensas o mesmo; nós mudámos desde as tardes passadas a jogar matraquilhos sob o telheiro de batata frita que se estendia entre o bar e o pavilhão de ciências; pelo menos, tu cortaste o cabelinho à foda-se e esqueceste os golpes de cabeça que te ajudavam a afastar as mechas dos óculos; eu pintei o cabelo de fogo na véspera do baile de finalistas e depois, quando achei que já te tinhas esquecido de como descobrir os rastos da tinta acrílica nos meus caracóis, fiquei loira — agora tento recordar a minha cor, mas não consigo; e antes de um festival qualquer, cortei um palmo inteiro de cabelo.

Claro que há coisas que não mudam.

Continuo a ficar presa nos cubículos da casa de banho e já não há ninguém que me vá lá buscar. Aqui, as portas são de madeira e têm fechaduras que funcionam; as folgas entre a madeira e o chão são mais pequenas, e nas paredes riscadas não há amor, nem insultos, nem discussões sobre veganismo ou elegias aos fluídos corporais. Tudo é branco e por isso cada divisão micrométrica parece um salão vazio, tenho espaço para girar em torno dos meus eixos desalinhados; cada volta mais rápida que a anterior até o espírito se transformar num disco, rodopiando até o espaço fazer o pino e o tempo rasgar o ar com um mortal encarpado. Fechada no cubículo infinito, perguntei à loiça, ao piaçaba, ao caixote de tampões ensanguentados: é esta a solidão que eu mereço?, e em troca recebi a minha própria voz, seguida por um silêncio de tundra. Na parede à minha frente havia uma forma cilíndrica, tocada por um braço estendido. A forma servia para pendurar casacos ou malas, mas ontem vi-a expandir-se e transformar-se na tua cara; imaginei as oscilações da tua maçã de Adão enquanto mastigavas e engolias as respostas que fingias ter. Por pouco não esborratei a maquilhagem — sim, eu agora uso maquilhagem.

Decidi escrever-te para manter vivo o fantasma. Também bebi um bocado nesse dia — anteontem, quando a tua cara nasceu à minha frente — porque o álcool faz com que os teus contornos pareçam mais nítidos; esquecer-te seria a solidão que eu mereço: saber que sonhas ver-me arder no Inferno ainda é das poucas coisas que me impede de descer até lá.

 

I.

(S.White)

 

P.S.: Não deixei de comer maçãs.

despesadiaria às 08:44
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Quarta-feira, 29 de Outubro de 2014

 

O homem que arranha

 

 

Enquadrado pela janela, o crepúsculo entrecortado pelas silhuetas das fachadas pintava um quadro belíssimo na parede do escritório. Os vários tons de azul, laranja e rosa misturavam-se como num gelado de máquina, com cores tão espessas quanto intensas, escorrendo pelo espaço ainda livre do negrume e ângulos impossíveis dos telhados da Baixa.

Fui despertado do meu transe pelo bater das oito na torre dos Clérigos. A calma que me rodeava contrastava fortemente com a desarrumação geral de caixas, amontoados de papeis, livros e máquinas que os meus olhos começavam lentamente a desvendar, e uma sala onde trabalham dez pessoas pressupõe. O cheiro a mofo e suor não deixava muito à imaginação mas trazia memórias difusas de pessoas conhecidas. O som das badaladas deu lugar ao zumbido da ventoinha do computador pousado à minha frente. Por fim, um “formigueiro” fez-me esticar a perna esquerda e ajustar a ligeiramente posição na cadeira.

Sentado à secretária, perguntei-me: “O que faço aqui?

 

 

r o w t a g

despesadiaria às 23:50
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Terça-feira, 28 de Outubro de 2014

 

 Caderno listrado – carretéis, 52

 

Uma mesa está no vão, junto à janela. Conto os cigarros na carteira. São doze. Para além do nada que isto representa, temos (eu e os outros dois gajos) mais trinta e cinco minutos para esvaziar a casa. O armário de cozinha, com uma das portas caída para fora, desafia que lhe venham fazer reparos. Ao lado, ancorada entre duas fasquias por pintar, uma chapa polida evapora desse corrimento reflectido, como se fora um rato morto erguido pelo rabo. As duas cadeiras, sem braços, fundas e moles, parecem desligadas da totalidade conexa das suas aparências; reivindicam qualquer coisa que não seja mais o estrato composto de ingredientes subtilíssimos de madeira, verniz e grampos. Abro um pouco mais a porta já aberta (as almofadas do sofá vão repetindo-se nos pedaços de espelho que um filete de papel dourado unia nos cantos). Visto por vidros grossos e empilhados, o fluxo de um objecto infiltra e se ajusta ao outro, remete a uma realidade oculta que drena para si toda a força do convívio forçado, quotidiano. Depois de alguns pagodes de madeira, empurro o divã pela escada (espécie de escultura pop, um vómito de cera que parece emitir fagulhas e ideal para ser lançado ao Tejo). As gavetas, semelhantes a ninhos de cobras cheios demais, derrubavam, das beiradas, longos cordões verdes de pano. E um incrível emaranhado de sininhos, alguns de prata, outros de chifre, presos num barbante acetinado, amarrava a papeleira em cima da qual, num jarro azul, abria-se um buquê de lápis 2Bs. E assim, envolto numa magia natural, cada músculo soma o cansaço ao cansaço que não é de um lugar nem de outro. Nulo, reabsorvido, é a tênue película de nada que separa o mundo cujo conjunto articulado é existência de ponta a ponta. (O alívio viria de onde, se pudesse vir de alguma coisa?) À saída um feixe de samambaias balança-se a uma janela, na ponta de um cabo de vassoura. Sento o rabo no pedaço que restou do muro. Os pés contraem-se, doridos. Buscam a fusão numa massa que lhes ofereça, paradoxalmente, singularidade. Por entre as grades traseiras do armazém, a tábua lisa da janela parece um borrão azul de esferográfica. E o prédio ao lado, meio sentado, meio erguido, sobe num espinhaço de rochas que tenta ficar de pé contra seu peso - com uma feição pesada e caseira indica, como se apontasse por trás de seu ombro, um outro prédio que fosse, ele sim, o verdadeiro. Ponho diante dos olhos o binóculo que apanhei sobre o sofá. Desbarrancado à direita, à esquerda o mundo eriça-se de contrafortes. Essas elevações secundárias, complanadas e intercaladas de calcário, arredondam, fracionadas e livres de anteparos, as linhas magras dos taludes a tombar em travessões sucessivos. Depois escalonam-se em círculos e estiram-se, boleadas, em muramentos numa desintegração contínua, ou nas grimpas em que se empilham as placas. E cruzam-se em talhados (pouco elevados mas inúmeros) a esgarçar a tênue capa de areia que as reveste.

 

Peor

despesadiaria às 01:52
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Segunda-feira, 27 de Outubro de 2014

 

Os poemas possíveis

 

Caminho como uma casa em chamas, no limiar da eternidade. Nunca me encontrarão. Tudo o que tenho trago comigo. Pequenos equívocos sem importância.

 

Menina Limão

despesadiaria às 23:55
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Domingo, 26 de Outubro de 2014

 

IV

 

Um bando de pássaros encontra um ermo virgem à mercê das chuvas e dos ventos. Dispersam-se pelo monte, como um tecido leve, enegrecido, a cobrir a terra. Debicam os vestígios da sementeira da estação anterior e uma bota em curva, encarquilhada, humedecida de uso e de meteorologia, no meio da terra, é o altar de alguns. Por lá pousam, vigiando a curta distância os meneios dos restantes. Um verme assoma, Pessanha de seu nome, o cocuruto espreita e um bico trucida-o. As aves irrompem numa verticalidade histérica que se dirige a um ligeiro fosso. O desmame acaba, os pássaros regurgitam a carne, a acalmia do repasto chega com bicos amolecidos de tanto roçagar o osso. A descoberto, o cadáver em decomposição de um homem, o camponês das últimas estações. Ao lado, os óculos partidos, cobertos de um granito ocre e arremessados pelo alvoroço dos pássaros. As pernas dobradas, os braços abertos em extensão, medindo o território, diluindo-se no próprio mapa que tracejam. Ali caiu, enquanto a mulher debulhava a ceia e o esperava para, juntos, enterrarem a ninhada que uma gata tinha acabado de parir.

 

gisandra

despesadiaria às 21:31
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Sábado, 25 de Outubro de 2014

 

Acordou com a estranha sensação de que não lhe apetecia comer mais frango. Não era coisa do momento, percebeu que a decisão era definitiva. Foi fazer a barba, torradas, rímel, batom, era outra vez Andreia e não Alberto que o CC lhe impunha.

As coisas tinham melhorado um pouco nas últimas semanas. Tinha agora a esperança fundada de que seria operada antes do Natal. Finalmente, Cortadas as carnes que a agarravam ao equívoco que fora a maior parte da sua vida, talvez pudesse, enfim, casar com o Sicrano. Era um homem estranho, mas quem seria ela(e) para julgar? Não era possível determinar-lhe um rótulo, homossexual, talvez, bi, se calhar, hetero, tem dias, infeliz, sempre. Mas era, apesar disso, uma alma generosa e gostava realmente de Andreia. Não gostava tanto de Alberto, mas o suficiente para esperar pacientemente que este se ausentasse para prosseguir o namoro atribulado.

À medida que as hormonas começavam a fazer efeito, Andreia ia mudando. O frango, pensou, era só mais um efeito. Mas percebeu que tinha atravessado finalmente a ponte quando, na sapataria onde nunca tinha tido coragem de entrar, a empregada lhe disse,

- Tenho os sapatos ideais para combinar com esse vestido, vai ver que fica linda.

 

DoVale

despesadiaria às 10:39
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