Sexta-feira, 26 de Setembro de 2014

 

um guarda-chuva no supermercado

   

A certa altura da minha vida, no grupo de copos do bar do momento, conheci um rapaz que fazia uma coisa muito engraçada. Às vezes, desaparecia. Todos pensávamos que viajava, pois era frequente vê-lo com mapas de cidades estrangeiras nas vésperas dos períodos de desaparecimento, mas ele dizia sempre que não, que não tinha ido, não planeava ir e não ia mesmo a lugar nenhum. Ora, essa resposta contra-intuitiva gerava naturalmente mil e uma teorias acerca de onde ia ele exactamente, e porquê. Eu apostava (sim, naturalmente, já havia apostas) que ele era traficante de droga. Outros, talvez menos motivados pela inveja, coisas mais mirabolantes e perversas.

Na realidade, ele não mudava de casa, nem de cidade, nem de país, nós é que pura e simplesmente deixávamos de o encontrar. Sei disso porque uma dessas vezes - em que já tinha desaparecido há cerca de uma semana, semana e meia, por casualidade, encontrei-o.

Estava numa situação profissional cuja localização tinha sido alterada à última da hora, e enquanto o artista tocava na única zona iluminada da sala, vi-o ao fundo, sentado, só, e a esbracejar para tentar chamar o empregado. “Talvez não o tivesse visto se não fosse por estar a tentar chamar a atenção”, lembro-me de ter pensado enquanto me dirigia para o cumprimentar.

“Então, já voltaste?”, perguntei-lhe.

“Sabes bem que não fui a lugar nenhum. Já to disse, já vos disse, que não é possível ir a lugar nenhum”, respondeu ele.

“Oh pah, essa tua cena é muito estranha. Ninguém percebe nada. Conta-me lá, o que é que tu andas a fazer?”

“Ando por aí, meu.”

“Por aí, por onde, caralho? Ninguém te põe a vista em cima!”

“Já estou um bocado farto de vos tentar explicar isto mas pronto, cá vai”. E começou a falar de correntes psicogeograficas e cidades invisíveis, de como podemos cruzar-nos ou estar fisicamente muito próximos mas ainda assim distantes o suficiente para não nos vermos, como barcos a navegar à noite. Desde que o tinha conhecido que era esta a conversa dele. Chatinho.

“É um fenómeno conhecido e confirmado por muitas pessoas que já estiveram na clandestinidade”, continuou. “As pessoas muitas vezes não reconhecem outras pessoas que deveriam reconhecer porque não é suposto aquelas pessoas estarem ali, naquela situação. Percebes?”

Mas eu não percebia, ninguém percebia e ele também não parecia importar-se muito com isso. Perguntei-lhe se achava que voltava a tempo do jogo, porque estava a pensar organizar uma jantarada com a malta. Disse-me que ia tentar e eu olhei involuntariamente para o relógio.

“Olha, fica bem então, e vê lá se apareces pra semana. Boa noite”, despedi-me já a pensar na minha mesa e no cliente que nela me esperava para fechar negócio.

“A noite escapa-nos por entre os dedos com a mesma força com que o destino nos agarra”, respondeu-me de copo levantado.

 

r o w t a g

despesadiaria às 20:44
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