Domingo, 2 de Novembro de 2014

 

O pastor, o último pastor, chamou a ajuda, que lhe terá levantado o corpo da terra molhada onde em maio houve papoilas e prontamente levado para a unidade de referência. Depois de sujeita a estímulos de reanimação por profissionais certificados, não soube dizer porquê nem como, apenas quando, e mesmo assim.

A última recordação da noite anterior era a de uma luz que aproveitara a cortina aberta e a cegara; ou era da televisão que deixara ligada num canal de notícias.

Pessoas de escafandro observaram-na imobilizada numa marquesa de metal; ou era ela que as vira à distância, executando o ritual adequado ao vírus.

Fora sugada pelo desconhecido através da janela do quinto mas à altura de um sexto; ou descera as escadas e percorrera, com que meios e consciência, os quilómetros até ao conforto uterino do solo.

A ambulância fora filmada a partir de um helicóptero no seu percurso para o hospital das quarentenas; ou era aquela a ambulância em que ela própria havia sido transportada, vista de cima pelo seu espírito desprendido.

As cabeças inumanas trocavam entre si sons inacessíveis à sua interpretação; ou eram jornalistas sem rosto que misturavam o inglês com a traição simultânea.

Procurou com as mãos, escorrendo pela pele, as partes indispensáveis à vida; ou foram enfermeiras sem barreiras que a despiram e lavaram.

 

Veio a informação de que alguém, provavelmente de outro ramo da ajuda obrigatória, lhe investigara a casa e apagara o televisor, que nessa altura apenas transmitia estática. Não foram registados sinais de violência nem de arrombamento. A notícia era de uma paz suburbana perturbada apenas pela precariedade com que um portátil se equilibrava no abismo de uma mesa, ao lado da pasta de quem acabara de chegar de um emprego odioso.

(Fazia contas; ou dava graxa, mas em todo o caso na baixa).

Conseguia tocar na ponta do nariz com ambos os indicadores; ou o ambulatório sai mais em conta do que tê-la por cá.

O documento declara-a incapaz para pouco mais do que deitar-se e comer; ou tem apenas de tomar, ateiamente, um de manhã e outro ao jantar.

As costas estão empapadas no suor de quem não sabe por onde ir; ou permanece ainda no torpor da terra onde em maio houve papoilas.



E.

despesadiaria às 04:39
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