Quarta-feira, 17 de Dezembro de 2014

 

Um conto de Natal*

 

A campainha tocou quando faltavam dez minutos para a uma da manhã. Joana abriu os olhos, duas rolhas saltaram contra o teto produzindo dois baques secos, dois tiros. Tinha passado a última hora deitada na cama, debaixo da colcha azul e dos dois edredões; um esconderijo quente e abafado, onde se sentia uma panela de pressão envolta no próprio vapor. As mãos húmidas entrelaçavam-se sobre o umbigo nu e aderiam à pele com um revestimento de cola batom. Os batimentos cardíacos insinuavam-se através de uma artéria que tremia na perna direita; este compasso transformava o tempo numa sensação tátil e permitia-lhe saber as horas sem olhar para o relógio.

A luz do corredor entrou pelo quarto e Joana ergueu-se na cama, segurando as cobertas até às clavículas. Viu a figura da avó agarrar-se ao farto peito que lhe caía até à cintura em dois pesados sacos; uma figura amorosa, à qual a camisa de noite assentava como um largo abajur. Da ombreira da porta, olhou para a neta com temor interrogativo. Aproximou-se da entrada do quarto e estacou ao lado da cadeira onde Mimi se sentava agarrada ao joelhos ossudos, com o nariz escondido e cachos de cabelo a disparar em todas as direções. Parecia um animal selvagem. Os seus olhos rasgados cruzaram-se com os de Joana numa linha de partículas de pó; Joana percebeu tudo:

— É para mim, avó — disse, enquanto se levantava e vestia o robe riscado.

A avó chupou as bochechas para dentro e recuou de novo até ao corredor. Ficou à frente da luminária, cuja luz amarelada parecia enriçar as mechas brancas que lhe saltavam dos rolos e acentuar o ar cadavérico oferecido pela falta de dentes. Derrotada pelo tom veemente da neta, ainda se atreveu a perguntar: — A esta hora, filha?

— É para mim, avó.

Joana esperou até a avó se recolher ao quarto de onde viera para sair do seu. Ouviu Mimi saltar da cadeira e seguir atrás de si enquanto se dirigia à porta: estava trancada; um porta-chaves com uma estrela metálica pendia da fechadura. Quando Joana se preparava para rodar a chave, Mimi tocou-lhe no ombro com um dedinho magro e fê-la virar-se; estendeu o mesmo dedo na direção da sala e caminhou em direção ao braço do sofá que se disfarçava na semiobscuridade.

Na sala havia um grande aparador de madeira escura e estilo rústico. A loiça chinesa que o enfeitava tinha sido substituída há poucos dias por um presépio com chão de musgo e teto de hera. As figuras dos três reis magos perfilavam-se sobre uma linha de farinha entre a cabana iluminada por pontinhos de luz branca e uma grande pedra calcária, atrás da qual um pastor cuidava das suas três ovelhas de cerâmica. Mimi postou-se ao lado do pastor e cruzou os braços. O maxilar anguloso, o traço menos infantil que possuía, apontava ora na direção da pedra, ora na direção do caminho que Joana fez para a alcançar: o bafo imaginado das vaquinhas de brincar guiou-lhe os braços até à pedra, que agarrou e aproximou do peito. Mimi sorriu perante o querido gesto. A lua não estava cheia; o que dela passava através da janela da sala alumiava os pontos mais salientes da cara da rapariga de um modo macabro e estranhamente familiar.

A porta da rua abriu-se com um queixume grave. Uma ligeira neblina abraçava os bolbos esbranquiçados dos candeeiros de rua e os tentáculos brilhantes com que o vizinho da frente envolvera o tronco de uma velha iúca. Joana desceu as escadas e desceu a pedra: encostava-a agora ao ventre, como carga num regaço. Um ramo de rosas excecionalmente pesado. Mimi foi a primeira a alcançar o portão. Empoleirou-se no topo plano do pilar ao qual se fixavam as dobradiças ferrugentas e cobertas de minúsculas gotas de água; cruzou a perna; cruzou os braços; esperou que Joana puxasse o trinco e arrastasse as pantufas até ao vulto que a esperava, encostado a um carro preto.

— Ouve, bebé, eu precisava de esclarecer as coisas — a voz restolhava. — Levaste tudo demasiado a sério. Nós só nos estávamos a divertir.

— Não. Não foi divertido — confessou Joana à pedra.

O rapaz tentou descolar a espinha do carro. Curvou-se para a frente e usou os braços como alavanca, mas assim que se achou sem apoio, uma força invisível atirou-o de novo contra a janela do carro. O movimento arrastou consigo uma massa de ar que se misturou no halo húmido à volta de Joana. Cheirava a álcool. Mimi soltou uma gargalhada que também restolhou, como uma lebre que se escapa entre as canas.

— Não percebi nada. Aproxima-te, pá! — E estendeu um braço mole para a fita do robe de Joana; tentou puxá-la, mas a pedra estava no caminho. Um veio brilhante, como as nervuras da carne de vaca cozida, cortava a pedra ao meio. Refulgia no jeito ameaçador de uma lâmina bem amolada. — Porque é que trazes essa pedra?

Mimi saltou do pilar e colocou-se atrás de Joana, que fechou os olhos. Duas tenazes agarraram-lhe os pulsos; deixou-se conduzir através do conhecido túnel branco, ao som de mil abelhas presas num televisor. Levantou os braços, expondo o laço que lhe fechava o robe. O rapaz estendeu de novo a mão e, à terceira tentativa, consegui puxar uma das pontas. Depois, a pedra do presépio rachou-lhe a fantasia ao meio.

 

*está bem, tenho que reavaliar a minha noção de piada; ainda assim, como já não vos vejo até lá, Feliz Natal.

 

S.White

despesadiaria às 15:22
|

.Arquivo

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014