Domingo, 18 de Maio de 2014

 

(conto às prestações)

 

1.

 

Após tirar o avental de corpo inteiro e o pendurar num gancho de plástico, deslocou-se à pequena janela da cozinha, afastou ligeiramente a cortina e olhou para o parque infantil que, apesar de recente, à luz baça do solitário candeeiro tinha um aspecto lúgubre e abandonado. Era a oitava ou nona vez que o fazia, mas agora demorava-se um pouco mais, hesitando em correr de novo as argolas para a posição inicial. Parecia acreditar que, esperando mais um momento, a sua paciência seria recompensada. Depois de perscrutar, de uma forma extremamente concentrada, cada um dos elementos do parque, ainda se deteve por alguns segundos, apreensiva, no acesso escuro ao mesmo, até que virou costas à janela com preocupada resignação. Já tinha ligado imensas vezes à filha, que porém se encontrava apenas um tudo-nada atrasada para o jantar.

Em cima da mesa arrefeciam quatro triangulares empadinhas de espargos, uma redonda e espessa quiche de marisco, e um número indeterminado de bolinhos de bacalhau. Dado que tudo aquilo se destinava a alimentar só duas pessoas, podemos afirmar quase sem nenhum risco que a Srª Isabel tinha encontrado naquela tarefa um excelente modo de se entreter, mantendo à distância aqueles sentimentos depressivos, de solidão, que ao anoitecer tanto a apoquentavam.

Ao percorrer a cozinha em nova busca pelo telemóvel, puxou o totó que lhe prendia o cabelo e largou o elástico azul, de um modo displicente, numa cestinha de madeira que acumulava um sortido extraordinário de bugigangas femininas. Quando finalmente o descobriu em cima do micro-ondas, por debaixo de um puído e coloridamente manchado pano de cozinha, ouviu o familiar ruído da fechadura da porta de entrada, que, paradoxalmente, chegava aos seus ouvidos com um suave efeito tranquilizador.

«Sofia?...», chamou, pegando no telemóvel antes de dar uma espreitadela à sala adjacente. «Sofia? Estás aí?...»

«Sim, mãe, cheguei…» A voz de Sofia vinha do seu quarto, para onde se tinha dirigido rapidamente mal entrara em casa.

«Sofia, tu não ouviste as minhas chamadas?»

Como resposta, o bater seco de uma porta de guarda-fatos.

«Sofia, estás-me a ouvir?...»

«Sim, mãe, o que é?...»

«Sofia, por acaso não ouviste nenhuma das minhas chamadas?»

«Ouvi, mãe», disse, e fez uma curta pausa de quem parece estar a vestir uma camisola, «tu não paraste de ligar praticamente desde que saí de casa...»

«Sofia, então por que é que não atendeste nenhuma chamada?... Será que posso saber? Gostas de deixar a tua mãe pre…»

«Mãe», interrompeu, dirigindo-se à porta do quarto, «o quê que tu querias, mãe? Podes-me dizer o quê que querias? És tão…»

«Sofia, estava muita preocupada contigo. Já anoiteceu e estás atrasada para o jantar. Tu sabes que eu fico sempre muito pre...»

«És tão chata mãe, mas tão chata… Ainda não passaram dez minutos da hora combinada! E eu estava com o Pedro, não andava por aí sozinha a…».

«Estavas com o Pedro… Mas como é que eu iria saber se vocês estavam bem ou não? Das últimas vezes costumavam vir falar aqui para o parque infantil do condomínio antes de se despedi…»

«Mãe, será que eu estou a ouvir bem? Tu costumavas espiar-nos, mãe?! Eu não acredito que tu costu…»

«Não vos espiava nada, rapariga, não sejas ridícula. Somente tenho o hábito de dar uma olhadela ao parque enquanto faço o jantar e tinha reparado que vocês…»

(continua)

pmramires

despesadiaria às 16:29
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